Herton Escobar, Jornal da USP
Chegaram a dizer que eles estavam mortos, ou nem mesmo existiam; como um “fake news” da ciência. Nada disso. Os recifes da Amazônia existem, sim; estão vivos e passam muito bem, obrigado — pelo menos por enquanto —, segundo um novo trabalho publicado por cientistas da Universidade de São Paulo (USP) e outras cinco universidades públicas de pesquisa, na revista Scientific Reports.
As conclusões são baseadas na datação de rochas e organismos que compõem os recifes marinhos localizados na foz do Rio Amazonas, entre os Estados do Maranhão e do Amapá. Descobertos há apenas cinco anos, eles formam o que os cientistas hoje chamam de Grande Sistema de Recifes do Amazonas (GARS, em inglês), com 56 mil quilômetros quadrados de extensão — do tamanho do Estado da Paraíba.
Assim como no caso da Grande Barreira de Corais da Austrália, não se trata de um único gigantesco recife, mas de uma grande rede de ambientes recifais que se conectam ecologicamente, formando o que os pesquisadores acreditam ser um “corredor de biodiversidade” entre o Mar do Caribe e o Atlântico Sul.
“É uma área extremamente complexa, com uma diversidade enorme de habitats”, diz o pesquisador Ronaldo Francini Filho, da Universidade Federal da Paraíba.
A descoberta causou surpresa mundial em 2016 — pois muitos não acreditavam ser possível haver um ecossistema desse tipo debaixo da pluma de água doce e barrenta do Amazonas — e acabou gerando uma situação de conflito entre cientistas, ambientalistas, políticos e empresas privadas, interessadas em explorar petróleo e gás na região. A organização não-governamental Greenpeace abraçou a causa e lançou uma campanha mundial pela proteção dos “corais da Amazônia”, exigindo a exclusão de atividades petrolíferas do local.
Vídeo com imagens da biodiversidade dos recifes do Amazonas
Nesse contexto, alguns pesquisadores passaram a questionar a existência do GARS, argumentando que não havia luz suficiente debaixo da pluma para sustentar um ecossistema recifal e que os tais recifes, na verdade, eram estruturas pré-históricas, sem vida, já mortas e soterradas pela lama. Parlamentares, militares, empresários e alguns cientistas da região começaram a se referir aos recifes como fake news.
Não faltam evidências, porém, da existência deles, incluindo centenas de horas de vídeo, fotografias, imagens de sonar, amostras físicas de rochas, sedimentos e organismos marinhos de diversos tipos. O trabalho que sacramentou a descoberta, em abril 2016, na revista Science Advances, é assinado por 39 pesquisadores, de 14 instituições; e vários outros estudos já foram publicados sobre o GARS desde então, aprofundando o conhecimento científico sobre ele. Uma descrição mais detalhada foi publicada em abril de 2018, na revista Frontiers in Marine Science.
“É um debate entre opiniões e evidências científicas”, diz o pesquisador Eduardo Siegle, do Instituto Oceanográfico (IO) da USP, coautor de diversos trabalhos sobre os recifes.
“Negar a existência dos recifes é como negar o desmatamento da Amazônia”, compara Francini Filho, que foi o primeiro cientista a mergulhar na região com um minissubmarino (o Deep Worker, do Greenpeace) e ver os recifes do Amazonas com os próprios olhos, em 2017. “Realmente, causa perplexidade ver alguns colegas assumirem essa posição.”
A questão da disponibilidade de luz já foi resolvida por um estudo publicado no ano passado, na revista Continental Shelf Research, mostrando que, mesmo nas regiões mais densas da pluma, há uma incidência mínima de luminosidade sobre o leito marinho, que é suficiente para manter um ecossistema recifal funcionando.
Já esse novo estudo, publicado dia 23 na Scientific Reports, desmonta o argumento de que os recifes estão mortos, usando datações diretas de sua estrutura para demonstrar que eles continuam crescendo, em todos os setores do GARS, de norte a sul.
“Mesmo debaixo da pluma, os recifes estão vivos”, destaca Michel Mahiques, professor do IO-USP e especialista em sedimentologia marinha, que liderou o estudo. “Datamos diretamente o calcário dos recifes, e não há dúvida de que eles estão crescendo.”
Ele ressalta que as datações foram realizadas no laboratório Beta Analytics, nos Estados Unidos, “considerado o maior laboratório comercial para cronologia de radiocarbono no mundo”, e que a coleta das amostras foi realizada a bordo do Navio Hidroceanográfico Cruzeiro do Sul, da Marinha do Brasil, “seguindo os mais estritos padrões de amostragem oceanográfica”.
Historicamente, os resultados indicam que os recifes começaram a se formar no setor norte do GARS (o mais escuro atualmente, por conta da pluma de sedimentos do Amazonas, que flui principalmente naquela direção), entre 14 mil e 12 mil anos atrás. Depois, pararam de crescer por um período de 5 mil anos, em que o nível do mar subiu rapidamente, intensificando os efeitos da pluma. A partir de 7 mil anos atrás, em condições mais favoráveis, voltaram a crescer e começaram a se espalhar para o sul, até atingir sua configuração atual.
Animação da Nasa mostra a dinâmica da pluma de água doce do Rio Amazonas – Fonte: Nasa Salinity
Nesse ponto, é importante entender o que é um recife e como ele funciona. Recifes são estruturas rígidas de origem biótica — ou seja, construídas por organismos vivos, via deposição de carbonato de cálcio — que servem de habitat para diversas espécies de fauna e flora marinha.
Os mais famosos são os recifes coralíneos, construídos e cobertos por corais, como os clássicos recifes coloridos de águas rasas do Caribe e da Austrália. Mas eles não são os únicos. Muitos recifes, especialmente os que crescem em ambientes mais fundos e menos luminosos (chamados mesofóticos), como é o caso de muitos recifes brasileiros, são construídos por algas calcárias e outros organismos, que também depositam carbonato de cálcio, mas não precisam de tanta luz para sobreviver. Eles podem até ter corais crescendo sobre eles, mas isso não significa que os corais sejam seus principais construtores. Fazendo uma analogia, é como se o coral fosse um inquilino, vivendo num prédio construído por outros organismos.
Esse é o caso dos recifes do Amazonas, que são estruturas construídas principalmente por algas calcárias, em ambientes mesofóticos e rarifóticos (entre 70 e 220 metros de profundidade, na sua maioria), com baixa ocorrência de corais — mas que, mesmo assim, sustentam uma grande diversidade de vida marinha.
Por isso, mesmo concordando com a necessidade de proteção, muitos pesquisadores discordam do slogan “corais da Amazônia”, usado pelo Greenpeace — já que os corais, de fato, não são os organismos predominantes nesse ecossistema. “Isso dá brecha para os negacionistas dizerem que os recifes não existem”, reclama Mahiques. “Funciona bem para o Greenpeace, mas não ajuda quem faz ciência. O mais importante, nesse caso, não são os corais, mas toda a biodiversidade marinha que esses recifes possibilitam existir ali.”
Os pesquisadores acreditam que o GARS funciona como uma ponte — ou mais simbolicamente, um túnel — entre os ecossistemas marinhos do Caribe e do Atlântico Sul, permitindo que espécies transitem de uma região para outra, passando por baixo da pluma do Amazonas; o que ajudaria a explicar algumas semelhanças entre a biodiversidade marinha daqui e de lá.
Eles estimam que só 5% desse grande sistema foi investigado cientificamente até agora. Ou seja, há muita coisa para se descobrir ainda.
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