domingo, 21 de fevereiro de 2021

Preços de combustíveis: apenas uma pequena peça da destruição setorial

 

Preços de combustíveis: apenas uma pequena peça da destruição setorial

Não será apenas a troca do presidente da Petrobras ou isenções tributárias de curto prazo que resolverão o impasse. É preciso uma reformulação completa da política para o setor.

20/02/2021 5:56

José Sérgio Gabrielli*

Será que o presidente Bolsonaro resolveu dar uma reviravolta na sua política privatista e voltada para o mercado, intervindo na direção da Petrobras, demitindo seu presidente, muito ligado ao Ministro Guedes e defensor de uma política de mercado para privatização acelerada e preços internacionais instantâneos na companhia?

Ninguém sabe, mas que a demissão do Castello Branco não é uma coisa trivial, com certeza não é.

A ação de Bolsonaro, na prática, questiona alguns princípios fundamentais da ideologia ultraneoliberal que vinha seguindo, como o respeito à governança das empresas com ações negociadas nas bolsas, a primazia do privado sobre o estatal e o abandono de intervenções governamentais em assuntos diretamente produtivos. Tirar o presidente da Petrobras, por discordar da política de preços, ameaça o programa de privatizações, pois afasta potenciais compradores de refinarias e tem um enorme efeito sobre o comportamento especulativo com as ações da Petrobras, uma das principais entre as negociadas na Bolsa de Valores do Brasil, com repercussões em Nova York, afetando os interesses de grandes fundos financeiros internacionais.

A intervenção coloca os membros do Conselho de Administração (CA) da empresa, muitos deles representantes de fundos de investimento, em xeque, ao mesmo tempo que as autoridades do Ministério de Minas e Energia tentam criar uma narrativa que não mudará a política de preços, nem a venda das refinarias. Os governos Temer e Bolsonaro reduziram drasticamente a presença de representantes diretos do governo na composição do CA da Petrobras, escolhendo mais representantes do mercado financeiro eleitos com o voto do Governo. Na próxima semana, o CA se reunirá e se saberá qual a sua posição, de apoio ao governo ou de renúncia.

A nota pública da direção da Petrobras reconhecendo o recebimento da indicação do general Joaquim Silva e Luna afirma que Castello Branco tem mandato até 20 de março de 2021, quase numa insubordinação frente às ordens de Bolsonaro, dizendo que recebeu a solicitação de convocação de Assembleia Geral Extraordinária para realizar as mudanças, sem marcar sua data.

Se a Presidência da Petrobras será mudada, qual o futuro das privatizações de refinarias e da política de preços? Era o próprio CA, representando os interesses dos acionistas de curto prazo e dos fundos financeiros, e até de grupos de importadores de derivados, que vinha pressionando a diretoria da Petrobras para acelerar os reajustes dos preços dos combustíveis e agora se vê frente a uma mudança de presidência da empresa, com indicações de um general, ex-ministro da Defesa do governo Temer, de um maior alinhamento com o governo, o que pode significar maiores dificuldades para implementar, tanto a continuidade da política de Paridade de Preços de Importação (PPI), como a própria privatização das refinarias. Como dizem alguns, a Presidência da Petrobras exige um técnico, mas com perfil de negociador e sensível às questões sociais, dado o tamanho e importância da empresa para a economia brasileira. Não pode ser apenas um tecnocrata do capital financeiro.

Para reduzir a crise dos aumentos continuados dos preços de gasolina, diesel e GLP o governo também anunciou medidas como a redução dos impostos federais sobre os combustíveis, para tentar conter os aumentos na bomba, pressionados pela elevação dos preços internacionais do petróleo e depreciação do real com elevação da taxa de câmbio. O ministro da Economia sabe que essas medidas precisam ser seguidas ou da redução de despesas equivalentes ou de ampliação de receitas sob pena de crime de responsabilidade do presidente e de violações da Lei de Responsabilidade Fiscal. Com a crise fiscal, essas compensações prometidas são de complexa execução.

