domingo, 29 de dezembro de 2013

Informativo Semanal do Prof. Ernesto Germano Pares

Nota: durante a semana, participei de um debate sobre a crise econômica mundial. Algumas pessoas tentam separar, dizendo que vivemos (em 2013) uma nova crise. Eu defendo que é a mesma, iniciada em 2008 e que está se aprofundando. Para encerrar o ano, resolvi publicar no nosso Informativo um artigo que escrevi em 2008, quando a crise apareceu.
Que delícia de liberalismo!
(Ernesto Germano Parés – 22 de setembro de 2008)
“Cada pessoa,(...), deve ser primeira e principalmente deixada ao seu próprio cuidado (...)”. Esta defesa, expressa por Adam Smith em seu trabalho “Teoria dos Sentimentos Morais”, foi base para sua posterior teoria de uma “mão invisível” capaz de corrigir todos os problemas de um mercado absolutamente livre. Adam Smith posicionava-se contra qualquer forma de regulamentação por parte do Estado.
Tomando por base aqueles estudos, Friendrich von Hayek, o “pai” do neoliberalismo, escreveria em seu famoso livro que “Deveríamos permitir que as empresas privadas criassem, em regime de concorrência, suas próprias moedas e o público, representado pelo mercado, saberia acolher as boas e rejeitar as más. Os bancos centrais simplesmente desapareceriam, assim como os sistemas monetário e financeiro mundiais.”
Muito bonito, no papel. Desde a década de 1980 estamos ouvindo este discurso de que o Estado deve se retirar da economia e de que é melhor para a sociedade deixar que o próprio mercado regule suas atividades e leis. Margareth Thatcher, levando ao ponto máximo esta defesa da liberdade do mercado diante das instituições sociais, chegou a afirmar que “não existe sociedade, porque eu não vejo sociedade... eu vejo indivíduos!”
Mas todas estas “certezas” parecem estar desaparecendo em fumaça depois da “segunda-feira negra” (15 de setembro), quando o Banco Central dos EUA e o próprio governo foram obrigados a intervir no mercado para evitar uma crise que alguns analistas já comparam com a de 1929. Ouvido pela BBC, o professor de ciências políticas da Universidade de Princeton, Benjamin Barber, declarou que “Deixaram a Lehman Brothers quebrar, mas se outras forem levadas junto o governo intervirá e isto significa que meus impostos serão usados para salvar banqueiros que tomaram decisões arriscadas e equivocadas”. A crise foi tão séria que levou o próprio candidato republicano, um liberal de “carteirinha”, a declarar que, caso vença as eleições, iniciará imediatamente uma reforma para regular o mercado de capitais nos primeiros 100 dias de governo! Dito por um liberal, isto nos parece uma capitulação definitiva.
Mas as medidas não podiam esperar tanto. Na segunda-feira (15), o Banco Central estadunidense (FED) anunciou que convocara uma reunião e havia assegurado um “consórcio” de bancos privados que fariam uma “injeção” de emergência, no valor de 70 bilhões de dólares, no mercado internacional. Como diz o ditado: “amigos, amigos; negócios à parte”. É claro que os 10 grandes bancos (Bank of America, Barclays, Citibank, Credit Suisse, Deutsche Bank, Goldman Sachs, JP Morgan, Merril Lynch, Morgan Stanley e UBS) não iriam disponibilizar 7 milhões de dólares, cada um, sem a devida segurança.
O próximo passo, então, seria dar esta segurança aos bancos privados. E isto foi feito com – adivinhem - o dinheiro público, é claro! O mesmo FED acertou com os seis grandes bancos centrais (Banco Central do Japão, Banco Central Europeu, Banco Central do Reino Unido, Banco Central do Canadá e Banco Central da Suíça, além do próprio FED) uma mega operação para injetar novos dólares no mercado e garantir o investimento dos bancos privados. Não se sabe o total desta operação. Apenas que o próprio FED estaria injetando 180 bilhões e outros dois bancos centrais (o europeu e o inglês) entrariam com mais 80 bilhões cada um.
Para cobrir uma parte do “salvamento” e garantir que os bancos privados não sairiam sem algum lucro no final desta ciranda, o Tesouro dos EUA injetou mais 40 bilhões de dólares diretamente nos cofres do FED, na quarta-feira (17).
