O
capitalismo hoje promove uma produção destrutiva
István Mészáros [*]
Folha - O sr. vem ao Brasil para
falar sobre György Lukács. Como profundo conhecedor do legado do filósofo, como
avalia a importância das suas ideias hoje?
István Mészáros - Lukács foi meu grande professor e amigo por 22 anos,
até sua morte, em 1971. Ele começou como crítico literário politicamente
consciente quase 70 anos antes. Com o passar do tempo, foi se movendo na
direção dos temas filosóficos fundamentais. Seus três trabalhos principais
nesse campo – "História e Consciência de Classe (1923), "O Jovem
Hegel" (1948) e "A Destruição da Razão (1954) – sempre resistirão ao
teste do tempo.
Seus estudos históricos e estéticos sobre grandes figuras da literatura
alemã, russa e húngara seguem sendo as mais influentes em muitas universidades.
Além disso, ele é autor de uma monumental síntese estética, que, tenho certeza,
virá à luz um dia também no Brasil. Felizmente, seus também monumentais volumes
sobre problemas da ontologia do ser social estão sendo publicados agora no
Brasil pela Boitempo. Eles tratam de algumas questões vitais da filosofia, que
têm implicações de longo alcance também para a nossa vida cotidiana e para as
lutas em curso.
O que é menos conhecido sobre a vida de Lukács é que ele esteve
diretamente envolvido em altos níveis de organização política entre 1919 e
1929. Ele foi ministro de Educação e Cultura no breve governo revolucionário da
Hungria em 1919, que surgiu a partir da grande crise da Primeira Guerra Mundial.
No Partido ele pertencia ao "grupo Landler"; era o segundo no
comando. Esse grupo recebeu o nome em homenagem a Jenö Landler (1875-1928), que
foi um líder sindical antes de se tornar uma figura do alto escalão partidário.
Ela buscava seguir uma linha estratégica mais ampla, com maior envolvimento das
massas populares.
Lukács foi derrotado politicamente em 1929. No entanto, voltando a
1919, em um dos seus artigos ele alertava que o movimento comunista poderia
enfrentar um grande perigo quando "o proletariado transforma sua ditadura
contra ele mesmo". Ele provou ser tragicamente profético nesse alerta.
De qualquer forma, em todos os seus desempenhos públicos, políticos e
teóricos, se pode encontrar sempre evidências de sua grande estatura moral.
Hoje em dia lemos muito sobre corrupção em política. Podemos ver a importância
de Lukács também como um exemplo positivo, mostrando que moralidade e política
não só devem (como advogava Kant) como podem andar juntas.
FSP - O senhor e Lukács têm
vidas que unem teoria e prática. Qual é a diferença entre ser um militante
marxista no século 20 e hoje?
IM - A dolorosa e óbvia grande diferença é que os principais partidos
da Terceira Internacional, que tiveram uma força organizacional significativa e
até influência eleitoral durante algum tempo (como no caso dos partidos
comunistas da França e da Itália), implodiu não só no Leste, mas também no
Ocidente. Apenas alguns partidos comunistas bem pequenos permanecem fiéis aos
princípios de outrora. Essa implosão ocorreu muito tempo após a morte de
Lukács.
Naturalmente, como um militante intelectual por mais de 50 anos ele
estaria hoje desolado com esses desdobramentos. Mas, partidos são criações
históricas que respondem, de maneira boa ou ruim, a necessidades de mudanças.
Marx foi bem ativo antes da constituição de um partido importante que pudesse,
depois, se juntar à Terceira Internacional. Quanto ao futuro, alguns partidos
radicalmente eficazes podem ser reconstituídos se as condições mudarem
significativamente.
Mas o tema em si é muito mais amplo. A necessidade de combinar teoria e
prática não está ligada a uma forma específica de organização. De fato, uma das
tarefas mais cruciais para a combinação de teoria e prática é o exame da
difícil questão sobre porque houve a implosão desses partidos, tanto no
Ocidente quanto no Leste, e como seria possível remediar esse fracasso
histórico no atual desenvolvimento da história.
FSP - O que significa ser um
marxista hoje?
IM - Praticamente o mesmo que Marx enxergou nos seus dias. Mas, é
claro, é preciso ter em mente as mudanças históricas e as novas circunstâncias.