Já em maio de 2018 (Gabrielle de Azevedo, 2018), alertávamos que as medidas paliativas, com base em redução temporária de impostos, tomadas pelo governo da época para enfrentar a greve dos caminhoneiros, eram insuficientes e porque “na origem da crise estão as variações diárias dos preços de combustíveis, em um ambiente recessivo com contração da atividade econômica, que baixou a demanda por frete, impedindo o repasse de aumento de custos”.

E terminávamos aquele artigo dizendo:

Alternativas sustentáveis a essa política exigem uma nova política de preços da Petrobras, retomada do refino nacional, consolidação da empresa integrada do poço ao poste, garantia de rentabilidade de longo prazo para os acionistas e enfrentamento dos desafios financeiros com políticas de ajuste longo, com alongamento da dívida e recuperação de investimentos. Isso será possível com o atual governo?

Hoje, a situação se agravou. O governo Temer, e depois o governo Bolsonaro, aprofundaram a política de repasse dos preços internacionais para os preços domésticos, sem considerar as diferenças entre os mercados de vários países e a realidade do mercado de combustíveis no Brasil. Os projetos de expansão da capacidade de refino foram paralisados e ampliou-se o market share de derivados importados na oferta nacional dos produtos.

Enquanto nos EUA, por exemplo, há uma grande pulverização de refinarias independentes que competem entre si, podendo se integrar ou não com redes de distribuição e de varejo, sem nenhum grupo econômico dominante, as exportações de petróleo e gás eram até recentemente controladas pelo governo, que colocava a segurança energética como parte fundamental da política de segurança nacional. Os próprios espaços dos sites das refinarias eram monitorados pelos órgãos de segurança. As grandes empresas internacionais dos EUA eram apoiadas e estimuladas pelas Forças Armadas e pelo Departamento de Estado, em suas políticas de presença nos países produtores, especialmente no Oriente Médio, onde estado e mercado se fundiam no setor de hidrocarbonetos. Como dizíamos naquele artigo de 2018, “para o resto do mundo, o Estado americano é ativo na defesa de suas grandes empresas, enquanto para o mercado interno seu setor petrolífero é dominado por pequenas e médias empresas”. Mesmo no refino, as maiores refinarias e maiores redes dos EUA são de empresas integradas, que combinam sua produção própria de petróleo com a refinação dos derivados, administrando as margens de cada setor internamente às companhias.

A situação brasileira é completamente distinta. As empresas internacionais, especialmente a Shell e Exxon têm presença centenária no país na comercialização de derivados, atuando na distribuição, sem grandes investimentos no refino. A Petrobras surgiu para consolidar uma posição de garantia de abastecimento dos derivados em todo o país, construindo um parque de refino capaz de atender grande parte da demanda nacional, montando uma infraestrutura logística que possibilita a entrega dos produtos em qualquer parte do território nacional. É evidente que não há mais monopólio legal do abastecimento, mas, de fato, a Petrobras detinha uma posição dominante, quase um monopólio dos derivados.

Essa estrutura de mercado tem bônus e ônus. O poder de mercado da Petrobras obstaculizava a entrada de novos concorrentes, mas seu compromisso com as necessidades nacionais possibilitava uma política de preços que isolava parcialmente as flutuações dos preços internacionais dos preços dos derivados vendidos no mercado brasileiro. Na distribuição, a Petrobras detinha um poder de mercado mais ou menos correspondente a um terço do mercado, com a Shell sendo a segunda maior distribuidora, em associação com a maior produtora de etanol, além de inúmeras distribuidoras privadas, com presença regional importante.

Apesar das redes de distribuição, a legislação brasileira impedia que as distribuidoras também fossem proprietárias dos postos de vendas no varejo, que opera através de mais de 37 mil postos no país. A BR Distribuidora já foi privatizada, com a vendas de suas ações na Bolsa e perda de controle da Petrobras, nome que permanece nos postos, numa espécie de fake news, uma vez que não pertencem mais a uma rede controlada pela empresa.