Nada disto deveria causar surpresa. Não foi a primeira e não será a última vez que o Estado – quer dizer, o dinheiro público – é levado a salvar empresas privadas. Só para lembrarmos os casos mais recentes, o governo Nixon lançou mão do orçamento público para salvar um dos ícones da indústria militar estadunidense, a Lockheed Aircraft; o “democrata” Jimmy Carter também usou o Tesouro para salvamento da Chrysler e do banco Farm Credit; mais recentemente, o próprio W. Bush conseguiu do Congresso uma ajuda de 15 bilhões de dólares para evitar a quebra das empresas aéreas depois do 11-S.
Com tanta intervenção assim, o que estaria pensando o príncipe dos liberais, Milton Friedman, se vivo estivesse? Logo Friedman, que em seus principais trabalhos afirmava que as causas da Grande Depressão foi o excesso de intervenção governamental, não sua falta, com dizia Keynes.
Mas os donos do capital não estão muito preocupados com as teorias, liberais ou não. Querem apenas a certeza de que manterão seus ganhos, com ou sem ajuda do Estado. Continuam berrando: “deixem-nos lucrar livremente, mas se estivermos em perigo venham nos ajudar!”
(Este artigo prossegue...)
Que delícia de liberalismo! (2)
(Ernesto Germano Parés – 24 de setembro de 2008)
“Congresso dos EUA exige punição e ameaça pacote”
(Manchete do O Globo, 24/09/08)
“FBI investiga Fannie Mae, Freddie Mac, Lehman e AIG, diz CNN”
(Manchete do Jornal do Brasil, 24/09/08)
E os demais jornais que consultei hoje não diferem muito. O discurso liberal começa a “colar” e a mídia amestrada vai começar a “buscar um culpado”, tudo dentro da mais pura ideologia liberal que coloca as pessoas (idéias) acima dos fenômenos (sistema). Em outras palavras, vão fazer todo um teatro para encontrar culpados entre os administradores e diretores dos bancos e financeiras que quebram, mas jamais admitirão que o problema não está nas pessoas e sim no próprio sistema que cria as crises e não consegue superá-las sem lançar todo o peso dos erros nos ombros dos trabalhadores.
O pragmatismo, como forma mais “apropriada” de idealismo, surgiu nos anos 70 do século XIX e teve papel importante no desenvolvimento do capitalismo e sua forma imperialista nos EUA. Os pragmatistas consideram que atingir a verdade é a meta central e principal da filosofia, mas, para atingir este objetivo, lançam mão de outros conceitos do que seja “verdade”.
William James, considerado um dos expoentes do pragmatismo, resolveu o problema fazendo uma nova interpretação do sentido da palavra verdade e levando-a a um conceito de “utilidade”. Ou seja, para James, “verdade é tudo aquilo que é útil para o ser humano”, no sentido de propiciar um êxito ou uma vantagem.
John Dewey, na mesma linha e trabalhando com este conceito de utilidade, chega à conclusão que todas as teorias científicas, todos os princípios morais, todas as instituições sociais têm como principal (senão única) função levar o indivíduo a atingir seus objetivos pessoais.
Aqui temos a origem daquelas manchetes que me assustaram, ontem. Passaremos a ver, a partir de hoje, uma série inesgotável de artigos e noticiários que se desdobrarão para provar que o problema da crise estadunidense não foi do próprio sistema, mas das pessoas “inescrupulosas” que tinham cargos dentro do sistema.
E os reais problemas continuarão sendo jogados para baixo do tapete, estarão sendo escondidos do grande público, pois o sistema não pode ser colocado em dúvida ou, como dizem os estadunidenses, “o show tem que continuar”.
Olhando novamente para as matérias nos nossos “grandes” jornais vamos reparar uma série de discursos dos congressistas estadunidenses dando a impressão de que estão muito preocupados com o uso do “dinheiro público”. De uma hora para outra, passaram a se preocupar com o “dinheiro do contribuinte” e acham que deve haver mais regulamentação no seu uso. O fato de faltarem apenas seis semanas para as eleições gerais (presidente e congressistas), nos EUA, é apenas coincidência, com certeza!
E a crise? Esta é pergunta que muitos fazem.
Bem, vejamos o que se passa de fato. A conta corrente dos EUA (todas as transações do país com o exterior) registrou, no segundo trimestre de 2008, um déficit de 183,1 bilhões de dólares. Somados aos 175,6 bilhões de dólares de déficit no primeiro trimestre teremos... 358,7 bilhões de dólares de déficit na primeira metade do ano. Um “buraco” para ninguém botar defeitos, não é?