Marx enfatizou corretamente desde o princípio que, ao contrário do passado, uma
característica crucial da análise socialista dos problemas é a confrontação com
a autocrítica. Ser crítico ao que nos opomos é relativamente fácil. Isso porque
é sempre mais fácil dizer "não" do que encontrar uma forma positiva
que possa ser utilizada para que as mudanças necessárias possam ser realizadas.
É preciso um verdadeiro senso de proporção: compreender tanto fatores
negativos – incluindo a sua parte mais difícil da autocrítica –, como as
potencialidades positivas sobre as quais o progresso pode ser feito. Ambos
aspectos são relevantes. É essencial reexaminar com uma intransigente autocrítica
até os acontecimentos históricos mais problemáticos do século passado, em
conjunto com suas então expectativas. Isso se quisermos superar as contradições
do nosso lado no futuro.
A pressão do tempo e os atuais conflitos das situações históricas de
hoje tendem a nos desviar desse caminho de ação. Mas o princípio orientador de
combinar crítica com genuína autocrítica será sempre um requisito essencial.
FSP - Quando a União Soviética
acabou, muitos previram o fracasso do marxismo. Depois, com a crise de 2008,
muitos previram o fim do neoliberalismo e a volta das ideias de Marx. Do seu
ponto de vista, o marxismo está em expansão ou não?
IM - Você está certa. É preciso ser cuidadoso sobre conclusões
apressadas e definitivas em qualquer direção. Geralmente elas são geradas mais
por desejos do que por evidências históricas. O colapso do governo Gorbachev
não resolveu nenhum dos problemas em questão na URSS. A fantasiosa tese sem
sentido do "fim da história" de Fukuyama não faz a menor diferença.
Também não é possível descartar o neoliberalismo simplesmente pelo fato
de que suas ideias e políticas, promovidas com agressivo triunfalismo, não são
apenas perigosamente irracionais (haja vista sua atitude sobre a guerra), mas
são absurdas as suas defesas do devaneio do imperialismo liberal. Sob certas
condições, mesmo absurdos perigosos podem obter apoio massivo, como sabemos
pela história.
A verdadeira questão principal é quais são as forças subjacentes e
determinações que conduzem o povo a becos sem saída em diferentes direções. A
mudança de humor que colocou "O Capital", de Marx, nas mesas de café
da moda (não para estudo, mas para mostrar tema de conversa) não significa que
as ideias marxistas estão agora avançando por todo o mundo. É inegável que o aprofundamento
da crise que vivenciamos hoje está gerando protestos por todo o mundo.
Mas encontrar soluções sustentáveis para as causas que tendem a surgir
em todos os lugares requer a elaboração de estratégias apropriadas e também
correspondentes formas de organização que possam coincidir com a magnitude dos
problemas em jogo.
DSP - E o que dizer sobre as
ideias conservadoras? Elas estão ganhando mais adeptos?
IM - Em certo sentido, elas estão inegavelmente ganhando mais adeptos,
mesmo que não seja no terreno das ideias conservadoras sustentáveis. "Não
mudar" é quase sempre muito mais fácil do que "mudar" uma forma
estabelecida de comportamento. É a situação histórica real que induz as pessoas
a irem numa direção em vez de outra. Mas a questão permanece: o curso adotado é
sustentável? Há uma conhecida lei da física, no terreno da eletricidade, que
diz que a corrente elétrica segue a linha da menor resistência.
Isso é verdadeiro também sobre a situação de muitos conflitos sociais
que decidem, mesmo que temporariamente, em que direção um problema deve ser
equacionado naquele momento dependendo da relação de forças (ou seja: a força
de resistência à situação atual) e da capacidade de realização de alternativas
adequadas. A viabilidade de longo prazo de um curso adotado em relação a outro
não é de forma alguma garantia de melhor sucesso. Muitas vezes o oposto é o
caso.
Na nossa situação histórica, as respostas viáveis de longo prazo podem
requerer incomparáveis maiores esforços do que tentar seguir o "curso que
deu certo no passado", em vez de encarar o desafio e o fardo de uma
mudança estrutural radical. Mas os problemas são enormes, e a interação de
forças na sociedade é sempre incomparavelmente mais complexa do que a direção
da corrente elétrica. Por isso, é muito duvidoso que o que "deu
certo" na linha conservadora da menor resistência possa funcionar no médio
prazo, muito menos no longo prazo.