Os preços das bombas de gasolina expressam o comportamento das margens desses diversos segmentos. Os postos de combustíveis, quase monopólios locais, disputam numa determinada área a determinação de preços finais, com um intervalo de variação relativamente pequeno, dentro de cada distribuidora. As margens das distribuidoras dependem da situação da área atendida por elas, de sua estrutura de custos e da possibilidade de repassar para os postos de varejo as pressões de elevação de seus custos. As refinarias, quase todas da Petrobras, são geridas para otimizar o resultado geral da produção dos diversos tipos de derivados, aproveitando-se de diferentes estruturas das unidades de processo instaladas no conjunto dos sites, que definem a mais eficiente forma de utilizar as diversas correntes de petróleo cru, que ampliem as margens do refino.

As cargas processadas combinam petróleo nacional produzido aqui com petróleos internacionais importados, para compor as melhores correntes capazes de refinar o melhor mix de produtos para atender o mercado nacional e até exportar alguns derivados. A otimização é do conjunto do parque de refino, mesmo que não seja ótimo para todas e cada uma das refinarias. A eficiência sistêmica é maior do que a soma das eficiências de cada uma das unidades. Com a privatização, essa otimização se perde definitivamente, em troca de monopólios privados regionais, sub-ótimos para o conjunto do país.

As relações entre os preços internacionais do petróleo cru e os preços domésticos da matéria prima utilizada pelas refinarias são distintas quando há uma empresa integrada, que produz seu próprio petróleo e a refinaria isolada, que tem que adquirir no mercado sua carga a processar.

O parque de refino da Petrobras foi historicamente construído para processar petróleo leve importado, que o Brasil não produzia. Com o aumento da produção do petróleo brasileiro mais pesado, a empresa, durante os governos Lula e Dilma, fez um enorme investimento nas unidades de processo, para aumentar a capacidade de conversão do petróleo nacional pesado em derivados leves. Esse investimento permitia o processamento do petróleo nacional aos seus custos de produção, dando margens para a Petrobras administrar as margens de seus segmentos de produção de petróleo cru e seu refino. Nos momentos de altos preços internacionais do petróleo cru, as margens do E&P, responsável pela sua produção, aumentavam mais do que compensando as perdas potenciais de não repassar imediatamente o aumento dos custos para os preços dos derivados, refinados pelo segmento de abastecimento da companhia, que tinha prejuízos, mas a corporação como um todo mantinha sua lucratividade.

No caso das compras realizadas no mercado, seja a importação ou a compra de terceiros, o que entra no custo do derivado é o preço de aquisição do petróleo, com os custos cambiais, tributários e de logística incorporados. O preço dos derivados assim é fortemente influenciado pelas variações dos preços do petróleo cru, definido nos mercados internacionais, mas também dependentes da taxa de cambio, que transforma os preços internacionais em custos domésticos.

É preciso também destacar que os próprios preços internacionais do petróleo cada vez dependem mais de movimentações puramente financeiras, com um número de contratos futuros muito maior do que os contratos de entrega física do produto, determinando o que se chama de preço internacional do petróleo, seja o Brent ou WTI, por exemplo. Cada vez mais a especulação puramente financeira afeta o comportamento dos preços do produto, com uma movimentação física muito menor do que se transaciona nos mercados de contratos futuros.

No caso da empresa integrada, que tem produção própria da matéria prima, a precificação é distinta. Do ponto de vista da segmentação contábil, é possível utilizar preços internos de transferência (PIT), com alguma referência a preços internacionais, para contabilizar os resultados diferenciados de quem produz o petróleo e de quem o transforma em derivados para vender ao mercado.

Mas do ponto de vista corporativo, os resultados vão depender das diferenças dos custos de produção do petróleo nacional e dos preços dos derivados vendidos ao mercado. As margens são originadas de diferenças entre custos de matéria prima, e não seus preços de mercado, e os preços que podem ser cobrados dos consumidores dos derivados, depois de refinados.

