O provável revés de Jair Bolsonaro nas urnas não o condenará à morte política. Mesmo derrotado, Bolsonaro seguirá ameaçando a democracia brasileira. O alerta é do filósofo Marcos Nobre, professor da Unicamp e presidente do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, o Cebrap. A performance antissitema do ex-capitão, que mantém a faixa graças a tenebrosos acordos com o Centrão e a guarida das Forças Armadas, não é mera afetação. "No fundo, para ele, sistema é a democracia", diz. "Aos poucos, ele pensa em convencer sua base antissistema, que não é inteiramente autoritária, que o projeto autoritário é o caminho do Brasil." Este processo, defende, só fracassará ao fracasso se a maioria dos brasileiros escolher permanecer na democracia. "Precisamos de uma união de forças do campo democrático para dizer: 'não vamos aceitar um golpe'. Se 70% ou 75% da população brasileira disser em alto e bom som que não aceita golpe, não há quem dê golpe"
Nobre, que acaba de lançar Limites da Democracia - de junho de 2013 ao governo Bolsonaro (Todavia), prevê ainda que, mesmo derrotado, Bolsonaro volte a se candidatar. "Estará em 2026 esperando o que ele plantou, a destruição." Confira, a seguir, os destaques da entrevista. CartaCapital: No livro, o senhor diz que Bolsonaro deixa os outros governarem e que ele só intervém quando há risco de prejudicar a sua base. Por que, então, ele quis ser presidente? Marcos Nobre: Para transformar o Brasil em um país autoritário e para destruir a democracia. Ele está seguindo um roteiro traçado há muito tempo por ele e pelo grupo apoiador dele. A tática de candidato antissistema que ele teve em 2018 se transforma em um presidente antissistema. CC: Como um presidente, que dirige o sistema, pode ser antissistema? MN: É justamente este o ponto importante da tática dele, de dizer que, sim, ele ganhou a eleição, mas isso não é suficiente para mudar ou destruir o sistema, que continua funcionando mesmo com ele presidente. Lá nos Estados Unidos, com o Donald Trump, eles falam no estado profundo, no deep state, que, na teoria deles, não se controla e não se consegue mudar. É a mesma coisa que o Bolsonaro faz aqui. Basta pensar qual foi o presidente na história do Brasil, talvez mundial, que chamou uma CPI contra uma estatal que ele próprio dirige. Ele se comporta como se ele não dirigisse. No fundo, para ele, sistema é a democracia. Aos poucos, ele pensa em convencer sua base antissistema, que não é inteiramente autoritária, que o projeto autoritário é o caminho do Brasil e, a partir da organização que ele tem de rede social, que eu chamo de partido digital bolsonarista, conseguir de fato destruir a democracia brasileira. Este é o objetivo dele. CC: Esse modelo antissistema é sustentável? MN: Isso depende de como as pessoas votam, mas não só disso. Para um democrata, a eleição não é tudo, mas é o momento em que um certo processo se encerra e um outro se inicia. Para Bolsonaro, não, é uma escadinha em que se usa para um objetivo que não é a democracia. Esse processo só estará fadado ao fracasso se a opção da maioria das pessoas for permanecer na democracia, mas não podemos subestimar o risco de um candidato abertamente autoritário e golpista que ainda tem 30% de apoio. Também temos que pensar o seguinte: se o Bolsonaro for derrotado eleitoralmente em outubro, o partido digital bolsonarista não vai deixar de existir por causa disso e vai fazer uma oposição que é desleal. Uma oposição leal é dura, mas é dentro da democracia. Já uma oposição que não tem compromisso com a democracia, não tem limite do que pode fazer em termos de recorrer à violência, de campanhas de massacre nas mídias digitais, perseguição e ameaças de morte. Ou seja, teremos uma oposição no Brasil, caso Bolsonaro seja derrotado, extrema e antidemocrática. Em 2026, é possível que quem for eleito vencendo o Bolsonaro consiga reconstruir o País que foi destruído pelo Bolsonaro em quatro anos? É uma tarefa