quinta-feira, 22 de julho de 2021

Até onde vai uma multinacional para manter agrotóxicos perigosos no mercado

 

Até onde vai uma multinacional para manter agrotóxicos perigosos no mercado
por Pedro Grigori

No meu primeiro estágio em jornalismo, no Correio Braziliense, diversas vezes fui o escolhido para ir à portaria da redação ouvir histórias de pessoas que iam até lá para “fazer uma denúncia bombastica”. Não era à toa a escolha dos estagiários para a tarefa. Passávamos quase uma hora ouvindo pessoas contarem histórias sobre crimes de governadores, grupos terroristas e teorias que pareciam ter saído de uma sala de roteiro.

Investigávamos as histórias, mas na maioria das vezes não passavam de teorias da conspiração ou de denúncias infundadas. Aquele exercício tinha como objetivo nos ensinar que, como jornalistas, teríamos que separar o joio do trigo. Precisaríamos aprender a ouvir as pessoas, mas tomar todo o cuidado para não cair em histórias falsas. 

Mas essa distinção é muitas vezes difícil de ser feita na prática. Nos últimos meses, conversei com dois cientistas que por décadas tiveram suas histórias classificadas como teorias da conspiração. Eles denunciaram uma das maiores empresas agroquímicas do mundo, e enfrentaram consequências por isso. 

As histórias que eles contam, e que detalhamos em uma reportagem recente da Agência Pública, tinham um ponto em comum: denúncias contra a Syngenta, parte de um aglomerado agroquímico responsável por um quarto do mercado mundial de agrotóxicos.

Após quase 30 anos de denúncias ignoradas, eles só foram ouvidos quando um Tribunal dos Estados Unidos tornou públicos documentos internos da Syngenta usados em um processo – que finalmente provaram que os pesquisadores não estavam mentindo. 

Um dos denunciantes se chama Tyrone Hayes, um cientista de 53 anos e professor de Biologia na Universidade da Califórnia. Ele foi contratado pela Syngenta em 1997 para estudar a atrazina, o agrotóxico mais usado nas plantações de milho dos Estados Unidos. Em poucos meses, fez uma descoberta que desagradou a empresa: o agrotóxico retardava o desenvolvimento sexual de sapos e poderia até mesmo criar anfíbios hermafroditas. 

Assisti uma série de entrevistas e palestras antigas e recentes do cientista, e é notável como o envolvimento com a empresa teve impacto em sua vida. Desde os anos 90, ele chamava atenção dentro da comunidade científica. Não apenas pelo trabalho consistente sobre endocrinologia de anfíbios, mas pela aparência e humor. Ele era um dos únicos homens negros naquela área da ciência, era carismático e gostava de usar roupas extravagantes, tendo o cantor Prince como principal referência. 

Já o Tyrone dos anos 2000 era solitário. Ele diz ter sido ameaçado pela Syngenta, teve o trabalho questionado por cientistas contratados pela empresa e passou a dormir cada noite em um hotel diferente quando viajava para dar palestras, pois tinha medo de estar sendo perseguido. 

Apenas em 2013 a história teve uma reviravolta. Quando os documentos internos da Syngenta vieram a público, ficou claro que Tyrone tinha se tornado alvo principal de uma campanha difamatória para desacreditar cientistas críticos aos agrotóxicos. Até um perfil psicológico do cientista foi traçado por profissionais da Syngenta com o objetivo de identificar os pontos fracos do pesquisador. O laudo o classificou como “esquizo-paranóico e narcisista”. 

O Tyrone que conheci recentemente, durante a apuração da reportagem, parece mais com o jovem dos anos 1990. Em suas palestras, ele voltou a usar roupas coloridas, semelhantes às de reverendos de igrejas evangélicas dos Estados Unidos. Faz piadas e brinca, mas não deixa de denunciar a conduta da Syngenta. Tyrone usa uma frase de Albert Einstein para explicar o motivo de continuar criticando a multinacional mesmo após anos de perseguição: “aqueles que têm o privilégio de saber têm o dever de agir”.  

Para a mesma reportagem, conversei também com o cientista britânico Jon Heylings, contratado pela Syngenta nos anos 1990. Foi Heylings quem descobriu que a empresa vendia o agrotóxico Paraquate sem tomar as devidas precauções para evitar que a substância fosse usada para cometer suicídio. Ele também tentou alertar a empresa, mas nunca foi ouvido.

Uma série de reportagens da Agência Pública mostrou que 129 brasileiros tomaram Paraquate para se matar na última década. O agrotóxico é tão perigoso que apenas um gole é suficiente para tirar a vida de uma pessoa adulta. 

Já nesta semana, publicamos uma outra reportagem com o novo estudo da pesquisadora e professora de Geografia da Universidade de São Paulo (USP) Larissa Bombardi. Em 2017, ela lançou um dos trabalhos mais importantes e referenciados sobre agrotóxicos no Brasil na última década. Mas a recepção positiva no meio científico não foi o único impacto da publicação. Ela passou a sofrer uma perseguição tão grande por parte de apoiadores do agronegócio que teve que deixar o Brasil em março deste ano. 

“Eu não tinha segurança para lançar esse trabalho vivendo no Brasil, porque sei que ele mexe diretamente com a espinha dorsal da estrutura dessa sociedade e do governo”, me contou a pesquisadora em uma ligação na semana passada. 

Larissa, Tyrone e Jon nasceram e cresceram em países diferentes e estudam aspectos distintos do uso de agrotóxicos. Os três tornaram-se exemplo de que o negacionismo e o questionamento da ciência não são uma novidade da pandemia. Infelizmente, essas três histórias também mostram que apontar erros de um grupo tão poderoso traz consequências que não devem ficar no campo das teorias da conspiração.
Pedro Grigori é repórter da Agência Pública em Brasília. 

Rolou na Pública
 

Jornalismo de dados da Pública é referência internacional. Um artigo publicado pelas especialistas em jornalismo de dados Anastasia Valeeva e Eva Constantaras no site datajournalism.com coloca as investigações guiadas por dados da Pública como exemplo a ser seguido. "Embora os dados por trás das histórias estivessem disponíveis para os leitores, o foco era a história, não os dados", diz o artigo. Lembramos também que nosso repórter multimídia e editor, Bruno Fonseca, é um dos finalistas do Sigma Awards, prêmio internacional de jornalismo de dados.

Pública na CPI, de novo. "Quais são, afinal, as prioridades de comunicação do Governo Federal?", perguntou o senador Renan Calheiros ao Ministro da Saúde Marcelo Queiroga na CPI da Covid ao citar a reportagem da Pública que revelou que o Ministério das Comunicações gastou R$ 5 milhões em campanhas sobre vacinação e R$ 30 milhões, seis vezes mais, para divulgar "retomada de atividades". Os senadores andam acompanhando a Pública. 

Cooperação entre FBI e Lava Jato. Congressistas norte-americanos enviaram carta ao presidente Joe Biden pedindo explicações sobre a colaboração entre o Departamento de Justiça (DoJ) e a operação Lava Jato. Eles se dizem preocupados com "o envolvimento de agentes do Departamento de Justiça dos Estados Unidos (DoJ) em procedimentos investigativos e judiciais recentes no Brasil, que geraram controvérsia substancial e são vistos por muitos no país como uma ameaça à democracia e ao Estado de Direito", conforme noticiou a BBC Brasil. No ano passado, a Pública revelou em parceria com o The Intercept Brasil que houve colaboração entre a força-tarefa e o FBI

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