O último
encontro com Lula
Fidel Castro
Em julho de 1980, há
30 anos, conheci Lula em Manágua, durante a comemoração do primeiro aniversário
da Revolução Sandinista, graças aos meus contatos com os partidários da
Teologia da Libertação, nascida no Chile, exatamente à época em que visitei o
presidente Salvador Allende (1972).
Através de Frei Betto sabia quem era Lula, um líder operário no qual os
cristãos de esquerda, desde cedo, depositaram as suas esperanças.
Tratava-se de um simples operário da indústria metalúrgica que se
destacava por sua inteligência e prestígio entre os sindicatos, na grande nação
que emergia das trevas da ditadura militar imposta pelo império ianque, na década
de 60.
As relações do Brasil com Cuba tinham sido excelentes até que o poder
dominante no hemisfério, as fez sucumbir. Desde então, passaram-se décadas até
que voltassem lentamente para ser o que hoje são.
Cada país viveu a sua história. Nossa pátria suportou inusitadas
pressões nas etapas incríveis vividas desde 1959, em sua luta frente às
agressões do mais poderoso império da história.
Por isso, é de enorme transcendência para nós a reunião que acaba de
acontecer em Cancún e a decisão de criar uma Comunidade de Estados da América
Latina e Caribe. Nenhum outro fato institucional de nosso hemisfério durante o
último século reflete similar transcendência.
O acordo foi celebrado em meio à mais grave crise econômica que o mundo
globalizado já conheceu, coincidindo com o maior perigo de catástrofe ecológica
de nossa espécie e com o terremoto que destruiu Porto Príncipe, capital do
Haiti, o mais doloroso desastre humano da história de nosso hemisfério, no país
mais pobre do continente e o primeiro onde se erradicou a escravidão.
Quando escrevia esta Reflexão, há apenas seis semanas da morte de mais
de duzentas mil pessoas de acordo a cifras oficiais naquele país, chegaram
notícias dramáticas dos danos causados por outro terremoto, no Chile, que
ocasionou a morte de pessoas cujo número se aproxima a mil, segundo cifras das
autoridades, e enormes danos materiais. Comovem especialmente as imagens do
sofrimento de milhões de chilenos atingidos, material ou emocionalmente, por
aquele golpe cruel da natureza. O Chile, felizmente, é um país com mais
experiência diante desse tipo de fenômeno, muito mais desenvolvido
economicamente e com mais recursos. Se o país não contasse com infraestruturas
e edificações mais sólidas, um número incalculável de pessoas, talvez dezenas
ou inclusive centenas de milhares de chilenos, teriam perecido. Fala-se em dois
milhões de danificados e possíveis perdas que oscilam entre 15 a 30 bilhões de
dólares. Em sua tragédia conta também com a solidariedade e a simpatia dos
povos, entre eles o nosso, embora dado ao tipo de cooperação que precisa é
pouco o que Cuba pode fazer, cujo governo foi um dos primeiros em expressar ao
Chile seus sentimentos de solidariedade, quando as comunicações ainda estavam
paralisadas.
O país que hoje põe à prova a capacidade do mundo para enfrentar a
mudança climática e garantir a sobrevivência da espécie humana é sem dúvida o
Haiti, por constituir um símbolo da pobreza que hoje padecem bilhões de pessoas
no mundo, incluída uma parte importante dos povos de nosso continente.
O que aconteceu no Chile com o terremoto de incrível intensidade de 8,8
graus na escala Richter, a uma profundidade maior do que o abalo sísmico que
destruiu Porto Príncipe, obriga-me a enfatizar a importância e o dever de
estimular os passos de unidade obtidos em Cancún, apesar de não ter ilusões
sobre a difícil e complexa luta de idéias que teremos pela frente perante os
esforços do império e de seus aliados dentro e fora de nossos países por
frustrar o objetivo de unidade e independência de nossos povos.
Desejo deixar registrada a importância e o simbolismo que para mim teve
a visita e o último encontro com Lula, do ponto de vista pessoal e
revolucionário. Ele disse que, muito em breve terminará o seu mandato, por isso
desejava visitar o seu amigo Fidel; qualificativo honroso que recebi de sua
parte. Acredito conhecê-lo muito bem. Em diversas oportunidades conversamos
fraternalmente, dentro e fora de Cuba.
Uma vez tive a honra de visitá-lo em sua casa, situada em um modesto
bairro de São Paulo, onde residia com sua família. Foi para mim um encontro emotivo
com ele, sua esposa e seus filhos. Não esquecerei jamais a atmosfera familiar e
sã daquele lar, e o sincero afeto com que o abordavam seus vizinhos, quando
Lula já era, então, um líder operário e político de prestígio. Ninguém sabia se
chegaria ou não à Presidência do Brasil, pois os interesses e forças que lhe
opunham eram muito grandes, mas me agradava falar com ele. Lula tampouco se importava
muito com o cargo; satisfazia-lhe, sobretudo, o prazer de lutar e o fazia com
irrepreensível modéstia. Isso o demonstrou quando, tendo sido duas vezes derrotado
por poderosos adversários, só aceitou a indicação do Partido dos Trabalhadores pela
terceira vez devido à forte pressão de seus amigos mais sinceros.
