sexta-feira, 28 de janeiro de 2022

Depressão e ansiedade são normalizadas nas lavouras de tabaco

 

Depressão e ansiedade são normalizadas nas lavouras de tabaco
por Clarissa Levy
 
Quando uma psicóloga me disse que o principal problema dos agricultores de uma cidadezinha bonita e aparentemente próspera em Santa Catarina era o uso desenfreado de medicamentos psiquiátricos, fiquei surpresa. Tive que pedir pra ela repetir. Achei que tinha entendido errado. 

Era 2019 e eu estava em Leoberto Leal, um pequeno município rural em Santa Catarina onde vivem menos de seis mil pessoas. Ainda na faculdade, tinha ido aproveitar o ar fresco da serra catarinense em uns dias de folga. O lugar era lindo, estereótipo da calmaria: um vale muito verde entrecortado por dois rios limpos que escorregavam em mini cachoeiras. 

O município, todo voltado pra vida rural em pequenas lavouras, tinha um núcleo urbano bem pequeno mas muito arrumadinho. Lembro bem da tarde em que resolvi passear pelas duas únicas ruas da cidade. Depois de entrar na padaria e visitar a igreja, já tinha visto tudo o que tinha pra ver em menos de 40 minutos. Estava um tanto à toa e talvez por isso tenha entrado no Centro de Referência de Assistência Social (CRAS), que estava com as portas abertas.  

Encantada com o vale, tão conservado e isolado (o primeiro acesso de asfalto a Leoberto Leal tinha menos de cinco anos), desatei a fazer perguntas à única pessoa que estava no serviço da prefeitura, uma psicóloga. Falamos de muita coisa mas do que eu me recordo mesmo é do momento em que ela disse: "Aqui tá todo mundo adoecido de ansiedade, de depressão. A maioria depende de remédio tarja preta pra viver". 

Na época, sabia muito pouco sobre saúde mental e achava que ansiedade era coisa de cidade grande e acelerada. Na minha cabeça, a imagem dos campos verdes, coalhados de casinhas bem pintadas, vizinhas de cachoeiras, não batia com a ideia que eu tinha de um ambiente onde as pessoas estariam tomando remédio para controlar ansiedade ou depressão.

Aquilo que não pude entender acendeu uma lista de perguntas, que mais tarde se transformaram em um mini documentário em vídeo, depois em um trabalho de conclusão de curso e agora, dois anos mais tarde, na série de reportagens sobre tabaco e saúde mental que fiz junto com os repórteres Manoela Bonaldo e André Picolotto. Buscamos compreender por que pequenas cidades isoladas no Sul do país amargam altos índices de suicídio, bem maiores do que a média nacional, e o que faz com que o consumo de medicamentos psiquiátricos tenha entrado para a cultura de gerações e gerações de agricultores. 

Nessa busca, chegamos às roças de fumo e ao sistema de cultivo que faz do Brasil o maior exportador mundial de tabaco. De sol a sol, cerca de 150 mil famílias cultivam e colhem o fumo – manualmente. Mais de 98% da produção nacional está concentrada nas áreas rurais de pequenos municípios nos estados do Rio Grande do Sul, Paraná e Santa Catarina. Municípios como Leoberto Leal, onde conheci a psicóloga. 

Para esta série, viajamos para três municípios cuja economia é centrada no cultivo do fumo, onde pudemos tomar longos cafés da tarde com fumicultores que viviam às custas de antidepressivos, sentindo diariamente o preço que o fumo cobra da saúde mental. O alerta vermelho para depressão, ansiedade e até suicídios é uma realidade conhecida onde se planta o tabaco. Mas nós queríamos entender por quê.

O sofrimento mental sempre é causado por múltiplos fatores, nos disseram todos os especialistas com quem conversamos. No cultivo do fumo, alguns denominadores comuns criam um cenário onde fatores de risco para a saúde mental se amontoam. Contato frequente e intoxicação com agrotóxicos, jornadas exaustivas de trabalho, privação de sono, insegurança quanto ao pagamento anual da safra, endividamento e dependência da indústria do cigarro são alguns dos fatores que pudemos compreender depois de mais de 20 entrevistas e uma dezena de pesquisas consultadas. 

Para quem “planta fumo desde que se conhece por gente”, uma fala frequente entre fumicultores, o caráter nocivo do trabalho sempre foi naturalizado e não impede que eles continuem realizando a atividade aprendida com os pais. Nessas famílias, plantar fumo é tradição antiga, e o “sofrimento dos nervos”, como dizem, também é velho conhecido. 

Depois de anos de trabalho, algumas doenças não se escondem com medicamentos, ouvimos. Às vezes, além de atingir a psique, o adoecimento chega ao sistema nervoso. Na série, contamos casos de fumicultores que, depois de lidarem com quadros depressivos por anos, desenvolveram em paralelo doenças neurológicas que os impediram de trabalhar e fazer alguns movimentos – pra sempre. Pessoas que, segundo laudos médicos, adoeceram por conta de condições impostas pelo modelo de cultivo do fumo

Mas também conversamos com quem resolveu largar o cultivo. Desde 2005, o Brasil se comprometeu em uma convenção internacional a oferecer apoio para que fumicultores encontrem outra forma de renda. No entanto, ainda há uma série de obstáculos e pressões que aparecem no caminho das políticas de diversificação de cultivo, como contamos em uma das matérias

Durante a apuração das reportagens, encontrei algumas respostas para as dúvidas que me surgiram na pequenina cidade catarinense. Outras respostas, contudo, ainda estão por vir. Mas é bom seguir com perguntas, afinal, é a partir delas que podemos seguir jornalistando por aí. 
Clarissa Levy é repórter da Pública

Rolou na Pública

Tabaco e saúde mental. reportagem abordada na newsletter de hoje foi republicada pelo eCycle, pelo MSN e pelo Polígrafo, nosso parceiro de Portugual. 

Facebook Papers. Na semana passada, publicamos reportagem mostrando denúncias de funcionários do Facebook sobre negligência da plataforma com relação à desinformação climática. A matéria saiu no iGOpera MundiBrasil 247 e no site espanhol Tercera Información.

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