hercúlea. O Bolsonaro estará em 2026 esperando o que ele plantou, que foi destruição. Precisamos estar atentos também ao golpismo de Bolsonaro. Pode ser um golpe clássico, daqueles que põem os tanques nas ruas, pode, mas é o menos provável. É possível que forças de segurança saiam às ruas contra o resultado eleitoral. Na Bolívia aconteceu isso e produziu um caos social duradouro. Pode ser também que haja paralisação de caminhoneiros. Mas golpe pode ser também o Bolsonaro continuar organizando esse partido digital de uma maneira organicamente autoritária para esperar 2026, que é o mesmo projeto do Trump nos Estados Unidos. CC: Esse temor não parece estar presente nos discursos dos candidatos de oposição, que se voltam a questões econômicos e sociais. MN: Há sinais contraditórios. Na maior parte do tempo, tratam a eleição com uma normalidade de se levar em conta somente o cálculo eleitoral. No entanto, o jogo eleitoral não é o do Bolsonaro. O jogo dele é o golpe. É como se um estivesse jogando basquete e o outro futebol. Como o Bolsonaro está jogando basquete, ele pode pegar a bola com a mão e quem fica jogando só com o pé leva desvantagem. Tem uma diferença do jogo que está sendo jogado. É importante que se tenha uma concertação das forças realmente democráticas para além das eleições. Tem que haver um pacto contra o golpe. Já passamos da fase de nota de repúdio e defesa da democracia. Deve ser 'o Brasil contra o golpe'. Precisamos de uma união de forças de todo o espectro político dentro do campo democrático para dizer: 'não vamos aceitar um golpe', porque se 70% ou 75% da população brasileira disser em alto e bom som que não aceita golpe não há quem dê golpe. Mas é preciso que essa expressiva maioria democrática se expresse de maneira clara. Não chegamos aonde precisamos chegar, do ponto de vista do enfrentamento da ameaça atual. CC: Na obra, o senhor trata das manifestações de 2013, da Lava Jato, do impeachment da Dilma e chega a Bolsonaro. Há, a seu ver, uma relação direta entre esses episódios? MN: São determinadas decisões e sobretudo omissões, principalmente por parte do sistema político, que vão nos levando progressivamente para esta situação que nos encontramos. É um processo de construção em que os erros se acumulam. Da mesma maneira como 2013 foi entendido pelo PT, que estava no poder, como uma ameaça e não como uma oportunidade para reformar o sistema político, terminada a eleição de 2014, o candidato derrotado, Aécio Neves (PSDB), acha que pode usar essa força de 2013 para ganhar a eleição. Pela primeira vez, desde o Plano Real, um candidato não aceita o resultado e acusa a eleição de fraudulenta e começa a insuflar manifestações de rua. Como essa força que saiu às ruas em 2013 não encontrou canais no sistema político para se expressar, se formou na sociedade um sentimento antissistema que foi se tornando orgânico e que teve, por exemplo, uma das suas expressões na operação Lava Jato, que vampirizou essa energia prometendo fazer a reforma política que o sistema político não fez quando é evidente que o Judiciário não pode fazê-la, principalmente a primeira instância. Aí se criaram no Brasil dois polos de poder: o institucional do sistema político, blindado contra a sociedade, e uma força política, que eu chamo de oposição extrainstitucional, que empareda o sistema político que, neste momento, perdeu o controle da política. Ao mesmo tempo, o controle não passou para essa oposição extrainstitucional e nós ficamos em um cabo de guerra pelo controle da política entre 2015 e 2018. Foi isso que preparou a chegada do Bolsonaro: de um lado, uma resposta desastrosa do sistema político, em particular do PT, em 2013, e depois uma reação desastrosa do sistema político que resolve oferecer o PT em sacrifício para ver se consegue escapar dessa situação de cabo de guerra. Uma decisão mais catastrófica do que a outra. CC: Por que todo esse movimento desaguou em Bolsonaro? MN:Bolsonaro