O
medo da "Ley de Medios" no Brasil
Por Valéria
Nader e Gabriel Brito, no Correio da Cidadania:
Após cinco anos de sua idealização, a Argentina
conseguiu concretizar a vigência de uma nova Lei de Mídia, redigida a fim de
regulamentar a arena das comunicações e reordenar a ocupação do espectro
eletromagnético, quebrando os monopólios da mídia comercial. Neste contexto,
vários anos se passaram com os mesmos grupos empresariais dominantes
bombardeando o governo de Cristina Kirchner, que estaria a “atentar contra a
liberdade de expressão”.
Dessa forma, é para elucidar a chamada Lei de Serviços
de Comunicação Audiovisuais que o Correio da Cidadania entrevistou o estudioso
das comunicações, e editor da revista Caros Amigos, Laurindo Lalo Leal Filho.
Com anos de estudo sobre os diferentes níveis de regulação midiática
encontrados mundo afora, Lalo assegura que a nova lei é da mais alta
consistência, além de amplamente debatida na sociedade: “são dois os grandes
aspectos: o teórico-acadêmico e o da sustentação política”.
Como se trata de uma legislação que assegura grande
parte das concessões audiovisuais para veículos de comunicação estatais e
comunitários, abrindo grande campo para que movimentos e expressões sociais,
inclusive minoritários, se manifestem, não foi nada imprevisível o rancor da
mídia burguesa, cujos veículos comerciais se apresentam como únicos arautos da
democracia.
“A Sociedade Interamericana de Imprensa (órgão que
representa a mídia comercial nas Américas) é uma organização que não possui
nenhuma legitimidade em relação à sociedade e às populações sobre as quais ela
pretende influenciar. É uma organização empresarial, de um setor comercial das
comunicações, defendendo os interesses de quem representa”.
Para avançarmos no debate da democratização das
comunicações, Laurindo Lalo também recomenda que a lei argentina seja estudada
nas escolas de comunicação do país, o que poderá gerar uma real compreensão de
sua importância. Uma boa saída para o Brasil, haja vista nosso atual estágio de
monopólio midiático, ao lado das dificuldades a serem enfrentadas para a
aprovação de uma lei com tal conteúdo em um Congresso densamente permeado pelos
interesses dos donos de concessões rádio-televisivas.
“Acredito que não só este governo, mas todos têm um
receio muito grande de enfrentar esses poderosos grupos de comunicação. Acho
que o fantasma do golpe de 64 perdura até hoje. É uma disputa bastante difícil,
mas que aqui no Brasil já está passando da hora”.
A entrevista completa com o jornalista pode ser lida a
seguir.
-Como o senhor
analisa o projeto da Lei de Serviços de Comunicação Audiovisuais, promulgada
pelo governo argentino em 2009 e que passou a vigorar a partir do último dia 7
de dezembro, ainda que sob embargo de instâncias intermediárias da justiça
local?
Por ora está embargado, é preciso aguardar um pouco,
mas nos próximos tempos devemos ter nova decisão. De toda forma, avalio que
essa lei de regulação audiovisual é a mais moderna e avançada de todo o mundo
no momento. Serve como exemplo para a América Latina. São dois os objetos
centrais da formulação da lei – de 2007. O primeiro é de que foi construída a
partir de uma ampla análise jurídica e até acadêmica das legislações hoje
existentes em países democráticos de todo o mundo, em relação à radiodifusão. Ela
incorpora o que há de mais moderno e avançado em legislações da Europa, EUA e
até América Latina.
A lei é muito consistente do ponto de vista teórico,
pois, incorporando um pouco de cada uma das leis estudadas, avança para além
delas, inclusive sobre os recentes avanços tecnológicos, respondendo também às
exigências tecnológicas de hoje. Tenho dito que é muito importante que as
escolas de comunicações estudem essa lei, discutindo-a com seus alunos, pois a
partir daí vão descobrir como os países democráticos estão estruturados para
dar conta das novas tecnologias da comunicação hoje em dia, no campo do
audiovisual.
O segundo aspecto que dá consistência à lei é o fato de
ter sido formulada através de um amplo debate na sociedade. É uma lei
claramente construída de baixo pra cima. Quem tiver paciência de olhá-la por
inteiro, poderá perceber que vários artigos e determinações são oriundos de
propostas feitas por entidades do movimento social, dentre outras
representações da sociedade, incluindo empresariais. Não foi formulada por um
grupo fechado, de políticos ou acadêmicos, e imposta à sociedade. Começou com
algumas e chegou, ao final de sua elaboração, a contar com praticamente 300
organizações sociais. É uma lei amplamente democrática, consolidada a partir da
vontade popular.
Portanto, são dois os grandes aspectos: o
teórico-acadêmico e o da sustentação política.
