terça-feira, 11 de janeiro de 2022

Justiça da Argentina vai investigar crime da ditadura brasileira

 

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    Denúncia foi feita por organização de direitos humanos brasileira e pelo prêmio Nobel da Paz Adolfo Pérez Esquivel; desaparição forçada ocorreu em 1971

    JANAINA CESAR

    Roma (Itália)

    A Justiça da Argentina determinou a abertura de uma investigação para apurar a responsabilidade pelo sequestro e desaparecimento do brasileiro Edmur Péricles Camargo, ocorrido em Buenos Aires, no dia 16 de junho de 1971. O militante, que vivia exilado no Chile, era perseguido pela ditadura militar brasileira (1964-1985). 

    decisão, publicada no dia 30 de dezembro, veio após a justiça acatar uma denúncia apresentada pelo presidente do Movimento de Justiça e Direitos Humanos (MJDH), Jair Krischke, e pelo ativista e Prêmio Nobel da Paz argentino, Adolfo Pérez Esquivel. 

    Camargo, que integrou a Aliança Libertadora Nacional (ALN), grupo guerrilheiro liderado por Carlos Marighella, foi um dos presos políticos trocados na libertação do ex-embaixador suíço Giovanni Bucher, sequestrado pela organização armada Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), em 1970.  

    Edmur Péricles Camargo ao ser preso/ Reprodução

    Após se exilar no Chile, o militante foi preso clandestinamente no Aeroporto de Ezeiza, província de Buenos Aires, em 1971, durante uma escala do voo que havia saído de Santiago com destino a Montevidéu, e entregue às autoridades brasileiras que o estavam esperando.  

    Em entrevista a Opera Mundi, o presidente do MJDH explicou que Camargo foi transportado por brasileiros até o aeroparque Jorge Newbery (uma base da Força Aérea Argentina) e colocado, no dia seguinte, em um avião da Força Aérea Brasileira (FAB) com destino ao Rio de Janeiro.  

    "Nós precisamos saber quem eram as autoridades que estavam no comando do aeroparque naquele dia, quem autorizou o ingresso do avião da FAB no espaço aéreo argentino, assim como quem eram os passageiros, o comandante e a tripulação do voo [que ia a Montevidéu]", afirma Krischke. 

    A denúncia feita por Krischke e Esquivel cita os brasileiros Sebastião José Ramos de Castro, general da reserva, ex-chefe do Serviço Nacional de Informação (SNI), Miguel Cunha Lana, coronel aviador, e Paulo Sérgio Nero, diplomata e ex-chefe do Centro de Informações no Exterior (CIEX), em Buenos Aires, e pede à Justiça que identifique os agentes da ditadura argentina envolvidos no crime.  

    Arquivo CNV
    Militante da ALN foi preso clandestinamente no Aeroporto de Ezeiza, província de Buenos Aires, em 1971

    Apesar de a denúncia ter sido apresentada ainda em novembro de 2021, o caso sofreu alguns contratempos após o Ministério Público alegar que a ação não poderia tramitar no tribunal de Lomas de Zamora, cidade vizinha à capital Buenos Aires, onde está localizado o aeroporto no qual Camargo foi sequestrado.

    Segundo a procuradoria, as investigações deveriam ocorrer na corte de Buenos Aires, já que os processos relacionados à Operação Condor ficam todos a cargo da justiça portenha. Entretanto, após os requerentes contestarem a posição do MP, a Justiça determinou, em 30 de dezembro, que as investigações fiquem a cargo da jurisdição de Lomas de Zamora, o que permitirá finalmente que as investigações avancem. Como janeiro é mês de férias judiciais na Argentina, o processo deve seguir só em fevereiro.

    Apesar disso, Krischke se diz muito satisfeito com o andamento do caso pois a denúncia foi aceita pela justiça argentina em menos de um mês após sua apresentação. “A Argentina pune seus torturadores, o [ex-ditador argentino Jorge Rafael] Videla morreu na cadeia”, relembra o presidente da MJDH.

    Presidente do Movimento de Justiça e Direitos Humanos (MJDH), Jair Krischke/ Reprodução

    Operação Condor

    A prisão de Camargo em Buenos Aires mostra que os aparatos da repressão das ditaduras do Brasil e Argentina já se ajudavam mutuamente em 1971, quatro anos antes da oficialização da Operação Condor, a infame rede de colaboração entre as agências de inteligência das ditaduras do cone sul que perseguia, prendia e exterminava opositores políticos. 

    “A operação foi batizada em novembro de 1975 em Santiago do Chile, mas a prática já existia e quem a criou foi o Brasil”, diz Krischke.

    O ativista lembra que a Condor “foi implementada pelo embaixador Manoel Pio Corrêa Júnior, que era um agente da CIA, a partir da criação do Centro de Informações do Exterior (CIEX), na embaixada do Uruguai, em 1966”. 

    “Foi ele quem criou esse monstro e o criou dentro do Itamaraty. O CIEX chamava a prática de Plano de Busca no Exterior”, conta Krischke.

    Investigações da Condor da Itália

    A ação que corre na Argentina não é a primeira a apurar crimes da ditadura brasileira. Em novembro de 2021, a Justiça italiana encerrou por motivo de morte um processo penal que corria há seis anos em corte romana contra o coronel Átila Rotzer. A sentença de primeiro grau do caso seria dada em outubro, mas o coronel faleceu dois meses antes. Porém, mesmo diante do encerramento do caso, a corte italiana se manifestou dizendo que “não havia elementos para absolvê-lo no mérito”.  

    Se fosse vivo, Átila teria sido condenado à prisão perpétua pelo sequestro, morte e desaparecimento do cidadão ítalo-argentino Lorenzo Vinas, ocorrido em Uruguaiana em 1980, e teria se tornado o primeiro brasileiro condenado por um crime ligado à operação Condor. 

    Além de Átila também estavam sendo julgados os ex-agentes militares João Osvaldo Leivas Job, Carlos Alberto Ponzi e Marco Aurélio da Silva. Para a corte romana, “a avaliação conjunta dos depoimentos e documentos que foram depositados no julgamento levam a delinear de forma unívoca o papel do Brasil no trágico caso e ainda o envolvimento direto e consciente de Silva, Ponzi, Leivas Job e Átila nas respectivas funções''. Todos os envolvidos morreram antes de serem condenados. 

    O processo contra os brasileiros era um desmembramento do caso Condor que condenou em 9 de julho de 2021, em terceira e última instância, 14 torturadores (11 uruguaios e 3 chilenos) à prisão perpétua por crimes cometidos contra cidadãos italianos durante as ditaduras do cone sul.

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