Uma empresa integrada, portanto, tem maior resiliência para resistir às variações de preços de mercado do petróleo, administrando a melhor maneira de repassar os impactos sobre seus custos, com preços de derivados mais estáveis. Não interessa aos produtores as variações constantes dos preços. A suavidade das flutuações dos fluxos de caixa é um objetivo das empresas produtivas. A volatilidade é boa para especuladores, traders e investidores financeiros. Como dito no artigo de 2018:

Nos momentos em que o preço do petróleo internacional se eleva (ou baixa), o preço de transferência acompanha de forma correspondente, afetando os resultados segmentados. Em relação ao resultado corporativo, no entanto, os custos de produção do petróleo não seguem diretamente os preços de mercado, dependendo muito mais do capital já investido, da produtividade dos campos e dos custos operacionais domésticos, que não seguem instantaneamente as variações do preço do petróleo cru no mercado internacional, apesar de manterem uma relação de longo prazo com este. É por isso que, na empresa integrada monopolista, não é preciso variar a cada dia, ou a cada hora, os preços dos derivados no mercado doméstico, quando eles são produzidos com petróleo nacional.

O que dizer dos acionistas? Essa política de suavização das flutuações dos preços domésticos em relação aos internacionais prejudica ou não o retorno aos acionistas da empresa? Há acionistas e acionistas. Aqueles que estão visando os resultados de curto prazo vão querer que a Petrobras se aproveite ao máximo da volatilidade dos preços internacionais, repassando quase que instantaneamente suas flutuações mundiais para os preços nacionais. É claro que essa disposição não é tão firme nos momentos de queda dos preços globais.

É por isso que outros acionistas valorizam a estabilização dos fluxos de caixa, com aproveitamento do poder de mercado e produção interna para administrar as subidas, reduzindo sua intensidade, mas também compensando as suas quedas, diminuindo a velocidade da descida. Em um mercado com uma empresa amplamente dominante, produtora de grande parte do petróleo a ser refinado dentro do próprio país e pertencendo à própria empresa, essa política acaba aumentando do valor de longo prazo para os próprios acionistas.

Com o aumento das importações de derivados, o mercado brasileiro se torna mais dependente dos preços internacionais, já que o importador tem que arcar diretamente com os preços do seu fornecedor, com os custos de internação acrescidos, que são repassados ao consumidor final brasileiro. A redução do market share da Petrobras reforça essa dependência.

Do ponto de vista tributário, os maiores impostos que recaem sobre os preços dos derivados são importantes para as receitas estaduais. O ICMS, por exemplo, tem no setor de derivados sua principal fonte, sendo o mais importante provedor de recursos fiscais de muitos estados brasileiros. Com uma alíquota percentual do preço final, o ICMS acaba crescendo ou reduzindo, em proporção às variações dos preços dos derivados, mas como percentagem, não pode ser o elemento definidor das variações, que dependem principalmente da política de repasses nacionais das variações internacionais de preços.

Nos últimos anos, o Brasil caminhou na direção de desmontar esse sistema. Como dizíamos em 2018, mesmo que a Constituição estabeleça responsabilidade estatal pelo abastecimento nacional, as mudanças das políticas para o setor nos últimos anos…

…retiram dos objetivos nacionais a garantia do abastecimento do mercado doméstico, colocando como meta fundamental para o desenvolvimento da produção ampliar as exportações e, para o refino, a atração de capitais internacionais. Há, portanto, uma escolha deliberada de política setorial para maior dependência de atores internacionais, reduzindo o papel da Petrobras nesse setor, aumentando os impactos da volatilidade dos preços mundiais sobre o mercado doméstico. É uma escolha de política! Escolha equivocada, mas escolha!

Essa escolha é a origem dos problemas dos preços dos combustíveis. Não só foram mudados os objetivos da política nacional, como foram estimulados os registros de novos importadores de derivados, as refinarias foram operadas em níveis de utilização muito abaixo do que poderiam funcionar e a política de privatização por partes da Petrobras quebra a estrutura integrada da empresa, tornando-a principalmente uma grande exportadora de petróleo cru.

A venda de algumas refinarias, juntamente com o parque de terminais, tanques e dutos vai aumentar ainda mais a vulnerabilidade do mercado brasileiro para as flutuações de preços internacionais.