-A seu ver,
quais são os pontos mais importantes e que justificariam a aprovação da “Ley de
Medios”?
O primeiro e mais polêmico, que segue dando pano pra
manga e foi o que mais dificultou a aprovação da lei, é aquele que rompe um
processo não só argentino, mas latino-americano, de concentração dos meios de
comunicação nas mãos de poucos grupos. Esse é o aspecto central, pois faz com
que a lei amplie a liberdade de expressão na Argentina. Ou seja, um espectro
eletromagnético hoje ocupado por poucos grupos passa a ser ocupado por um
número maior de atores. Setores da sociedade que estão calados por não terem
espaço de colocarem suas vozes terão agora a oportunidade. Como diz o documento
“Hablemos todos”, todos têm o direito de falar.
Assim, esse é o aspecto prático mais importante da lei,
dividindo o espectro de forma mais equilibrada, seja para as emissoras
públicas, estatais ou comerciais. É uma lei que amplia a liberdade de expressão
ao mesmo tempo em que quebra monopólios. Isso tem um desdobramento político
muito importante porque representa um aprofundamento da democracia. Não é só
uma questão do campo das comunicações. Quando se amplia o número de vozes,
idéias e valores, amplia-se a participação democrática da sociedade. Exemplo
disso é o ponto que garante o espaço também para os grupos originários, como o
de Bariloche, cujo grupo de habitantes de povos originários está colocando no
ar sua emissora de TV. Um grupo que sempre esteve calado. Mas, com um terço do
espaço reservado às emissoras públicas, agora também poderão falar à sociedade.
Portanto, esse é o aspecto fundamental, a voz a setores
sempre silenciados. Mas existem outros, como a garantia da produção nacional, o
que abre espaço a muitos grupos que querem mostrar seu trabalho. Há a
classificação indicativa estabelecida em lei, porcentagens máximas de
publicidade, enfim, uma série de aspectos, todos voltados não só ao aumento da
participação pública, mas também à qualidade do que é oferecido ao público.
-Como se viu,
é necessário um grande movimento para levar adiante um combate aos monopólios
midiáticos, tocando fortes interesses políticos e econômicos com diversos
tentáculos de influência. O que teria a dizer, neste sentido, da decisão
parcial da justiça de permitir que o grupo Clarín siga adiando seu processo de
desmembramento, no qual deve abrir mão de boa parte de seus veículos de
comunicação?
O grupo Clarín, como o grupo Globo aqui, foi ocupando
os espaços, gradativamente, pela falta de uma presença mais forte do Estado na
regulação. Quando o espaço estava vazio, era como um terreno baldio, e foi se
criando o latifúndio. E depois se consolidou um grupo muito forte, como se viu,
com 240 concessões de TV a cabo, 4 de TVs abertas, 9 emissoras de rádio AM e
FM... É um grupo que tem um poder econômico e político muito grande.
Se fosse qualquer outro ramo social ou comercial,
poderia ter só o poder econômico. O problema nas comunicações é que, quando se
detém o poder econômico, também se detém o poder político. É um poder muito
grande, que sempre se confrontou com o Estado, jogando muita influência sobre
os outros poderes, isto é, o legislativo e judiciário. O poder judiciário
também sofre muitas pressões do grupo Clarín. A lei foi promulgada em outubro
de 2009 e até agora não se conseguiu aplicá-la pelas diversas ações promovidas
pelo grupo Clarín sobre os vários poderes.
Superados pelo executivo e legislativo, que já deram
vigência à lei (o judiciário também, em suas instâncias maiores), restam as
instâncias intermediárias do judiciário para pressionar e conseguir recursos no
sentido de adiar a aplicação da lei. O que acontece agora é uma disputa entre
um grupo poderoso e os poderes da República.
-O que você
responderia aos setores críticos da lei, inclusive aqueles do próprio meio
midiático, como a Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP)?
A Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP) é uma
organização que não possui nenhuma legitimidade em relação à sociedade e às
populações que ela pretende influenciar. É uma organização empresarial, de um
setor comercial das comunicações, defendendo os interesses de quem representa.
Quer defender os mercados nos quais atua. Portanto, não tem sustentação
política alguma.
É uma organização comercial, que tem a sustentá-la
empresas comerciais da América que sempre sustentaram governos conservadores e
até ditaduras. As ditaduras da América latina, dos jornais e da própria SIP.
Basta lembrar que ela foi fundada durante a ditadura de Fulgencio Batista,
antes da revolução cubana. Tem uma articulação com os regimes conservadores de
direita muito grande.
Na verdade, quando esses governos populares da América
Latina – como os da Argentina, Bolívia, Equador, Venezuela – começaram a
colocar algum limite ao poder de seus filiados, a SIP obviamente saiu em defesa
deles. Mas é uma defesa de mercado, não tem nada a ver com cidadania, liberdade
de expressão, de imprensa. Tem a ver com os interesses comerciais das empresas
que a SIP representa.