não é acaso, mas surfou uma onda. Ele era o único que tinha uma prancha para surfá-la, pois tinha uma candidatura antissistema. Essa oposição extrainstitucional, que se formou entre 2015 e 2018, não se organizou para ter uma candidatura antissistema em 2018. Ela era muito variada e os grupos eram muito isolados, sem articulação política necessária. Uma parte foi para o partido Novo, outra para o PSL, o PSC. Acontece que essa oposição extrainstitucional, por definição, precisa de uma candidatura antissistema, um outsider, e que não foi capaz de se unificar em uma candidatura democrática para se apresentar na eleição de 2018. Quando chega em abril daquele ano, tem uma só candidatura organizada, que é a de Bolsonaro. Portanto, é uma conjunção de fatores que leva a Bolsonaro. Não que ele seja um acidente, mas é aquele que estava melhor organizado e tinha a prancha pra pegar a onda que havia se levantado entre 2015 e 2018. CC: Lula está livre e as pesquisas têm mostrado seu favoritismo, com chances de vitória em primeiro turno. O que mudou? MN: Eu não sei se mudou tanto assim. Se voltarmos lá para março de 2019, o Ibope lança três pesquisas feitas em janeiro, fevereiro e março daquele ano sobre a aprovação do governo Bolsonaro e a sua avaliação. Ali, vemos uma queda vertiginosa em três meses. A partir daquele momento e a chegada da pandemia ao País, a aprovação do presidente se divide em, mais ou menos, três terços. Um terço de ótimo e bom, um terço de rejeição e outro de regular. A partir da chegada da pandemia, nós temos um aumento grande da rejeição, que sai de um terço para algo próximo de 60%. Isso acontece porque quem está no regular vai para a rejeição. No momento em que há duas candidaturas consolidadas, a tendência é que essa rejeição se transforme em votos a favor de Lula. No entanto, é importante prestarmos atenção que a base de apoio de Bolsonaro, que é algo em torno de 30%, é muito significativa e não inviabiliza a sua sobrevivência política. Não é porque Bolsonaro poderá ser derrotado eleitoralmente que politicamente ele será derrotado. O partido digital bolsonarista continuará atuando de maneira desleal e ele conseguiu convencer essa base de que ele é o único representante antissistema e antiestablishment. O campo democrático precisa se unificar para isolar a extrema-direita no Brasil, que é um perigo permanente quando tem força. Nós não podemos subestimar o fato de que, caso Bolsonaro venha a ter uma ordem de prisão contra ele, que as milícias bolsonaristas implantem o caos para que ele não seja preso. A única coisa que acho importante é que a gente tenha clareza de que o Bolsonaro e o bolsonarismo não irão desaparecer com uma derrota eleitoral. Tem muita gente achando que está tudo resolvido, basta Bolsonaro perder a eleição. Tem um País para ser reconstruído. Seja qual for o governo que assumir, se não constituir um governo coeso e homogêneo, não se dirigir para uma distribuição de renda efetiva – em que haja perdedores e ganhadores – não democratizar a democracia, Bolsonaro vai estar esperando em 2026 para colher a destruição que ele plantou. CC: De um outro governo Bolsonaro, poderíamos esperar o quê? MN: O fim da democracia, pois o Bolsonaro vai dizer: 'vocês podem ter dito que a minha eleição em 2018 foi acaso, mas se eu vencer de novo não foi acaso. E se eu ganhar de novo isso significa que o País quer um governo autoritário'. Daí, ele vai começar a fechar o regime por dentro, que é o típico autoritarismo que surgiu nos anos 2010 no mundo inteiro. Claro que Bolsonaro já destruiu boa parte das instituições que devem ser reconstruídas, mas ainda não conseguiu aparelhar todas elas. Os próximos passos dele serão tomar o Supremo Tribunal Federal, refazer esse tipo de acordo que fez com o Congresso e tentando restringir o direito de voto das pessoas que votam contra ele. Está é ameaça que temos diante de nós. |
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