Hoje, com a elevação dos preços do petróleo no mercado internacional, as receitas da Petrobras com sua exportação de petróleo cru aumentam, ampliando seus lucros pois os seus custos de produção são muito menores do que os preços internacionais, ampliando os lucros do E&P, mesmo sem repassar o aumento dos preços dos derivados para o mercado interno. A política de redução da utilização das refinarias e de abrir o mercado para os importadores cria problemas para a ampla utilização dessa política que poderia estabilizar o fluxo de caixa da empresa, mesmo com a queda de curto prazo dos rendimentos do Abastecimento.

Agora, os preços internacionais de petróleo estão em alta, o que pressiona os preços domésticos. A política de repasse rápido dessas flutuações ao mercado interno força os preços domésticos a subir. O governo promete, por dois meses, isentar os impostos federais que incidem percentualmente sobre os preços e quer mudar a forma de cobrança do ICMS, com sua transformação em um valor fixo por unidade vendida dos derivados, reforçando o papel de contribuinte substituto para as refinarias e importadores.

Além de agravar os problemas fiscais – tanto do governo federal como, principalmente, dos governos estaduais –, que já são graves em uma economia estagnada com um ciclo longo de quase paralisação, a isenção não se sustenta se a pressão altista dos preços se mantiver, como parece ser o caso.

A origem do problema é a maior dependência externa, a drástica redução da Petrobras, que passa a ser gerida como uma geradora de caixa de curto prazo, destruindo a fortaleza e os benefícios de sua integração do “poço ao poste, passando pelo posto”. A venda das refinarias é mais um passo a uma completa internacionalização dos preços de combustíveis no país, que abre mão de influir em um importante preço da economia.

Entregue aos acionistas de curto prazo, representantes de fundos de investimento que priorizam a recuperação mais rápida de seus investimentos, mesmo que às custas da destruição do capital da empresa no longo prazo, o governo agora se vê compelido a tentar mudar de rumo, mas sofre as consequências de suas atitudes anteriores que consolidaram esse modelo de descaso com os impactos das decisões sobre a economia nacional. Conflitos se aprofundam entre acionistas e governo, governo e direção da empresa, governo federal e estaduais e os trabalhadores e consumidores que resistem aos preços altos e destruição de uma empresa nacional da relevância da Petrobras.

O que está acontecendo, como acontece na maioria das crises que envolvem o petróleo, é uma disputa de quem se apropria da enorme renda petroleira proveniente das diferenças entre os preços finais e os custos efetivos de produção. Qual a parcela dos consumidores, dos governos, das empresas produtoras, dos distribuidores, dos varejistas e dos trabalhadores será decidida no conflito entre os grupos de interesse, que ocorre nos mercados, nas regulações e nas políticas das empresas privadas e nas orientações das empresas estatais que atuam no setor. As especificidades do petróleo provêm da sua importância estratégica, indispensável para a mobilidade de pessoas e produtos. O petróleo não é uma mercadoria qualquer. A disputa é fortemente política e social. Não será apenas a troca do presidente da empresa ou isenções tributárias de curto prazo que resolverão o impasse. É preciso uma reformulação completa da política para o setor.

*(Ex-presidente da Petrobras (2005-2012) e atual secretário de Planejamento da Bahia)

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REFERÊNCIA:

Artigo de Gabrielli publicado em 29 de maio de 2018

A economia na política de preços dos combustíveis

29/05/2018 – José Sérgio Gabrielli

A solução encontrada pelo governo para a greve de caminhoneiros e petroleiros, além de paliativa de curto prazo, é uma bomba de efeito retardado

A greve dos caminhoneiros e dos petroleiros revelou de forma muito clara as limitações dos princípios fundamentais da atual política econômica: mecanismos de mercado exacerbados, despreocupação com os impactos sociais das políticas e austeridade apenas naquilo que se destinar aos mais pobres. A solução encontrada pelo governo, além de paliativa de curto prazo, é uma bomba de efeito retardado, se os preços internacionais de petróleo não se estabilizarem.