Ainda quanto às críticas à nova lei, e talvez nesse
mesmo sentido explicado, a maioria dos meios de comunicação de nosso país
bombardeia que, a despeito de serem razoáveis as precauções contra o monopólio
das comunicações, o que se vê na Argentina é uma “descarada perseguição movida
pela presidente Cristina Kirchner contra um grupo de mídia, o Clarín, cujo
principal pecado é publicar reportagens e opiniões que a desagradam” (segundo
Editorial da Folha de S. Paulo, 09/12/2012). O que diria frente a um argumento
desta natureza
É uma forma de distorcer o debate, ofuscar o debate
real. A mídia ressalta essa divergência existente entre o governo e o grupo
Clarín para esconder a realidade da lei, que é a ampliação da liberdade de
expressão. Pegam um aspecto – o confronto – e o colocam em destaque. O grupo
Clarín representa hoje a oposição política ao governo Cristina. Mas isso é um
aspecto parcial, é direito deles fazer oposição ao governo. Isso não tem nada a
ver com uma questão muito maior, o debate em torno da ampliação do espaço para
outras vozes e grupos, a fim de que possam estes também se manifestar.
Pra deixar claro, a lei não toca em momento algum nos
meios impressos. É uma lei de comunicação audiovisual. E quando os jornais,
como Folha, Estadão e Globo, falam em “ataques do governo ao Clarín” parece que
o governo argentino está querendo intervir no jornal Clarín. Este jornal
continuará fazendo o que faz hoje, com liberdade total. O que acontecerá com a
aplicação da lei é que o grupo Clarín, não o jornal, será obrigado a abrir mão
de licenças de rádio e TV que vão além do limite estabelecido pela lei.
Creio ser um aspecto importante porque aqui no Brasil
os meios de comunicação gostam de misturar mídia impressa com eletrônica. A lei
argentina é sobre a mídia eletrônica. A lei de mídia que se começa a discutir
no Brasil também é sobre a mídia eletrônica. Porque a nossa lei é de 1962. O
que esses grupos brasileiros fazem, para atacarem a Ley de Medios argentina, na
verdade revela seu temor de que o exemplo argentino sirva de inspiração para os
movimentos populares do Brasil e leve, finalmente, o governo a apresentar
projeto de lei semelhante. O governo Lula, no final de seu segundo governo,
através de seu ministro Franklin Martins, chegou a deixar pronto o projeto de
lei, repassado ao governo Dilma para ser levado ao Congresso, guardando semelhanças
com a Ley de Medios argentina.
Portanto, a carga que a mídia brasileira traz sobre o
projeto argentino é uma forma de tentar evitar uma “contaminação” no cenário
brasileiro pelo avanço ocorrido na Argentina.
-E trazendo o
assunto para o Brasil, como acredita que deveríamos olhar para a lei argentina
e que tipo de debate podemos levar adiante?
Já cansamos de falar, mas o Brasil está atrasado em
mais de 50 anos. A lei brasileira das comunicações é de 1962, assinada por João
Goulart, e mesmo assim houve uma série de vetos deste governo, que foram derrubados
por um Congresso onde os rádiodifusores tinham domínio total - como continuam
tendo, configurando o poder que sempre se contrapôs ao avanço de uma legislação
da área no Brasil.
Temos muita dificuldade em avançar porque essa é uma
questão que ainda não está enraizada no Brasil. Não temos massa crítica para um
debate público e popular, como o que existe na Argentina. Mas estamos avançando.
Se formos pensar em quinze anos atrás, não tínhamos o debate que hoje já temos.
O principal exemplo foi a realização da Conferência Nacional das Comunicações,
no final de 2009, que mobilizou entidades da sociedade em número já razoável,
indo além dos debatedores tradicionais, que eram as universidades, os
sindicatos... Hoje não, temos associações de classe, mulheres, movimento negro,
movimentos sociais, entidades regionais, que já começam a discutir pelo país a
criação de uma Lei de Mídia.
O caminho para acompanharmos esse processo natural é
mais ou menos o modelo argentino. É preciso enraizar socialmente o debate, mas
é preciso também contar com o governo. Apesar de toda essa participação
popular, o impulso final foi dado pelo governo de Cristina Kirchner, que sem
dúvida alguma sancionou a lei usando, principalmente, os canais públicos de
rádio e TV para conseguir levar o debate à sociedade. Enquanto isso não
acontecer, fica muito difícil para o cidadão comum entender o que significa uma
lei dessas.
-Como analisa
o governo brasileiro em sua atuação no campo das comunicações e sua relação com
os grupos midiáticos?