Ao longo do domínio neoliberal e sua ideologia, as grandes empresas estadunidenses começaram a procurar o lucro fora de suas fronteiras. Ford, GM e muitas outras mudaram suas fábricas para países “em desenvolvimento” onde encontravam mão-de-obra mais barata e facilidades oferecidas pelos governos através de imposições feitas pelo FMI. O lucro crescia exponencialmente, como mostram os balanços publicados, e se aproveitavam ainda de uma nova forma “gerencial” que terceirizava serviços em busca de mais lucros. A “reengenharia” da produção e as “fábricas enxutas” tornavam-se a norma.
A economia interna dos EUA ficou basicamente limitada ao setor de serviços (aí incluindo turismo). E o grande problema é que passavam a importar o que antes produziam.
Mas este modelo precisava gerar novos capitais. Se o capital produtivo estava fora do país, então seria necessário gerar “capital pelo próprio capital”. E aqui temos uma das raízes dos atuais problemas: a especulação no mercado financeiro! Seja na forma das hipotecas imobiliárias, as primeiras a explodir, ou dos fundos de investimentos e seguros que agora desmoronam. A chamada “bolha” não surgiu por acaso ou pela vontade de alguns péssimos administradores. Surgiu porque o sistema assim exigia, para sobreviver.
Vejamos, a respeito, o que escrevia o filósofo renano:
“Além disso, os retornos serão tanto mais incertos quanto mais a transação original for condicionada pela especulação de alta ou de baixa dos preços do mercado. Mas, está claro que, com o desenvolvimento da produtividade do trabalho e portanto da produção em grande escala, 1) os mercados se expandem e se distanciam do local de produção; 2) por isso, os créditos devem prolongar-se, e portanto, 3) o fator especulação deve dominar cada vez mais as transações. (...) O crédito aí é portanto indispensável; crédito que tem o montante aumentado, com o aumento crescente da magnitude do valor da produção, e a duração distendida com o afastamento cada vez maior dos mercados. Há aí efeitos recíprocos.” (K. Marx – O Capital, Livro 3/Vol.5 – Capítulo XXX, “Capital-dinheiro e capital real I”)
Aprovado ou não pelo Congresso estadunidense, o “pacote” que Bush propõe ao lançar mão de 700 bilhões de dólares dos contribuintes para salvar o sistema financeiro dos EUA (e do mundo) não resolverá o problema. Para se tornar produtivo, o capital depende do Trabalho, não de auto-geração ou de novas intervenções do Estado, por sinal tão combatido pelos liberais como ineficiente.
(Este artigo continua...)
Que delícia de liberalismo! (3)
(Ernesto Germano Parés – 26 de setembro de 2008)
“Plano de socorro ao mercado é alinhavado no Congresso”. A manchete, remetendo à crise estadunidense e à proposta de “salvamento” que está sendo elaborada pelo governo Bush, está no jornal Diário do Comércio e Indústria de hoje. Os outros jornais vão pela mesma linha.
Ontem os jornais falavam da quase ameaça feita por Bush no caso do pacote não ser aprovado. Pela primeira vez ele parece estar preocupado com “os trabalhadores que podem perder seus empregos” e com a “possibilidade de uma recessão no país”, coisas que já estão ocorrendo desde meados de 2007. E hoje os jornais dizem que não houve acordo sobre o “plano de salvação” na reunião com os dois candidatos presidenciais (John McCain e Barack Obama).
Mais uma vez, nossos jornais continuam tratando a crise com superficialidade e preferindo desconhecer o principal problema por trás do momento atual das finanças estadunidenses: sua total incapacidade de superar a crise sem a ajuda externa. Em outras palavras: os EUA não têm como resolver o seu problema se não receber ajuda, rapidamente. Vejamos alguns fatos que não estão sendo lembrados ou que estão sendo escondidos.
Como já lembramos em artigo anterior, os EUA acusaram um déficit de 358,7 bilhões de dólares em sua balança comercial, só na primeira metade do ano! Façamos as contas: o governo Bush fala em um “pacote” de ajuda para o sistema bancário no valor de 700 bilhões de dólares ou, peguem as maquininhas, exatamente o total do déficit comercial esperado para o ano. De onde poderá sair este dinheiro que já não existe?