Não tentarei fazer recontagem das vezes que falamos antes que ele fosse
eleito Presidente; uma delas, entre as primeiras, foi em meados da década de 80
quando lutávamos em Havana contra a dívida externa da América Latina, que então
subia a 300 bilhões de dólares e já tinha sido paga mais de uma vez. É um
lutador nato.
Duas vezes, como já disse, os seus adversários, apoiados em enormes
recursos econômicos e mediáticos, derrotaram-no nas urnas. Os seus mais
próximos colaboradores e amigos sabiam, entretanto, que havia chegada a hora de
que aquele humilde operário fosse o candidato do Partido dos Trabalhadores e
das forças de esquerda.
Com certeza os seus oponentes o subestimaram, pensaram que não poderia
contar com a maioria parlamentar. Não mais existia a URSS. Que importância
teria a condução de Lula na presidência do Brasil, uma nação de grandes
riquezas, mas de escasso desenvolvimento em mãos de uma burguesia rica e
influente?
Entretanto, o neoliberalismo entrava em crise, a Revolução Bolivariana
triunfara na Venezuela, Ménen estava em queda vertical, Pinochet tinha desaparecido
de cena, e Cuba resistia. Mas Lula foi eleito quando Bush triunfava
fraudulentamente nos Estados Unidos, despojando o seu rival, Al Gore, da
vitória.
Iniciava-se uma etapa difícil. Os primeiros passos do novo Presidente
dos Estados Unidos foram de impulsionar a carreira armamentista e, com ela, o
papel do Complexo Militar Industrial, e reduzir os impostos aos setores mais
ricos do país.
Com o pretexto de luta contra o terrorismo, reiniciou as guerras de
conquista e institucionalizou o assassinato e a tortura como instrumento de
domínio imperialista. São impublicáveis os fatos relacionados com os cárceres
secretos, que delatavam a cumplicidade dos aliados dos Estados Unidos com essa
política. Deste modo, acelerou-se a pior crise econômica que em forma cíclica e
crescente acompanham o capitalismo desenvolvido, mas desta vez com os
privilégios de Bretton Woods e sem nenhum de seus compromissos.
O Brasil, por sua parte, nos últimos oito anos sob a direção de Lula,
vencia obstáculos, incrementava seu desenvolvimento tecnológico, e
potencializava o peso da economia brasileira. A parte mais difícil foi seu
primeiro período, mas teve êxito e ganhou experiência. Com seu incansável
batalhar, serenidade, sangue-frio e crescente consagração à tarefa, em
condições internacionais tão difíceis, o Brasil alcançou um PIB que se aproxima
dos dois trilhões de dólares. Os dados variam segundo as fontes, mas todas o situam
entre as 10 maiores economias do mundo. Apesar disso, com uma superfície de 8
milhões 524 mil quilômetros quadrados, em comparação com os Estados Unidos, cujo
território é um pouco maior, o Brasil só alcança aproximadamente 12% do Produto
Interno Bruto desse país imperialista que saqueia o mundo e desdobra suas
forças armadas em mais de mil bases militares de todo o planeta.
Tive o privilégio de assistir à sua posse no final de 2002. Também
esteve Hugo Chávez, que acabava de enfrentar o golpe de estado traidor de 11 de
abril desse ano, e posteriormente o golpe petroleiro organizado por Washington.
Bush era Presidente. As relações entre o Brasil, a República Bolivariana da
Venezuela e Cuba sempre foram boas e de respeito mútuo.
Sofri um grave acidente em outubro de 2004, que limitou seriamente
minhas atividades durante meses, e adoeci no final de julho de 2006, em virtude
do que não vacilei em delegar minhas funções à frente do Partido e do Estado,
em 31 de julho desse ano, em caráter provisório. Em seguida atribui caráter
definitivo, quando compreendi que não estaria em condições de reassumir minhas
funções.
Assim que a gravidade de minha saúde me permitiu estudar e meditar,
consagrei o meu tempo a isso e a revisar materiais de nossa Revolução, e de vez
em quando publicar algumas reflexões.
Depois que adoeci tive o privilégio de ser visitado por Lula cada vez que
esteve em nossa Pátria e de conversar amplamente com ele. Não direi que sempre
coincidi com toda a sua política. Sou, por princípio, oposto à produção de bicombustíveis
a partir de produtos que possam ser utilizados como alimentos, consciente de
que a fome é, e poderá ser, cada vez mais uma grande tragédia para a
humanidade.
Entretanto - o expresso com toda franqueza - este não é um problema
criado pelo Brasil e muito menos por Lula. Faz parte inseparável da economia
mundial imposta pelo imperialismo e seus aliados ricos. Subsidiando suas
produções agrícolas, protegem seus mercados internos e competem no mercado
mundial com as exportações de alimentos dos países do Terceiro Mundo, obrigados
a importar em troca pelos artigos industriais produzidos com as matérias primas
e os recursos energéticos deles mesmos que tenham herdado a pobreza de séculos
de colonialismo. Compreendo perfeitamente que o Brasil não tinha outra
alternativa, diante da concorrência desleal e dos subsídios dos Estados Unidos
e Europa, senão incrementar a produção de etanol.