Acredito que não só este governo, mas todos têm um
receio muito grande de enfrentar esses poderosos grupos de comunicação. Escrevi
um artigo chamado “A síndrome Jango, aos 50”, no qual coloco que o fato de os
grupos de comunicação terem praticamente empurrado pra rua o governo Jango,
colaborando muito para o golpe de 64, que depois sustentaram, fez com que todos
os governos de lá pra cá tenham muitos cuidados, estejam sempre cheios de dedos
para dialogar com a mídia. Acho que o fantasma do golpe de 64 perdura até hoje.
Não só esse, mas todos os governos sempre tiveram um receio muito grande de ir
à frente com um debate pra colocar a mídia e, principalmente, os meios
eletrônicos em um enquadramento democrático.
Podemos perceber algumas pesquisas que mostram que,
desde 1988, da Constituinte pra cá, já foram elaborados 20 projetos de lei
pelos governos, mas que nunca foram colocados em debate na sociedade, muito
menos levados ao Congresso Nacional. Pois, em determinado momento da discussão,
vinha a ameaça de que o governo poderia ser alvo de uma campanha difamatória
muito grande, que poderia até levá-los à desestabilização.
Portanto, é uma disputa muito delicada, sendo
necessária uma vontade política muito grande. Mas essa vontade é necessária. E
para ser vitoriosa, não basta que seja vontade política dos governos. É preciso
que seja combinada com os movimentos sociais. É uma disputa bastante difícil,
mas que aqui no Brasil já está passando da hora.
-Acredita que
o governo Dilma possa se espelhar no exemplo argentino e buscar caminhos para
uma maior democratização do espectro midiático, tão dependente de poucos grupos
empresariais?
Tenho visto a presidente Dilma tomar medidas que antes
a gente achava impossíveis de serem tomadas. São os casos da redução da taxa de
juros e agora da redução da tarifa da energia elétrica – mais a disputa que
trava agora com as três empresas elétricas controladas pelo PSDB. Ela mostra
muita coragem nesses enfrentamentos. Não posso descartar essa possibilidade,
ainda mais agora que percebemos que ela tem uma estreita relação com a Cristina
Kirchner. Assim, parece-me que a Dilma acompanha bem de perto o que acontece lá
com a Ley de Medios. Acredito que o exemplo ela tem, o modelo está traçado. O
modelo argentino cabe perfeitamente no Brasil, com pequenas adaptações.
É difícil dizer se fará ou não. É difícil acreditar
totalmente porque o Brasil tem uma dificuldade a mais: a presença no Congresso
Nacional de muitos parlamentares radiodifusores, ou seus representantes, e que
fazem parte da base de apoio ao governo, principalmente dentro do PMDB. Esta é
uma dificuldade real, coisa que na Argentina acabou sendo enfrentada, e a lei
passou.
Não sei até que ponto o governo teria possibilidade de
ir à frente numa lei de mídia contando com tal base de sustentação política no
Congresso. É luta política, de conquista de apoio, indo à frente e enfrentando
essa dificuldade. É muito difícil saber se será possível travá-la no primeiro
mandato de Dilma, embora o movimento social e a luta pela democratização da
comunicação já tenham claro que estamos muito atrasados, e ficaremos cada vez
mais em relação a outros países latino-americanos.
-Em sua
opinião, quais seriam os pontos mais importantes de uma imaginária “Ley de
Medios à brasileira”?
Sem dúvidas, tal como lá, um ponto é a divisão do
espectro para ampliar a participação de outras vozes no debate político e
cultural brasileiro. Em outras palavras, enfrentar o monopólio. Estabelecer
limites máximos pra que grupos econômicos tenham determinado número de
concessões de rádio e TV, permitindo que outros grupos da sociedade civil
possam participar das disputas. Creio ser esta a questão central, tanto na
Argentina como no Brasil.
E temos de ir além, porque o Brasil, com as dimensões
continentais que tem, necessita de uma lei que dê conta de uma difusão maior
nas concessões, estimulando a produção regional. Isso porque tivemos não só a
concentração dos meios nas mãos de poucas empresas, mas também uma concentração
regional dos meios, determinando que todas as pautas e valores que circulam
pelo país continuem sendo produzidos no eixo Rio-São Paulo, passando um pouco
por Brasília. A regionalização é fundamental e a lei precisa dar conta disso.
Além do mais, há outras coisas importantes, que nada
mais são que a necessidade de regulamentar a Constituição Federal brasileira. A
lei tem de vir pra regulamentar artigos da Constituição que garantem uma maior
democratização da comunicação e que até hoje não foram colocados em prática.
Tem a ver com a regionalização, tem a ver com cotas pra produção nacional,
cotas pra produção independente... A lei deve dar conta de tudo isso, para que
a comunicação seja algo de todos para todos, e não como é hoje, (feita) de
poucos para muitos.
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