Para se ter uma idéia do tamanho do buraco, basta imaginar que 700 bilhões de dólares divididos pela população dos EUA daria cerca de 2 mil dólares para cada homem, mulher e criança!
Vejamos um outro dado importante: os EUA têm a maior dívida externa do planeta e, há muito tempo, só sobrevive com o fluxo de capital externo que já supera a fantástica cifra de 1 trilhão de dólares, segundo o Wall Street Journal. Os principais investidores no mercado estadunidense, comprando letras do Tesouro Americano, são, pela ordem, China, Japão e Rússia!
Bem, aqui encontramos o primeiro nó a ser desatado. Em um artigo publicado no jornal The Financial Times (28/08/08), os jornalistas Saskia Scholtes e James Politi destacavam a importância dos investimentos chineses nos EUA e que o Banco da China era um dos principais acionistas das empresas Fannie Mae e Freddie Mac. Pouco antes deste artigo, o jornal The Privateer trazia uma declaração do senhor Yu Yongding, conselheiro do banco central da China (Banco do Povo da China) dizendo que “se o governo dos EUA permitir a quebra da Fannie e da Freddie e os investidores estrangeiros não forem convenientemente compensados as conseqüências serão catastróficas...”.[i]
Qual o problema? Os EUA não são “a nação mais rica do planeta”? Bem... vejamos algumas informações disponíveis na internet, na página oficial do FED (o banco central de lá). No final do ano passado, o FED tinha cerca de 800 bilhões de dólares em seus cofres; há cerca de duas semanas este valor havia caído para 480 bilhões; depois do “salvamento” dos bancos de investimento (200 bilhões) e da AIG (mais 85 bilhões), tem hoje menos de 200 bilhões em caixa. As informações são confirmadas pela empresa RGE Monitor e a pergunta que se faz é: de onde vai tirar os 700 bilhões que Bush está prometendo?
Vale lembrar um outro problema que nem todos estão citando. Se acompanharmos o “ranking” da revista “Fortune”, que anualmente publica a lista das 500 maiores empresas do planeta, vamos reparar que o sistema bancário estadunidense vem perdendo espaço muito rapidamente. Comparando a lista deste ano com a que foi publicada em 2007 vamos reparar a queda do Citigroup (14º para 17º lugar), do Bank of America (21º para 28º) e do Merrill Lynch (do 70º para o 100º lugar!).
Bush agora se declara preocupado com os empregos que serão perdidos pelos trabalhadores e apela para o Congresso aprovar o tal pacote. Em 2001, a quebra da Enron – gigante da área de energia – deixou na rua 12.000 funcionários e uma dívida de 40 bilhões de dólares. O que é pior, um sistema de fundos de pensão desacreditado, pois o dinheiro que seria dos seus funcionários foi aplicado pelos seus gestores, irresponsável e inescrupulosamente, em ações da própria empresa. Também naquela oportunidade não se questionou o sistema financeiro estadunidense que permite tanta especulação e falcatrua.
Ainda pode ser pior? Sim, há crises ainda submersas e que começam a despertar a preocupação dos bancos estadunidenses. A economia dos EUA vive do crédito, não só governamental, mas dos próprios cidadãos. Para se ter uma idéia, segundo informações do sistema financeiro, cada cidadão possui, em média, 4,2 cartões de crédito, com uma dívida (média) de 2.607 dólares. Cada família deve, em média, 8.565 dólares, valor que supera em muito as dívidas das hipotecas que acabam de explodir!
Em 1980 Ronald Reagan foi eleito 40º presidente dos EUA. Durante 28 anos ouvimos hinos e odes ao liberalismo! Mais de um quarto de século para nos convencerem de que o mercado é um deus supremo e que o Estado é ineficiente, incapaz e só atrapalha. Em duas semanas essas crenças estão desmoronando. Será o fim?
(Este artigo continua...)