Na origem da crise estão as variações diárias dos preços de combustíveis, em um ambiente recessivo com contração da atividade econômica, que baixou a demanda por frete, impedindo o repasse de aumento de custos. Nos governos Lula e Dilma, ao contrário, a economia estava crescendo, as refinarias estavam quase a plena capacidade e nos planos de investimentos havia uma importante parcela para a expansão da capacidade de refino no Brasil. Naquele contexto, os preços seguiam os preços internacionais, mais em ciclos longos, sem precisar transmitir para o mercado interno, no qual a Petrobras é monopolista de fato no refino, a volatilidade diária de um mercado altamente especulativo, com elementos formadores de preço muito distantes da realidade econômica nacional.

No atual contexto, de recessão por três anos e queda da atividade econômica e da demanda por combustíveis, a direção da Petrobras reduziu o volume de carga processada das refinarias para permitir a expansão de importações de derivados, com a entrada de centenas de novos importadores de gasolina, diesel, QAV (Querosene de Aviação) e GLP (Gás Liquifeito de Petróleo) para suprir o mercado doméstico.

No mercado em queda, a Petrobras perde mais aceleradamente sua participação no mercado, dando espaço para os importadores, aumentando a sensibilidade dos preços internos às variações internacionais, com o objetivo de criar um ambiente propício para a venda de parte do parque de refino da empresa. Troca-se a estabilidade de uma empresa integrada, que atua “do poço ao poste”, para fazer caixa no curto prazo com a venda de seus ativos, de forma a acelerar o pagamento das dívidas e dividendos. No longo prazo, as condições de endividamento e da própria lucratividade serão menores, prejudicando os investidores de longo prazo na companhia. O resultado imediato dessa política é a perda de market share, maior exposição à volatilidade do mercado de petróleo cru e, portanto, menor lucratividade no longo prazo, apesar de fazer caixa para pagar o sistema financeiro no curto prazo.

Nesse sentido, não é correta a simples comparação dos movimentos de preços em outros países com os brasileiros, uma vez que a estrutura do mercado de refino e distribuição deles é muito distinta da nossa. Os Estados Unidos, por exemplo, apresentam uma grande competição entre as refinarias, distribuidoras, postos de vendas no varejo e o mercado internacional, porque não têm nenhuma companhia com grande poder de concentração nos seus mercados. Isso foi resultado de uma deliberada política antimonopolista para o setor, que vem desde o início do século passado, com o desmembramento da poderosa Standard Oil em 1911. Essas políticas foram comandadas pelo Judiciário americano e pelo Congresso, enquanto o poder Executivo, com sua diplomacia e suas Forças Armadas, protegia as grandes empresas em suas buscas internacionais de garantia de suprimento, seja no México, Venezuela, Oriente Médio, América Latina e África. Para o resto do mundo, o Estado americano é ativo na defesa de suas grandes empresas, enquanto para o mercado interno seu setor petrolífero é dominado por pequenas e médias empresas.

O caso brasileiro tem uma história muito distinta. Standard Oil e Shell estão no país desde os primeiros anos do século passado, desempenhando papel fundamental na distribuição de derivados, sem grande papel, nem no refino, nem na produção, mas fortes na importação de combustíveis. Esses dois setores, que exigiam grandes investimentos e maiores riscos, foram assumidos pela Petrobras, que com seu sucesso exploratório e compromisso com o abastecimento do país, montou um sistema integrado, em que o volume de produção nacional de petróleo é semelhante à sua capacidade de refino, que é também compatível com o tamanho da demanda brasileira de derivados.

Essa visão de integração vertical da cadeia de petróleo e gás está hoje sendo desmontada, sem que a economia tenha as condições necessárias para a pulverização da produção. O que deverá acontecer, se essa política prosseguir, será a substituição do monopólio de fato da Petrobras por grandes oligopólios privados, intensificando a instabilidade do mercado brasileiro de refino e de distribuição. Mercados oligopólicos são conhecidos por suas guerras de preço, conluios e acordos dos produtores, que buscam capturar o máximo de renda gerada no setor.

