PARA NÃO ESQUECER – 23 DE NOVEMBRO DE 1910
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REVOLTA DA CHIBATA
(Ernesto Germano Parés – em “As Lutas de Libertação do Povo Brasileiro”)
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Nos primeiros anos da República, o Brasil chegou a ser considerado como possuidor da terceira maior potência naval do mundo. Navios imensos, armados com o que de mais moderno havia, faziam o “orgulho nacional” chegar ao máximo.
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Por outro lado, entre os marinheiros, havia um profundo sentimento de revolta. A marinha mantinha, apesar da nova Constituição da República ter abolido, os castigos corporais, a prática da “Chibata”.
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O que era a “Chibata”? Era o castigo imposto aos marinheiros por erros cometidos ou por atos considerados pelos oficiais como de indisciplina.
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Para descrever o castigo, vamos transcrever o depoimento de Eurico Fogo, praça do Corpo de Marinheiros Nacionais, citado por Edmar Morel.
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“O bandido (fala do carrasco do navio Minas Gerais) apanhava uma corda mediana, de linho, atravessava-a de pequenas agulhas de aço, das mais resistentes e, para inchar a corda, punha-a de molho com o fim de aparecer, apenas, as pontas das agulhas. A guarnição formava e vinha o marinheiro faltoso algemado. O comandante, depois do toque de silêncio, lia uma proclamação. Tiravam as algemas das mãos do infeliz e o suspendiam nu da cintura para cima no pé de carneiro, ferro que se prende à balaustrada do navio. E, então, Alipio, o mestre do trágico cerimonial, começava a aplicar os golpes. O sangue escorria. O paciente gemia, suplicava, mas o facínora prosseguia carniceiramente o seu mister degradante. Os tambores batidos com furor, sufocavam os gritos. Muitos oficiais voltavam o rosto para o lado. Todos estavam em segundo uniforme, luvas e armados de suas espadas. A marinheirada, possuída de repulsa e de profunda indignação concentrada, murmurava: - Isto vai acabar!”
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As cenas descritas, ao contrário do que se pode imaginar, não se passa há dois ou mais séculos atrás. São acontecimentos do início deste século, em 1910, em navios da Marinha de Guerra do Brasil. E é contra elas que vai se levantar um grupo de marinheiros, sob o comando de João Cândido, escrevendo uma página inesquecível da história.
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João Cândido era um negro, gaúcho e filho de tropeiros, que havia entrado para a Marinha e aprendido os ofícios de praça de pré. Durante a construção do Minas Gerais (atenção, não se trata do porta-aviões), considerado um dos mais modernos e bem armados navios de guerra do mundo, foi enviado com outros marinheiros para o estaleiro na Inglaterra para acompanhar os últimos preparativos, tomar conhecimento das novas técnicas e aprender a manobrar o couraçado.
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O navio chegou à Baia de Guanabara no dia 18 de abril de 1908, com toda a pompa. Enquanto isso, nos vários vasos de guerra, os marinheiros continuavam a sofrer castigos e a chibata continuava a ser usada com a complacência dos oficiais e autoridades nacionais.
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No dia 22 de novembro de 1910 tomaria posse o novo presidente, Marechal Hermes da Fonseca, depois de uma campanha eleitoral que derrotou a candidatura civilista de Rui Barbosa. Na Baia da Guanabara estavam fundeados inúmeros navios estrangeiros que traziam autoridades para festa de posse.
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A eleição de Hermes da Fonseca já havia demonstrado uma crise entre as oligarquias dominantes. Uma parte dos grandes senhores de terra, em particular de Minas Gerais e Rio Grande do Sul, apoiavam a candidatura do marechal enquanto os grandes proprietários paulistas, temerosos de se verem afastados do poder, apoiam a candidatura “civilista” de Rui Barbosa.
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“O ‘movimento’ não foi adiante, nem todo o Brasil ‘se levantou’. A campanha civilista refletia sobretudo uma luta entre as oligarquias, sendo incapaz de conseguir a participação ativa do povo. Além do mais, a maior parte do eleitorado estava sob o controle dos hermistas: Minas Gerais, Rio Grande do Sul, a oposição paulista...”
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Mas o Brasil seria sacudido por um movimento que não tinha qualquer ligação com essa disputa entre os grandes senhores. Na madrugada do dia 22, bem distante dos centros das comemorações, o couraçado Minas Gerais encontrava-se no fundo da Baia da Guanabara e, amarrado pelos pulsos, o marinheiro Marcelino Rodrigues Menezes recebia 250 chibatadas diante da tripulação enfileirada para assistir ao castigo. Segundo testemunhas, Marcelino chegou a desmaiar sem que o carrasco parasse por um minuto sua tarefa.