Que delícia de liberalismo (4)
(Ernesto Germano Parés – 29 de setembro de 2008)
O final de semana seguinte ao 11 de setembro, depois da crise estadunidense chegar ao ponto de estalar sem que fosse mais possível que a imprensa continuasse tratando como uma coisa menor, foi marcado por uma importante reunião. Segundo os jornais, os dois “gerentes” da crise – Ben Bernanke (FED) e Henry Poulson (secretário do Tesouro) – convocaram para uma reunião no escritório do FED, em Nova Iorque, os principais patrões do sistema financeiro dos EUA. Ainda segundo os jornais, nesta reunião foram tomadas importantes decisões. Nossa atenção, agora deve voltar-se para o primeiro ponto discutido e deliberado pelos presentes: abandonar a Lehman Brothers à sua própria sorte e permitir que a empresa que havia conquistado o maior prestígio financeiro do país, depois de 158 anos de atividades, com seus 25 mil empregados, naufragasse cinematograficamente.
Aqui eu gostaria de fazer um breve intervalo neste tema e lembrar um autor que marcou minha adolescência: Nelson Rodrigues. Teatrólogo e cronista esportivo, um assumido direitista que apoiou o golpe militar de 1964, mas foi também uma as mais brilhantes cabeças da nossa imprensa, criou imagens e personagens que ainda povoam minha lembrança. Uma das suas expressões, imortais, foi o “idiota da objetividade”. Nelson criou esta expressão para se referir aos jornalistas da sua época que ele achava frios, insensíveis e presos apenas a textos pré-programados. Ele criticava os jornalistas e “analistas” que reduziam tudo ao lógico, ao formal, ao que estava nos “scripts”. Um dia chegou a escrever que “Se o copy-desk já existisse naquele tempo, os Dez Mandamentos teriam sido reduzidos a cinco”.
Pois é. Algumas pessoas, jornalistas e analistas, estão reduzindo o debate sobre a atual crise estadunidense a isto: o que está no script pronto que recebemos das grandes agências.
Volto, então, ao que estava escrevendo no início deste artigo. Para a reunião de Bernanke e Poulson com os magnatas do sistema financeiro estadunidense, o que poderia significar o emprego de 25 mil pessoas? Uma gota?
Resolvi pesquisar melhor este ângulo do problema e, consultando os jornais de lá, encontrei o que tanto me preocupava. Apenas no mês de agosto, o que precedeu o “big-bang” financeiro, 84 mil trabalhadores perderam o emprego no país! Considerando os oito primeiros meses do ano, 605 mil pessoas ficaram desempregadas. Nos últimos doze meses (encerrados em agosto) mais de 2 milhões de cidadãos estavam amargando o que chamamos de “olho da rua”! Uma cifra preocupante para um país que se pretende locomotiva da economia mundial, não é?
Pois é. Em agosto, quando a crise ainda não tinha oficialmente estourado, os índices econômicos mostravam uma difícil situação para os trabalhadores da “grande nação do norte”: a produção industrial havia caído ao menor índice dos últimos três anos e as fábricas, minas e serviços públicos estavam produzindo 1,1% a menos. A produção automobilística, sempre a vitrine do capitalismo “made in USA”, havia despencado 12% no mês, maior queda em uma década!
No início do ano, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) divulgou um alerta dizendo que a crise que se anunciava nos mercados mundiais e a desaceleração na economia estavam ameaçando o emprego de, pelo menos, 5 milhões de pessoas no mundo. Faltando ainda três longos meses para 2008 chegar ao fim, esse número já está em muito superado. A Comissão Européia, principal organismo da União Européia, estima em mais de 16 milhões de desempregados só no bloco. Por enquanto, a taxa de desemprego está mantida em 6,8% em média nos 27 países, mas a expectativa é de que seja maior nos próximos meses.
Por mais de 20 anos ouvimos o mesmo discurso de que o Estado deve se retirar da economia. Durante todo este tempo vimos os vários governos neoliberais (Reagan, Thatcher, Kohl, Menem FHC, Pinochet e demais comparsas) desmantelando, item a item, os mecanismos reguladores da economia e as empresas públicas e estatais. Removeram praticamente todas as barreiras e limites para a sanha do “deus” mercado que deveria reinar livremente. Todos, ou quase todos, os obstáculos ao “deixar fazer, deixar passar” foram diligentemente removidos.
Porém, apesar deste discurso de que o Estado não deveria dar apoio nem servir para distribuir os bens da sociedade ou se preocupar com os trabalhadores que perdem seus empregos, os pensadores liberais defendiam (e defendem) que o Estado deve ser suficientemente forte para impedir o avanço dos sindicatos e das organizações sociais. Os sindicatos são vistos como uma das principais causas das crises porque, ao reivindicar salários (aumentos excessivos, como eles dizem) corroem a base da acumulação do capital e limitam o crescimento da economia. Milton Friedman chega a defender o que chamou de “uma boa legislação” contra os sindicatos porque estes interferem no funcionamento livre do mercado de trabalho.