FSP - Qual seria uma boa
definição para o período histórico atual?
IM - Essa é a questão mais importante em nosso período histórico em que
crises se manifestam em diferentes planos da nossa vida social. Se estamos
preocupados em enfrentar uma solução historicamente sustentável para nossos
graves problemas, entender a verdadeira natureza do debate das contradições é
essencial. Conflitos e antagonismos históricos são passíveis somente a soluções
do tempo histórico. É muito confuso falar de capitalismo como um sistema
mundial.
O capitalismo abarca apenas um período do sistema do capital. Só
ultimamente é que constitui um sistema mundial de fato, para além da
sustentabilidade do próprio capitalismo. O capitalismo como um modo social de
reprodução é caracterizado pela extração predominantemente econômica da mais
valia do trabalho. Entretanto, há também outras formas de obter a acumulação do
capital, como a já conhecida extração política do trabalho excedente, como foi
feito na URSS e em outros lugares no passado.
Nesse sentido, é importante notar que a diferença fundamental entre as
tradicionais crises cíclicas/conjunturais do passado, pertencendo à normalidade
do capitalismo, e a crise estrutural do sistema do capital como um todo - que é
o que define o atual período histórico. Por isso tento sempre enfatizar que
nossa crise estrutural (que pode ser datada do final dos anos 1960 e se
aprofundando desde então) necessita de mudanças estruturais para uma solução
duradoura possível. E isso certamente não pode ser atingido com uma "linha
de menor resistência".
FSP - Quais são as figuras mais
importantes deste século 21 até agora?
IM - Como sabemos, o século 21 é ainda muito jovem e muitas surpresas
ainda estão por vir. Mas a figura política que teve o maior impacto na evolução
histórica do século 21 – um impacto que deve perdurar e ser estendido – foi o
presidente da Venezuela Hugo Chávez Frias, que morreu em março deste ano.
Claro, Fidel Castro também está muito ativo na primeira metade desta
década, mas as raízes de seu grande impacto histórico estão nos anos 1950. Do
lado conservador, se ainda estivesse vivo, eu não hesitaria em nomear o general
De Gaulle. Ninguém se alinha à sua estatura histórica no lado conservador até
agora neste século.
FSP - E qual o evento mais
surpreendente do século 21?
IM - É provavelmente a velocidade com que a China conseguiu se
aproximar da economia norte-americana, alcançando agora o ponto em que
ultrapassar os EUA como "motor do mundo" (como definem de forma
complacente) é considerado factível em apenas alguns anos. Era previsível há
muito tempo que isso iria acontecer tendo em vista o tamanho da população
chinesa e a taxa de crescimento anual de sua economia. Mas muitos especialistas
diziam que isso iria ocorrer daqui a muitas décadas no futuro.
No entanto, seria muito ingênuo imaginar que a China pode permanecer
imune à crise estrutural do sistema do capital, simplesmente porque seu balanço
financeiro é incomparavelmente mais saudável do que o norte-americano. Mesmo o
superávit de trilhões de dólares dos chineses pode evaporar-se de um dia para
outro no meio de uma turbulência não muito distante no futuro. A crise
estrutural, por sua própria natureza, obrigatoriamente afeta a humanidade como
um todo. Nenhum país pode invocar imunidade a isso, nem mesmo a China.
FSP - As crises fazem parte do
capitalismo. Qual sua avaliação sobre a que eclodiu há cinco anos. Quem ganhou
e quem perdeu?
IM - Parte do capitalismo? Sim e não! Sim, no sentido limitado de que a
crise eclodiu com intensidade dramática nos países capitalistas mais poderosos
do mundo, que se autodenominam "capitalistas avançados". Mas muito do
seu "avanço" é construído não apenas sobre privilégios de exploração
(no passado e no presente) das suas relações de poder (políticas e econômicas)
em relação ao chamado "Terceiro Mundo", mas também sobre o
catastrófico endividamento de sua realidade econômica.