A taxa de mortalidade infantil no Brasil é de 23,3 por cada mil
nascidos vivos e a materna de 110 por cada 100 mil partos, enquanto nos países
industrializados e ricos é menos de 5 e 15, respectivamente. Outros dados
similares poderiam ser citados.
O açúcar de beterraba, subsidiado pela Europa, arrebatou ao nosso país o
mercado de açúcar, derivado da cana de açúcar, trabalho agrícola e industrial
precário e eventual que mantinha no desemprego grande parte do tempo os
trabalhadores açucareiros. Os Estados Unidos por sua vez, apoderou-se também de
nossas melhores terras e suas empresas eram proprietárias da indústria. Um dia,
abruptamente, despojaram-nos da cota açucareira e bloquearam nosso país para
esmagar a Revolução e a independência de Cuba.
Hoje, o Brasil desenvolveu o cultivo da cana de açúcar, da soja e do
milho com máquinas de alto rendimento que podem empregar nesses cultivos com maior
produtividade. Quando um dia observei a preparação de uma extensão de 40 mil
hectares de terra em Cego de Ávila dedicada ao cultivo de soja em rotação com
milho onde se tratará de trabalhar durante todo o ano, exclamei: é o ideal para
uma empresa agrícola socialista, altamente mecanizada com elevada produtividade
por homem e por hectare.
Os problemas da agricultura e suas instalações no Caribe são os
furacões que, em número crescente, arrasam seu território.
Também nosso país elaborou e assinou com o Brasil o financiamento e
construção de um moderno porto em Mariel, que será de enorme importância para
nossa economia.
Na Venezuela, está sendo utilizada a tecnologia agrícola e industrial
brasileira para produzir açúcar e utilizar o bagaço como fonte de energia
termoelétrica. São equipamentos modernos que trabalham em uma empresa também
socialista. Na República Bolivariana utilizam o etanol para melhorar o efeito
ambientalmente nocivo da gasolina.
O capitalismo desenvolveu as sociedades de consumo e também o
esbanjamento de combustível que engendrou o risco de uma dramática mudança
climática. A natureza demorou 400 milhões de anos para criar o que nossa
espécie está consumindo em apenas dois séculos. A ciência ainda não resolveu o
problema da energia que substituirá a gerada pelo petróleo; ninguém sabe quanto
tempo será necessário e quanto custaria resolvê-lo a tempo. Terá condições? Isso
foi o que se discutiu em Copenhague, e a Cúpula foi um fracasso total.
Lula me contou que quando o preço do etanol chega a 70% do preço da
gasolina, já não é negócio produzi-lo. Expressou que dispondo o Brasil da maior
floresta do planeta, reduzirá progressivamente o corte atual em 80%.
Hoje, o país possui a mais avançada tecnologia do mundo em perfuração
de poços em águas profundas, e pode extrair combustível localizado a uma
profundidade de sete mil metros no fundo do mar. Há 30 anos teria parecido
história de ficção científica.
Explicou os programas educacionais de alto nível que o Brasil se propõe
levar adiante. Valoriza altamente o papel da China na esfera mundial. Declarou
com orgulho que o intercâmbio comercial com esse país se eleva a 40 bilhões de
dólares.
Uma coisa é indiscutível: o operário metalúrgico se converteu
atualmente em um estadista destacado e de prestígio cuja voz se escuta com
respeito em todas as reuniões internacionais.
Está orgulhoso por ter recebido a honra de sediar os Jogos Olímpicos
para o Brasil em 2016, em virtude do excelente programa apresentado na
Dinamarca. Será sede também do Mundial de Futebol em 2014. Tudo foi fruto dos
projetos apresentados pelo Brasil, que superaram os de seus competidores.
Uma grande prova de seu desinteresse foi a renúncia à reeleição, e
confia em que o Partido dos Trabalhadores continuará governando o Brasil.
Alguns invejosos de seu prestígio e de sua glória, e pior ainda, os que
estão a serviço do império, criticaram-no por visitar Cuba. Utilizaram para
isso as abjetas calúnias usadas contra Cuba há meio século.
Lula conhece há muitos anos que em nosso país jamais se torturou
ninguém, jamais se ordenou o assassinato de um adversário, jamais se mentiu ao
povo. Tem certeza de que a verdade é companheira inseparável de seus amigos
cubanos.
De Cuba partiu rumo ao nosso vizinho Haiti. Informamos a ele nossas
idéias sobre o que propomos com relação a um programa sustentável, eficiente,
especialmente importante e econômico para o Haiti. Sabe que mais de cem mil
haitianos foram atendidos por nossos médicos e graduados da Escola
Latino-americana de Medicina depois do terremoto. Falamos coisas sérias,
conheço seus ardentes desejos de ajudar esse nobre e sofrido povo.
Guardarei uma indelével lembrança de meu último encontro com o
Presidente do Brasil e não vacilo em proclamá-lo.
Fonte: CubaDebate, 1º de março
de 2010
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