E, neste ponto, volto aos “idiotas da objetividade” criados por Nelson Rodrigues. Eles não enxergam o que está além das sínteses que recebem das grandes agências noticiosas. Reproduzem em seus pensamentos o simplismo dos que reduziram os dez mandamentos a apenas cinco. Continuam limitando o debate a uma questão de intervenção ou não dos bancos centrais, se houve ou não especulação do mercado imobiliário ou se todo o problema é das hipotecas podres. E vão morrer agarrados a este discurso, porque outro não sobrou para eles.
Mas, uma coisa deve ficar bem clara neste momento: ao contrário do que os defensores do projeto neoliberal “ainda” tentam dizer, a crise não é uma questão apenas do mercado financeiro. Está também em perigo a economia real, aquela do nosso dia-a-dia, nacional e internacionalmente. As instituições e estruturas produtivas estão sendo violentamente atingidas pela crise.
(Este artigo continua)
Que delícia de liberalismo. (5)
(Ernesto Germano Parés – 02 de outubro de 2008)
Estou agora lembrando a matéria que li no final de semana. Entrevistada pela BBC, uma mulher estadunidense contava suas dificuldades por ter que morar dentro de um carro, em um estacionamento privativo para mulheres, depois de perder sua casa. Curiosamente, Bonnee (é o nome dela) diz que antes da crise estalar trabalhava como corretora de imóveis. Mas os novos clientes foram rareando, seu salário sendo reduzido e ela própria acabou perdendo sua casa por não conseguir pagar as dívidas de hipotecas. A matéria completa, bastante interessante, está na matéria "Crise leva pessoas a morar em carros nos EUA".[ii]
Outra entrevistada, na mesma matéria, diz que "Nós estamos em uma terrível confusão econômica. Acho que ainda não vimos nem metade do que vai acontecer com este país". E esta chega bem perto da verdade, porque sua declaração que soa como desabafo contradiz o discurso oficial de que tudo se resume a uma questão financeira ou de "subprime". Ela tem razão de falar em "confusão econômica", mas, talvez por desconhecer alguns conceitos, não conseguiu dar o nome certo: crise do sistema capitalista.
O que está passando despercebido para muitos?
No período entre as duas grandes guerras, em particular depois da grande crise de 1929, o sistema capitalista temeu por sua sorte e lançou mão das receitas de J. M. Keynes para corrigir as distorções criadas pela disputa acirrada entre capitalistas. O Estado passa a ser o regulador da economia e o chamado "bem estar social" passa a ser a alternativa contra as muitas revoltas dos trabalhadores e dos explorados. Com o correr do tempo, alcançado um equilíbrio e criados os instrumentos para que a concorrência intercapitalista não levasse a novas guerras, os patrões do mundo passam a reivindicar o controle total da economia. E tem início o reinado de Hayek e seus "miquinhos amestrados" da Mont-Pèlerin, com o discurso da liberdade econômica, a desregulação e o fim dos direitos sociais.
No caso que agora nos interessa - a economia dos EUA - vale lembrar que o desmonte da economia keynesiana, decretando a desregulamentação dos mercados, começou no governo Reagan e chegou ao seu ponto máximo durante o governo Clinton. A principal barreira contra as especulações e as cirandas financeiras, a lei Glass-Steagall Act, foi revogada em 1998. Daí para frente reinaram o livre mercado e a livre iniciativa, paixões de Hayek. E o governo Bush (filho) não fez por menos, tratou de ampliar a liberdade do mercado financeiro, em particular as atividades que já estavam livres de regulamentação.
Mas, voltando ao centro do problema, o que significa a atual crise capitalista? Qual a sua profundidade e desdobramento?
Aqui eu assumo a discordância com alguns textos que tenho lido ultimamente. Em primeiro lugar, como já disse, discordo daqueles que tentam limitar a questão ao terreno financeiro, pois a situação atual vai muito além do que se discute sobre Wall Street. Mas também discordo de algumas análises que li e que tentam mostrar esta crise como o fim do sistema capitalista e a derrocada final do Império. Não, meus caros, os "coveiros" ainda não fizeram seu trabalho e o capital ainda tem fôlego para superar as dificuldades. E aqui reside o nosso desafio!