Escrevi em 1987, num artigo publicado no Brasil, que o "verdadeiro
problema da dívida" não era – como foi apontado na época – a dívida da
América Latina, mas a dívida insolúvel dos EUA, que está fadada a acabar com
uma colossal quebra, equivalente à magnitude de um terremoto econômico para o
mundo todo. Há dois anos, quando dei minha última palestra no Brasil, apontei
que a dívida dos EUA somava astronômicos 14,5 trilhões de dólares, antecipando
seu inexorável aumento. Hoje nos movemos para os 17 trilhões de dólares, e mais e mais.
Qualquer um que imagine que isso é sustentável no futuro, ou que isso
não vai afetar todo o mundo na Terra, quando o processo de crescimento
inexorável do endividamento está fadado a levar a uma situação paralisante, deve
viver num planeta diferente.
FSP - O capitalismo se
fortaleceu ou se enfraqueceu com a crise?
IM - As tradicionais crises cíclicas/conjunturais costumavam fortalecer
o capitalismo no passado, já que eram eliminadas empresas capitalistas
inviáveis. Assim, ocorria o que Schumpeter idealmente chamou de
"destruição criativa". Os problemas são muito mais sérios hoje,
porque a crise estrutural afeta até dimensão mais fundamental do controle
social metabólico da humanidade, incluindo a natureza de forma perigosa. Assim,
falar de "destruição criativa" nas condições atuais é totalmente
autocomplacente. É muito mais apropriado descrever o que está acontecendo como
uma "produção destrutiva".
DSP - A crise provocou mudanças
políticas em muitos países. É possível discernir um movimento geral, mais para
a esquerda, ou mais para a direita?
IM - Até agora, mais para a direita do que para a esquerda. Todos os
governos dos países capitalisticamente avançados – e não apenas eles – adotaram
políticas que tentam resolver os problemas através da "austeridade",
com cortes reais em salários, assim como nos padrões de vida já precários
daqueles que são geralmente descritos como os "menos privilegiados".
E a linha de "menor resistência" ajuda na extensão, ou, ao
menos, na tolerância das respostas institucionais conservadoras dominantes para
a crise. Mas é muito duvidoso que essas políticas, que agora tendem a favorecer
a direita, possam produzir soluções duradouras.
FSP - Como o senhor previu, a
pobreza aumentou nos últimos anos, mesmo em países do coração do capitalismo.
Nos EUA, a desigualdade aumentou. No Reino Unido, há um movimento para dar
comida aos pobres, coisa que não ocorria desde a Segunda Guerra. O que está
errado no capitalismo? É possível que o sistema não possa mais gerar
crescimento suficiente para a humanidade?
IM - Dar cesta básica para os muito pobres não é o único sinal visível
desse aspecto da crise, nem essa situação está confinada aos países
capitalisticamente avançados, como o Reino Unido. Escrevi em "Para Além do
Capital" (publicado em inglês em 1995) sobre a volta dos sopões. Nos
últimos dois ou três anos podemos vê-los nas telas das TVs em escala maior no
mais "avançado" (e privilegiado) país: os EUA. Certamente há algo de
profundamente errado – e totalmente insustentável – na maneira pela qual o
crescimento é perseguido sob o capitalismo.
Algumas formas, pela sua natureza cancerosa de crescimento, são
proibitivas mesmo em termos de condições elementares de ecologia sustentável.
Porque elas são manifestações flagrantes de "produção destrutiva". Ao
mesmo tempo, tanta coisa é desperdiçada como "lixo rentável",
enquanto incontáveis milhões, agora mesmo nos mais avançados países
capitalisticamente, precisam suportar dificuldades extremas. Há alguns dias o
ex-primeiro-ministro britânico John Major estava reclamando que neste Inverno
muitas pessoas no Reino Unido terão que escolher entre comer e se aquecer. Em
1992, quando ainda era primeiro-ministro, ele disse com máxima
autocomplacência: "O socialismo está morto; o capitalismo funciona".
Eu disse, então: "Precisamos perguntar: o capitalismo funciona para quem e
por quanto tempo?".
A escolha entre comer e se aquecer, que ele é agora forçado a
reconhecer, não é exatamente a prova de quão bem o "capitalismo funciona".
Na realidade, o único crescimento com significado é o que responde à
necessidade humana. Crescimento destrutivo, incluindo o vasto complexo
industrial militar – chame-o de "destruição criativa" – pode
demonstrar apenas fracasso. O único crescimento historicamente sustentável para
o futuro é aquele que fornece as mercadorias em resposta à necessidade humana e
os recursos para aqueles que delas necessitam.