Apesar da responsabilidade definida pela Constituição, que estabelece o monopólio estatal da exploração e produção de petróleo e também do refino, podendo a União contratar empresas para prestar esses serviços que garantam o abastecimento nacional de derivados, entre elas a Petrobras, as novas diretrizes de política para o setor, em discussão pelo atual governo, retiram dos objetivos nacionais a garantia do abastecimento do mercado doméstico, colocando como meta fundamental para o desenvolvimento da produção ampliar as exportações e, para o refino, a atração de capitais internacionais. Há, portanto, uma escolha deliberada de política setorial para maior dependência de atores internacionais, reduzindo o papel da Petrobras nesse setor, aumentando os impactos da volatilidade dos preços mundiais sobre o mercado doméstico. É uma escolha de política! Escolha equivocada, mas escolha!

Do ponto de vista da precificação dos derivados também isso tem implicações sérias. Numa empresa integrada, como era a Petrobras, a produção de petróleo é responsabilidade da área de Exploração e Produção, que repassa o petróleo cru produzido nacionalmente para a área de Abastecimento, responsável pelo refino e vendas. Essa carga processada pelo Refino tem seu custo calculado por preços de transferência internos à mesma empresa, que representa o custo de oportunidade de ser vendido ao mercado externo. Isso determina as margens de refino, considerando a diferença entre os preços de venda e esses custos imputados, incluindo, além da carga processada, os outros custos associados ao refino.

No entanto, do ponto de vista do resultado global da empresa integrada, o cálculo é diferente, no caso em que a carga processada é produzida pela própria empresa. Nesse caso, para fins de resultados corporativos, o que vale é a diferença entre os preços de venda do derivado e o custo da produção da carga processada. Nos momentos em que o preço do petróleo internacional se eleva (ou baixa), o preço de transferência acompanha de forma correspondente, afetando os resultados segmentados. Em relação ao resultado corporativo, no entanto, os custos de produção do petróleo não seguem diretamente os preços de mercado, dependendo muito mais do capital já investido, da produtividade dos campos e dos custos operacionais domésticos, que não seguem instantaneamente as variações do preço do petróleo cru no mercado internacional, apesar de manterem uma relação de longo prazo com este. É por isso que, na empresa integrada monopolista, não é preciso variar a cada dia, ou a cada hora, os preços dos derivados no mercado doméstico, quando eles são produzidos com petróleo nacional.

Com as importações de derivados, o caso é diferente porque, nesse caso, os custos de aquisição do petróleo cru são pelos preços internacionais, acrescidos dos custos de internação, e consequentemente as margens são definidas pelos preços domésticos, menos esses custos de carga importada, acrescidos dos outros custos do refino. A pergunta que se faz, portanto, é se é necessário o aumento de importações de derivados, neste momento em que as refinarias da Petrobras estão com capacidade utilizada muito baixa – podendo aumentar a produção doméstica com pouco investimento – e a produção do pré-sal – com petróleo mais leve do que o pós-sal – está crescendo aceleradamente. É o melhor negócio a exportação do petróleo cru para abrir espaços para as importações de derivados? Ou os acionistas ganhariam mais com mais refino no país, a custos de produção declinantes, vendendo para o mercado interno, mesmo que isso significasse o reforço das posições monopolistas no mercado brasileiro? Não há uma resposta definitiva, nem é absolutamente verdadeira a afirmação de que a atual política beneficia os acionistas da Petrobras.

O que então pode justificar essa política? Mais uma vez há uma opção de modelo de estruturação do setor. Há uma escolha de reduzir o papel da Petrobras e ampliar a presença de outros atores no mercado de refino, vendendo participações em algumas refinarias e, para isso, é necessário criar um ambiente que atraia potenciais investidores. Preços internacionais, espaços ocupados por importadores, redução da integração vertical na logística, com aberturas ao mercado, podem criar essa situação. Os potenciais investidores, se efetivarem suas participações, pouco acrescentarão de investimentos de expansão da capacidade de refino, utilizando a atual capacidade ociosa artificialmente criada, até que consigam, se for o caso, deslocar os importadores dos espaços ocupados em consequência da atual política da Petrobras.