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Esta foi a gota d’água! Há muito os marinheiros já conspiravam para acabar com o castigo da chibata nos navios de guerra brasileiros e já haviam apelado para todos os órgãos oficiais esperando por uma resposta.
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Na noite do mesmo dia, após a festa de posse, o Marechal Hermes da Fonseca recebia os convidados em uma grande recepção no Clube da Tijuca.
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“O Marechal, ao lado de todo o Ministério, ouvia a ópera ‘Taunhauser’, de Wagner, quando um tiro de canhão sacudiu a cidade. O disparo, absolutamente, não estava no programa. Cinco minutos depois um outro estampido ecoou pelo Rio. Vidraças, agora, eram quebradas em Copacabana e no centro.”
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Eram os marinheiros do Minas Gerais que, depois de prender todos os oficiais a bordo, tomavam conta do imenso navio e anunciavam seu movimento para acabar com o castigo da chibata. Logo, conforme combinado previamente, outros navios de guerra se juntavam ao Minas Gerais anunciando a adesão. João Cândido, um simples marinheiro, negro, era o “Almirante” da esquadra rebelde e enviou ao Palácio do Catete uma mensagem, por rádio, anunciando que a Marinha estava levantada para acabar com os castigos corporais.
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O governo não sabia o que fazer. Qualquer movimento errado, um tiro que fosse dado em direção aos navios, e eles poderiam destruir a cidade do Rio de Janeiro, tal era o poder de fogo.
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Quando raiou o dia 23 de novembro, a população do Rio pode assistir às manobras dos navios revoltados. Nos mastros, a bandeira vermelha tremulava enquanto os marinheiros mostravam toda a maestria movendo aqueles gigantescos barcos de um lado para outro da baia. Durante todo o tempo, os canhões estavam sempre apontados para pontos estratégicos ao longo do litoral. Em novo comunicado ao Presidente, anunciavam suas reivindicações: fim da chibata ou qualquer outro castigo corporal, aumento dos soldos e educação para a marinheirada!
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O marechal-presidente e o Parlamento não tiveram alternativa e – coisa rara em nossa história – em menos de 48 horas haviam respondido aos anseios do povo. Na noite do dia 25, depois de já aprovada no Senado, a Lei era votada e também aprovada pela Câmara dos Deputados. A Revolta da Chibata era vitoriosa e estavam abolidos os castigos físicos na Marinha.
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Mas o exemplo de João Cândido não podia servir para novos movimentos. Tão logo os marinheiros depuseram as armas e devolveram os navios aos oficiais, o governo ignorou a anistia concedida e baixou um decreto mandando prender os líderes da Revolta.
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“Arriada a bandeira rubra, começou o crime contra os anistiados, culminando com fuzilamentos a bordo do ‘Satellite’, em águas do norte, enquanto João Cândido e seus companheiros de jornada, todos anistiados, foram metidos em masmorras medievais na ilha das Cobras, onde vários morreram asfixiados com cal virgem. O chefe, aquele que acabou com a chibata na Marinha, foi parar no Hospital dos Alienados.
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Permaneceu 18 meses numa prisão subterrânea, com água infiltrada. A verdadeira história de João Cândido tem início agora. É um terrível libelo contra as instituições democráticas, contra homens poderosos que desceram da dignidade do cargo e foram perseguir um homem do povo, pelo crime de ter acabado com os castigos corporais numa Nação tida e havida como cristã e civilizada. Mas João Cândido era um daqueles cantados por Euclides da Cunha: um forte acima de tudo.
Ele sobreviveu para narrar sua história.”
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João Cândido morreu em dezembro de 1969, aos 89 anos, e ainda participou em vários movimentos contra a ditadura implantada com o golpe militar de 1964. Muitos anos depois, João Bosco e Aldir Blanc prestaram homenagem a ele com a música “Mestre sala dos mares”.
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Nota: todos os trechos entre aspas são do livro de Edgard Morel, citado no início.
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VIVA JOÃO CÂNDIDO!
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VIVA O ALMIRANTE NEGRO!
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Nas imagens: 01) João Candido, o Almirante Negro; 02) capa do livro de Edmar Morel na minha estante; 03) os marinheiros revoltosos