FSP - A crise ampliou o
desemprego em muitas regiões e abalou o Estado de bem-estar social na Europa.
Multidões foram às ruas protestar na Espanha, em Portugal, na França, na
Inglaterra, na Grécia. Nos EUA, o Occupy Wall Street desapareceu. Qual deve ser
o resultado desses movimentos? Há conexão entre eles? Os partidos de esquerda
estão se beneficiando dessas ações ou não?
IM - Em contraste com a idealização propagandística, o Estado do
bem-estar social, na realidade, foi muito limitado a um punhado de países
capitalistas. Mesmo lá foi construído sobre fundações frágeis. Não poderia ser
nunca expandido ao restante do mundo, apesar da promoção acrítica das teorias
do desenvolvimento da modernização, quase sempre estruturadas no quadro
contraditório do sistema do capital. A verdadeira tendência de longo prazo
apontava no sentido oposto ao do idealizado Estado do bem-estar.
A tendência objetivamente identificável foi caracterizada por mim já
nos anos 1970 como a "equalização descendente da taxa de exploração
diferencial". Isso inclui as diferenças marcantes nos níveis de ganhos por
hora de trabalhadores para exatamente o mesmo trabalho na mesma corporação
transnacional (por exemplo, nas linhas de montagem da Ford) na
"metrópole" em relação aos países "periféricos".
Essa tendência continua a se aprofundar e ainda está longe da sua
necessária amplitude. Os protestos em muitos países capitalistas são
compreensíveis e devem se aprofundar no futuro. Eles surgem nesse arcabouço
dessa tendência perversa de equalização de longo prazo. Compreensivelmente, os
partidos que operam no enquadramento da política parlamentar não podem se
beneficiar dos protestos. Isso porque eles tendem a acomodar seus objetivos a
limites restritos das consequências negativas decorrentes do Estado do
bem-estar.
FSP - Lukács dizia que os
sindicatos eram a organização social civil mais importante. Isso continua
valendo?
IM - A visão de Lukács sobre esse ponto era muito influenciada pelo seu
camarada e amigo Jenö Lander, que foi um líder sindical antes de se tornar
liderança do mesmo grupo partidário no qual Lukács também desempenhou um papel
de liderança.
Lukács está certo sobre a contínua importância dos sindicatos, com um
acréscimo importante. Não foi ressaltado suficientemente que a potencialidade
dos sindicatos foi – e continua sendo – afetada de forma muito ruim pela
divisão do movimento da classe trabalhadora organizada entre o chamado
"braço industrial" (sindicatos) e o "braço político"
(partidos) do trabalho.
A potencialidade positiva dos sindicatos não acontecerá até que essa
divisão prejudicial, que produz danos para ambos, seja corrigida
significativamente.
FSP - Qual sua avaliação sobre a
chamada Primavera Árabe? Ela acabou? Há ligação entre os movimentos no mundo
árabe e os da Europa? Alguns enxergam uma nova disputa na região. Isso faz
sentido?
IM - O impacto da Primavera
Árabe tendeu a ser muito exagerado na época em que testemunhamos os primeiros
dramáticos acontecimentos. E, depois, sem razão, foram minimizados quando as
manifestações de massa no Norte da África arrefeceram.
Até agora, nenhum dos problemas fundamentais foi resolvido em nenhum
país em questão. Assim, os protestos vão continuar no futuro, focando também em
algumas das graves contradições econômicas (que resultaram em protestos por
comida no passado, relutantemente reconhecidos até por proeminentes publicações
do "establishment," como a revista The Economist, de Londres), e não apenas na sua dimensão militar e
política.
Os levantes vão continuar, ganhando na mídia o nome da estação ligado a
eles. Também não pode ser esquecido que alguns países europeus tiveram
importantes interesses coloniais no Norte da África e no Oriente Médio. E há
tentativas de reavivá-los, o que é bem visível hoje. Ninguém deve imaginar que
o imperialismo está confinado no passado.
FSP - O Brasil também está
passando por uma fase de muitos protestos. Como o senhor avalia esse processo?
Há conexão com o que ocorre no mundo?
IM - É impossível encontrar hoje um lugar no mundo onde não estejam
ocorrendo sérios protestos sociais. Eles parecem estar focados em diferentes
temas, criando a impressão superficial de que não existe correlação entre eles.