O que acontece com a composição dos acionistas da empresa? O governo é o acionista majoritário das ações ordinárias – que têm direito a voto – mas não é majoritário na composição do capital total, quando incluídas as ações preferenciais, que não votam nas questões centrais, mas recebem os primeiros dividendos, quando distribuídos. Entre os acionistas preferenciais há aqueles de longo prazo, que objetivam receber suas remunerações no longo prazo, incluindo a própria valorização da empresa, naquilo que tecnicamente se chama de Retorno Total do Acionista1. Este está bem situado em relação a outras empresas de petróleo, mesmo que a Petrobras não tenha distribuído dividendos nos últimos anos, mas sua recuperação de valor foi excepcionalmente alta.

Nesse movimento ascendente do valor das ações da empresa, muitos investidores de curto prazo, que esperam ganhar na flutuação de curto prazo das cotações, entraram fortemente, nos últimos meses, nas operações de compra das ações, que estavam muito abaixo dos valores sugeridos pelos fundamentos da companhia, que possuía um dos melhores portfólios de exploração e produção do mundo, um parque de refino de tamanho significativo e um mercado praticamente cativo para a venda de seus derivados. Esses fundamentos sugeriam a possibilidade de ganhos no curto prazo para os investidores, na medida em que o mercado convergisse o preço das ações para esses valores, de uma situação claramente subvalorizada, como resultado de percepção de crise, desmonte de reputação e queda dos preços internacionais do petróleo. Recentemente, nas operações da Bolsa, ela superou os valores nominais das ações da operação de capitalização de 2010, quando tinha atingido um dos valores máximos de sua história.

Muitos investidores de curto prazo entraram no papel nos últimos meses, recuperando o valor da companhia e rapidamente saíram, derrubando o seu valor de mercado, quando ficou evidente o papel estratégico da empresa no país, seu papel monopolista no abastecimento doméstico e a inevitável atenção que o governo tem que dispensar a uma empresa estratégica, que controla um dos preços fundamentais da economia. Tudo isso está nas avaliações de riscos publicadas nos prospectos das emissões da Petrobras, portanto de pleno conhecimento prévio do mercado. A Petrobras não é uma padaria, que compete como pequena empresa no mercado e o governo tem de acompanhar seus passos, quando situações críticas se impõem na economia. Assim foi agora e assim tem sido ao longo de toda sua história.

A questão que se coloca agora é que o governo quer recompensar os acionistas, com transferências de recursos fiscais, sustentando uma política de ajustes de preços de curto prazo, que não somente não é necessária, como prejudica inclusive os interesses dos acionistas de longo prazo. Essas transferências do orçamento fiscal, com redução de tributos sobre o diesel, vão agravar o déficit das contas públicas, cantadas como o principal problema da economia pelo atual governo, sob o nome de austeridade fiscal, para beneficiar os rendimentos dos rentistas que aplicaram em papéis da Petrobras, com objetivos de curto prazo. Pelo lado da redução de receitas, isto agravará o financiamento de políticas sociais que atingem prioritariamente os segmentos mais necessitados da sociedade. Se o problema já é grave agora, se tornará ainda mais grave se os preços do petróleo no mundo continuarem se elevando. Nada garante que isso não ocorrerá. Também aí há uma bomba de efeito retardado: resolve-se de imediato o problema de preços de diesel altos, compensa-se a Petrobras pela manutenção dos preços, mas sem alterar a política da empresa, que continuará ajustando em ciclos curtos os seus preços, recebendo compensações por parte do governo, que por seu turno já enfrenta dificuldades de levantar recursos para seus custos. Se o preço internacional do petróleo crescer, o que acontecerá?

Alternativas sustentáveis a essa política exigem uma nova política de preços da Petrobras, retomada do refino nacional, consolidação da empresa integrada do poço ao poste, garantia de rentabilidade de longo prazo para os acionistas e enfrentamento dos desafios financeiros com políticas de ajuste longo, com alongamento da dívida e recuperação de investimentos. Isso será possível com o atual governo?

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