Dentro de algum tempo, a atual crise estará superada (como outras) e o capital voltará a reinar em busca de cada vez mais lucros. Muito provavelmente - quase certo, eu diria - as imensas dívidas que agora estão sendo contraídas com o dinheiro público para salvar o sistema voltarão sob nova forma e explodirão nos orçamentos dos muitos países que agora tiram do Tesouro para socorrer seus sistemas financeiros (ver as "ajudas" já feitas). E isto vai cobrar mais cortes nos investimentos públicos, novamente ouviremos discursos sobre empresas e serviços a serem privatizados e mais encolherão os atendimentos à população. O discurso de "moralidade" que agora fazem os congressistas estadunidenses logo será esquecido, como aconteceu em outras oportunidades. A globalização voltará a ser endeusada e a "liberdade do mercado" a ser defendida com o mesmo fanatismo de antes, talvez apenas com um ou dois ajustes que evitem novos excessos especulativos.
Fico imaginando que o sistema não perderá mais esta oportunidade de lucro. Afinal, como diz o ditado tão respeitado no país que hoje é centro da crise, "o espetáculo tem que continuar". E imediatamente penso nesta imensa máquina de divulgar o "sonho americano": o cinema.
Imaginem a cena a seguir: dois belos e jovens atores hollywoodianos, desses muito badalados nas revistas semanais, vivendo o papel de um casal que perde suas economias e o lar por culpa de algum banqueiro inescrupuloso (é claro que isto não existe, é apenas uma ficção de Hollywood). Mas, confiantes no futuro do país da "liberdade" enfrentam as muitas dificuldades, trabalhando em difíceis situações e passando privações, mas lutando sozinhos. Nem de longe eles pensam em buscar outros com o mesmo problema para unir esforços. Não, isto nunca! Confiantes, lutarão "contra tudo e contra todos", sós, como convém no país que prega o individualismo como um bem maior! E o filme terminará com um novo lar, feliz, glorificando o sistema que dá oportunidades aos que disputam um espaço neste belo mundo de consumo! Claro que tudo isto terá uma bela trilha musical de fundo, muitos efeitos especiais e cenas cuidadosamente estudadas com a bandeira estadunidense na fachada da casa. Algum grande diretor voltará às manchetes e milhões de dólares serão gastos na superprodução! E, é claro, a película terá lançamento mundial muito badalado, com direito a primeira página nos jornais e espaço de destaque no JN da Globo, com o casal "maravilhoso" como exemplo a ser seguido.
The end? Não, este artigo terá mais um capítulo... desculpem. 
Que delícia de liberalismo (Final)
(Ernesto Germano Parés – 07 de outubro de 2008)
Os jornais de ontem (e de hoje) valorizam bastante o "agravamento da crise", o contágio violento da economia européia, em particular a situação alemã, e problemas nas bolsas asiáticas. As matérias, com muitas opiniões de "especialistas", procuram mostrar a necessidade de mudanças profundas no sistema financeiro internacional e de uma reforma nos organismos responsáveis pelo equilíbrio econômico no planeta. Mas esquecem que são os mesmos que, há tão somente alguns meses passados, enalteciam a desregulamentação e os novos acordos de livre mercado e livre circulação de capitais.
Mas não é disso que pretendo falar no artigo final desta série. Minha intenção é voltarmos a um ponto que já comentamos antes e que volta agora com mais clareza: a mídia continua insistindo em mostrar esta crise como uma questão meramente financeira e de má gestão por parte dos dirigentes dos grandes bancos. Há uma preocupação em dizer que "se os homens fossem honestos nada disto teria ocorrido"! E o pior é que vemos muita gente repetindo o mesmo discurso, sem atinar para o sistema que cria as condições para que isto tudo ocorra.
Não quero cansar os que me acompanham, mas é preciso fazer uma rápida viagem pelo mundo neoliberal para vermos o que está ocorrendo.
O ideário neoliberal fez sua “entrada” no cenário durante o governo do assassino de Pinochet, no Chile, e pouco depois vimos os primeiros resultados durante o colapso da dívida externa latino-americana. Para quem esqueceu (ou nem conheceu), em 1982 explode a moratória mexicana, logo seguida da brasileira. A situação alarmou o projeto liberal a tal ponto que os donos do poder convocaram imediatamente um encontro que ficou conhecido como o Consenso de Washington que terminou com uma extensa lista de "obrigações" para os países em desenvolvimento. Receita que seria devidamente ministrada e acompanhada pelo FMI. Quem esqueceu?