Mas isso é também um autoengano. Muitas vezes, no passado, muitos desses
protestos costumavam ser desconsiderados, tidos como movimentos de um tema
específico, sem implicações na estabilidade geral da ordem social estabelecida.
Nada pode ser mais distante da verdade.
É verdade que a grande variedade de protestos que testemunhamos hoje em
diferentes partes do mundo não se enquadra nos canais e nos modos de ação da
política tradicional. Mas seria tolice ter isso como prova de sua irrelevância.
Ao contrário, eles apontam para razões muito mais profundas para os problemas e
as contradições que se acumularam.
No momento, não é visível nenhuma estratégia de coalescência. Sua
característica geral parece ser a de que estão testando os limites e procurando
maneiras mais efetivas de articulação de suas preocupações. Estamos
testemunhando um processo que ainda está em desdobramento e cujo significado
deve ter grandes consequências no futuro.
FSP - Há quem enxergue a ação
dos EUA nas manifestações pelo mundo, com o objetivo de desestabilizar
governos. Isso faz algum sentido?
IM - Isso é uma enorme e excessiva simplificação. Os EUA indubitavelmente
estão na linha de frente de conflitos e conflagrações internacionais, por conta
do seu impressionante poder dominante no hegemônico imperialismo global. Mas as
causas são muito mais profundas do que o que possa ser resolvido por "desestabilização
de governos".
Em alguns casos limitados isso pode acontecer, e, de fato, pode ser
buscado com êxito pelas forças mais extremistas de organismos da administração
norte-americana. Mas, há limite para tudo, até para o neoliberal mais radical e
para o aventureirismo neoconservador.
FSP - Como a internet muda a
luta política hoje?
IM - Certamente a internet ajuda na comunicação e na coesão dos
movimentos de protesto, como ficou evidenciado recentemente. Mas não deve ser
esquecido que ela também dá os recursos para as forças do outro lado do
confronto – dando assistência direta a vários Estados capitalistas.
De qualquer forma, para os dois lados a internet pode apenas fornecer
ajuda subsidiária, não importando quão forte ela seja. Os problemas só podem
ser resolvidos no próprio terreno em que surgiram. E isso diz respeito às
determinações estruturais fundamentais de nossa ordem social.
FSP - Como o senhor analisa a
relação entre capitalismo e democracia? São compatíveis?
IM - Capitalismo e democracia não são incompatíveis, salvo em situações
de crises extremas que trazem à tona os Hitlers e os Pinochets onde quer que
tais crises eclodam – mesmo no Brasil no passado recente. A normalidade da
produção capitalista é sustentada de forma melhor na ordem das regras formais
democráticas de controle e regulação.
É por isso que regimes ditatoriais são insustentáveis no longo prazo e
tendem a ser revertidos (mesmo a "miltonfreedmenização" do Chile de
Pinochet) para modos políticos mais maleáveis de regulação formal democrática,
dentro da moldura geral das trocas capitalistas.
FSP - Nos EUA, a direita radical
colocou o país à beira do abismo por conta de uma tímida reforma no sistema de
saúde. Isso trouxe riscos para os grandes negócios e as finanças. Como o senhor
explica isso?
IM - O sistema de saúde nos EUA é apenas uma parte da crise que
testemunhamos. Fundamentalmente é inseparável da dívida astronômica de 17 trilhões
de dólares que já mencionei. Por enquanto, foi feita uma acomodação parcial
entre democratas e republicanos, de forma que a nova data para o problema
trilionário irresoluto ficou para o final de 2013, mas não deve trazer
novamente um suspense internacional.
Mas podemos estar certos de que essa questão voltará com crescente
severidade. Dezessete trilhões de dólares significa tanto que não é possível
encontrar um tapete de tamanho suficiente sob o qual se possa varrer e esconder
essa quantia. Como costumeiramente é feito como forma de adiar a solução de
problemas.
FSP - É possível dizer que o
partido democrata foi mais para a direita e falhou em isolar a direita radical
do partido republicano?
IM - É difícil dizer qual dos dois partidos é mais à direita do que o
outro. Mas ambos estão igualmente errados ao estarem tão à direita para serem
capazes de enfrentar os graves problemas da sociedade norte-americana.
FSP - Como o senhor analisa a
administração Obama e o estado da democracia nos EUA?
IM - Obama prometeu muita coisa que nunca se materializou sob sua
Presidência. Basta pensar em Guantánamo. Mas isso não é questão de um
presidente em particular. Estruturas de poder não podem ser entendidas em
termos personalizados.
Devemos lembrar a entrevista à televisão que o presidente democrata
Jimmy Carter deu. Ele chorou, com lágrimas nos olhos, ao dizer que "o
presidente não tem poder". De fato, ele conseguiu fazer mais desde que
deixou a Presidência do que pode quando estava no comando. Até agora não vimos
o presidente Obama chorar na televisão. Mas "há uma primeira vez para
tudo", diz o ditado.
FSP - Os EUA espionam o mundo
inteiro. Recentemente foi revelado um esquema de espionagem norte-americana no
Brasil envolvendo interesses em petróleo e mineração. O que o Brasil deveria
fazer para defender sua soberania?
IM - Esse tema beira a insanidade. Espionam todos como potenciais
inimigos, mesmo chefes de Estado de governos amigos. Há quem possa rir e achar
que o problema não é tão sério. Mas precisamos lembrar que a defesa da
soberania não pode estar confinada no domínio das leis e da política
internacionais.
A legislação internacional é pateticamente fraca a esse respeito, sem
mencionar as instituições que tratam globalmente disso. Vale lembrar o título
de um livro de um proeminente advogado liberal, Philippe Sands. É "Lawless World: America and
the Making and Breaking of Global Rules".
Essas questões são decididas pelas relações reais de poder. E, é claro,
as forças preponderantes do capital global ficam com a parte do leão nesse
processo de tomada de decisão. A soberania não pode ser protegida sem se
atentar para esse lado crítico do problema, inseparável do poder preponderante
das corporações gigantes do capital transnacional.
FSP - O poder dos EUA está em
ascensão ou em queda?
IM - Seria mais apropriado dizer que ele está estacionado, mas ainda é
o mais dominante. As condições que explicam essa dominância estão presentes e
são bem visíveis: vão do complexo industrial-militar, ao Banco Mundial, ao fato
de o dólar ser a moeda de troca mundial. Nenhum outro país poderia sonhar em
impor ao mundo uma dívida de 17 trilhões de dólares. Mas uma dominância que
repousa sobre esse tipo de fundações só pode ser instável.
FSP - Qual é a sua visão da
China? Lá a pobreza diminuiu. Há socialismo?
IM - As realizações da China no campo da produção incluindo o declínio
da pobreza que você menciona têm sido monumentais. Mas há várias grandes
perguntas para o futuro. Acima de tudo: por quanto tempo poderão ser mantidas
as realizações na área produtiva sem que elas causem danos irreparáveis nos
recursos gigantescos no domínio da ecologia?
Mais ainda: por quanto tempo poderão ser aceitas as impressionantes
desigualdades entre os níveis mínimos de ganhos da população trabalhadora e a
riqueza dos altamente privilegiados? O socialismo é inconcebível sem uma
substantiva igualdade – também na China.
FSP - No passado, as disputas no
interior do capitalismo provocaram guerras mundiais. Essa hipótese está no
horizonte?
IM - A opção pela guerra foi usada no passado como parte da tentativa
de resolver problemas entre partes em conflito sob as regras do capital. Foram
duas guerras mundiais no século 20. Com as armas de destruição em massa, ficou
impossível prever a compatibilidade dessa solução com as condições elementares
da racionalidade. Mas há representantes da direita radical que não hesitariam
em jogar com fogo e até abertamente advogam a plena legitimidade de jogar com
fogo.
Muitos deles estão presentes em elevados postos da hierarquia política.
Assim, o presidente [Bill] Clinton, por exemplo, declarou que "há apenas
uma nação necessária, os EUA". Na mesma época, Robert Cooper (guru do
primeiro-ministro britânico Tony Blair e conselheiro internacional de Xavier
Solana) cantava louvores para o agressivo imperialismo liberal em seus escritos.
Da mesma forma, Richard Haass, diretor de planejamento político no
departamento de Estado na gestão George W. Bush, insiste na necessidade de uma
estratégia imperialista mais agressiva, escrevendo que a defensiva, não o
imperialismo agressivo, é o maior perigo do interesse em reafirmar a hegemonia
global dos EUA. Esta precisa ser defendida por quaisquer meios, mesmo com a
guerra explícita.