Tudo parecia correr melhor e os anos 1980 deveriam ser o marco neoliberal. Ronald Reagan, o “maestro” do projeto nos EUA, chegou a dizer que “O Estado não é solução, é o problema”. Mas a quebra das bolsas, em 1987, e o colapso do mercado imobiliário, em 1989, já antecipavam a situação atual e alertavam para o risco da impunidade dada ao capital que se move pelo mundo. Mas os “magos e intelectuais” do sistema continuavam a defender a desregulamentação como remédio para as crises. Em 1990, apesar de todos os discursos, vem a quebra da bolsa de Tóquio (quem esqueceu?) e nos anos seguintes – 1992 e 1993 – os ataques especulativos sobre moedas européias.
O final da década de 1990 foi marcado pela grande crise asiática (1997) que jogou por terra a imagem de sucesso dos “tigres”, tão cara ao neoliberalismo. Tailândia, Malásia e Coréia, “alunos exemplares” do modelo, precisaram recorrer a alternativas de choque e controle de suas moedas para não falirem.
A lição não foi suficiente e, em 1998, é a vez de a Rússia (depois da sua comemorada volta ao mundo capitalista) decretar moratória e, em agosto, o mercado asiático voltar a quebrar. E a década chega ao fim com a crise brasileira que levou o governo FHC a penhorar junto ao FMI todas as empresas estatais e comprometer-se com a aceleração das privatizações (a “carta de intenções” é um documento disponível na internet).
Mas não pretendemos, aqui, ficar alongando muito este histórico de crises. Apenas registrar que, quanto mais os dirigentes neoliberais reduziam o Estado e desregulamentavam a economia para atender aos seus interesses, mais as crises financeiras iam comprovando que o capital é a verdadeira doença que corrói a sociedade. Quanto mais “livre”, menos produz! O mundo liberal deu ao capital a pretensão de “geração espontânea”, reproduzir-se por si mesmo, sem gerar riquezas sociais.
Aquele filósofo renano já escreveu, em sua décima - primeira tese, que “aos filósofos foi dado compreender o mundo, a nós cabe reformá-lo”. Partindo da mesma idéia, com a licença de Marx, dizemos que os economistas estão felizes e satisfazem-se tentando compreender a crise, a nós cabe transformá-la em um instrumento de denúncia contra este sistema.
Há exatos 90 anos, Rosa Luxemburgo entendeu perfeitamente o recado da décima primeira tese e não se limitou a pequenos discursos. Sem vacilar, legou-nos um alerta: socialismo ou barbárie.
E é exatamente neste ponto em que estamos. O liberalismo vem mostrando sua incapacidade de resolver os problemas da sociedade, se é que algum dia teve esta intenção, e levando-nos para abismos cada vez mais profundos. Ainda tem capacidade de recuperação? Uma vez que sua preocupação não é com a sociedade, somos levados a responder que sim, certamente que ainda poderá sobreviver a esta crise e, em algum tempo, criar as condições para que os investidores, sacerdotes da religião do capital, possam auferir novos lucros.
Voltaremos a ter uma total desregulamentação? Talvez não. Muito provavelmente, nos próximos anos teremos um modelo híbrido, onde o mercado voltará a ter suas liberdades tão defendidas, mas o capital especulativo terá certos limites para não colocar em risco as muralhas do sistema. A possível eleição de Obama deve nos presentear com um novo keynesianismo.
Que delícia de liberalismo, foi o título que encontrei para esta série de artigos. Apenas para mostrar que a atual crise não está determinando o fim do modelo, mas apenas permitindo novas adaptações. O discurso de “deixar fazer” parece um pouco distante, mas que o Estado que eles dizem ser desnecessário continua servindo aos interesses do capital, não temos dúvidas!
Voltaremos...



[i] Citado por Alfredo Jalife-Rahme, no artigo “EEUU: la mayor nacionalización bancaria de la historia”, publicado no La Jornada, 16/09/08

[ii] http://www.bbc.co.uk/portuguese/reporterbbc/story/2008/09/080930_semteto_eua_cq.shtml

Nenhum comentário:

Postar um comentário