A racionalidade é, obviamente, a grande dificuldade para implantar
essas estratégias. Mas ninguém pode dizer que a possibilidade de até mesmo uma
conflagração mundial possa agora ser excluída do horizonte histórico.
FSP - É possível dizer que a
influência dos EUA na América Latina declinou na última década?
IM - Sim. Falarei dos países relevantes nesse aspecto em seguida. E
outros poderão se agregar a eles no futuro.
FSP - Como o senhor analisa as
experiências de países como Venezuela (que fala em socialismo do século 21),
Bolívia, Equador, Uruguai, Argentina?
IM - Eles trilham por uma estrada muito difícil, na qual, indubitavelmente,
muitos obstáculos serão erguidos no futuro pelo poder imperial dominante. Os
EUA declararam abertamente que a América Latina era o seu quintal,
reivindicando legitimidade para a sua dominação na região.
FSP - Como o senhor avalia os
dez anos de PT no governo do Brasil?
IM - Visitei o escritório do futuro presidente Lula em 1983. Tirei
então uma foto do escritório onde se podia ler uma palavra iluminada:
"Tiradentes". Eu fiquei pensando e continuo pensando hoje quanto
tempo mais levará para que seja possível dizer que o escritório nacional de
"Tiradentes" teve êxito em extrair os dentes infeccionados que causam
tanta dor, mesmo num país com tantos recursos, em todos os sentidos, como o
Brasil.
FSP - Qual é a sua visão sobre a
relevância das ideias socialistas hoje?
IM - Mencionei anteriormente que nossos problemas só podem encontrar
soluções sustentáveis na sua época. Outras formas de enfrentá-los podem ser
revertidas, como ocorreu no passado.
As ideias socialistas têm sido definidas desde o início como as que
requerem uma época histórica para a sua concretização, embora os problemas
imediatos de onde elas devem partir sejam muito dolorosos.
Em outras palavras, elas requerem não apenas os serviços urgentes de
"Tiradentes", mas também prevenção para as doloridas infecções no
longo prazo. As ideias socialistas são, portanto, mais relevantes hoje do que
jamais foram.
FSP - Que países ou partidos
representam o socialismo hoje?
IM - Apenas alguns partidos muito pequenos proclamam sua fidelidade às
ideias socialistas. E não há país que possa chamar a si mesmo como socialista.
FSP - No passado o senhor usou a
expressão socialismo Mickey Mouse para tratar de partidos que apenas brincavam
com as ideias socialistas. Isso continua a ocorrer?
IM - Não exatamente. O socialismo Mickey Mouse ficou mais fraco. O
Partido Comunista Italiano, que foi o partido de Antonio Gramsci e da Terceira
Internacional, primeiro se autoconverteu no que se chamam de democratas da
esquerda.
Depois achou até a palavra esquerda muito comprometedora. Então se
rebatizaram de partido dos democratas. Não há mais Mickey Mouse. É mais como um
Popeye que perdeu o seu espinafre.
FSP - Quais são suas
expectativas sobre o socialismo ou o comunismo no futuro? É um objetivo
inatingível? E sobre o risco de barbárie? Existe?
IM - Escrevi num livro também publicado no Brasil [ O século XXI:
Socialismo ou barbárie ] que se tivesse que modificar as famosas palavras de
Rosa Luxemburgo – "socialismo ou barbárie" – acrescentaria:
"Barbárie se tivermos sorte". Porque a exterminação da humanidade é a
ameaça que se desenrola. Enquanto falharmos em resolver nossos grandes
problemas que se espalham por todas as dimensões da nossa existência e nas
relações com a natureza, o perigo vai permanecer no nosso horizonte.
FSP - Onde deve estar um
militante marxista hoje?
IM - Contribuindo em tudo que ele ou ela possam fazer para buscar
solução duradoura para esses grandes problemas.
FSP - Qual o seu plano para o
futuro?
IM - Continuar trabalhando em projetos de longo prazo que dizem
respeito a todos nós.
[*]Entrevistado por Eleonora de Lucena,
repórter especial da Folha de S. Paulo, 17/11/2013
www.pcb.org.br 07/01/2014
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