O governo não pode mais negligenciar aqueles que demonstram
responsabilidade política e querem renegociar a transição em curso no país.
Saul Leblon
Não há muito tempo, nem são tantas as opções assim. Os dados na mesa estão
cada vez mais claros.
Eles exigem opções estruturais e coragem política para adotá-las.
O banho-maria já não alivia a pressão da caldeira.
O governo precisa negociar o futuro do país.
E fazê-lo dentro de certos critérios de bom senso histórico.
É preciso negociar com o país que ainda quer conversar sobre soluções
coletivas para os desafios nacionais.
Com o país que ainda se dispõe a erguer as linhas de passagem racionais
e necessárias para a reordenação do seu crescimento e a capacitação da
democracia, a quem caberá, afinal, ordenar e escrutinar a transição de ciclo
econômico em marcha, determinada substancialmente pela desordem neoliberal
reinante no mundo.
O governo teve entre sexta-feira e domingo um painel vivo do conflito
latejante no tabuleiro.
Um conflito que ganha nitidez vertiginosa entre os que ainda querem e
os que não parecem ver mais sentido em uma conversa democrática, liderada pela
Presidenta reeleita com 54 milhões de votos.
Duas massivas manifestações tiveram lugar no mesmo palco simbólico da
luta pelo poder no Brasil.
A plutocrática Avenida Paulista, em São Paulo, tem menos de três
quilômetros.
Mas condensa o poder dos bancos e das entidades empresariais,
projetando-se, ademais, como um território cultural simbólico da elite
derrotada em outubro de 2014.
Na sexta-feira marcharam os rostos do Brasil que vive nas periferias e
ocupa os degraus de baixo da pirâmide de renda.
Foram tratados e olhados como marcianos pela mídia e por aqueles que
veem em cada passo da iniciativa popular no país – do Bolsa Família, ao Mais
Médicos, passando por uma passeata ou greve - as dores do parto de uma
nova Cuba irrompendo do asfalto de sua pista de bike.
A crescente intolerância com essa dimensão nova da política brasileira
manifesta-se no esforço de manter invisível, ilegítimo e subestimado o peso
desse protagonista numericamente majoritário da sociedade.
A dificuldade cognitiva em enxergá-lo exceto nas funções subalternas é
tão arraigada e difundida que a cada derrota eleitoral dos candidatos da elite
o país vive um terceiro turno virulento dos inconformados.
Não por acaso, a presença desse Brasil invisível na Paulista na sexta,
13, foi reduzida à quarta parte da sua presença real pela Política Militar do
governo tucano paulista e pela Globo.
‘Gente paga’, acusou o inconformismo de muitos daqueles que no domingo,
tingiram a mesma avenida com uma massa colossal de rosto e demanda distintos.
A mesma dobradinha policial midiática que reduziu a um quarto os 41 mil
manifestantes da sexta, segundo o Datafolha, multiplicou por cinco os 210 mil
presentes ali no domingo, estimados pelo mesmo instituto de pendores sabidos.
Não se trata apenas de uma casquinha estatística.
Trata-se de criar comoção.
Aquela reação que desautoriza e abastarda a razão, a reflexão e a
política e, portanto, qualquer outra opinião em contrário que desafie a
‘unanimidade esmagadora’ da sociedade – conceito que em si choca o ovo da
serpente.
Foi o que fez a emissão conservadora durante todo o domingo em flashes
desde cedo que rastreavam o país em busca de acepipes para motivar o
deslocamento da classe média paulista à praça da apoteose.
O 'vem para a rua' conservador teve a partir da tarde o impulso
fundamental do bate-bola entre as redes de televisão e a Polícia Militar do
Estado de São Paulo.
Em menos de duas horas, no afã de lotar o palco, a PM de Alckmin e a
Globo multiplicaram por quatro o seu próprio exagero: de anunciados 240 mil
pessoas na Paulista, por volta das 15h, mais que dobraram o contingente meia
hora depois, para 580 mil e, na sequência, em escalada fulminante para dobrar
de joelhos qualquer relutância, com perceptível sofreguidão nas vozes de um
entusiasmo explicito, saltaram para a marca almejada: ‘mais de um milhão na
Paulista nesse momento’.
Só então sossegaram, trocando passes para consolidar o ‘consenso’ em
repetições autocomemorativas.
Orson Wells fez algo parecido em 1938, quando os recursos disponíveis
eram substancialmente inferiores aos atuais.
Em 30 de outubro a rede de rádio CBS (Columbia Broadcasting System)
interrompeu a grade musical repentinamente para noticiar uma invasão de
marcianos.
A ‘notícia’ transmitida com requintes de realismo assustador era a
primeira frase de um radio-teatro de ficção científica ‘A Guerra dos Mundos’.
A CBS manteria o assunto no ar durante 60 minutos como se fosse
verdade.
A narrativa tensa entrelaçada de flashes em espiral apavorante
informava a chegada de centenas de marcianos a bordo de naves extraterrestres à
cidade de Grover's Mill, em Nova Jersey.
A coisa se tornou ‘viral’, como se diz hoje se consolidando como um
marco no exercício de manipulação da opinião pública pela mídia – razão pela
qual seu poder precisa ser regularizado com o antígeno da pluralidade, que os
barões do oligopólio local chamam ironicamente de ‘bolivarianismo’.
A peça radiofônica de 1938, que gerou comoção e fuga em massa para
locais não ‘atacados’, induzidos pela CBS, ficou conhecida como a ‘radiofonia
do pânico’ ou a ‘emissão do pânico".
O que esse episódio evidenciou com notável realismo é que a emissão do
pânico não torna uma sociedade vulnerável apenas a marcianos.
O peso político dos consensos manipulados pode ter efeitos desastrosos
na trajetória de uma Nação.
A história do Brasil mostra isso.
O acervo do Ibope guardado no Arquivo Edgard Leuenroth, da Unicamp,
reúne pesquisas de opinião pública feitas às vésperas do golpe de 1964.
Os dados cuidadosamente ocultados naqueles dias assumem incontornável
atualidade cotejados com a ação do aparato midiático nas horas que correm.
Enquetes levadas às ruas entre os dias 20 e 30 de março de 1964, quando
a democracia já era tangida ao matadouro pelos que bradavam em sua defesa e
contra a corrupção, mostram que:
a) 69% dos entrevistados avaliavam o governo Jango como ótimo (15%),
bom (30%) e regular (24%); b) apenas 15% o consideravam ruim ou péssimo,
fazendo eco do que afirmavam os jornais; c) 49,8% cogitavam votar em Jango,
caso ele se candidatasse à reeleição em 1965; d) 41,8% rejeitavam essa opção;
d) 59% apoiavam as medidas anunciadas pelo Presidente na famosa sexta-feira, 13
de março (em comício que reuniu 150 mil
pessoas na Central do Brasil Jango assinaria decretos que expropriavam as
terras às margens das rodovias para fins de reforma agrária, nacionalizara refinarias de petróleo e cogitara plebiscitos
para autorizar o voto dos analfabetos, ademais de promover uma reforma política
– ele que, como Dilma, era refém de um Congresso conservador).
As pesquisas sigilosas do Ibope
formam o contrapelo estatístico de um jornalismo que ocultou elementos da
equação política, convocou, exortou, manipulou, orientou e criou a comoção
necessária à legitimação da derrubada violenta do Presidente da República, em
31 de março de 1964.
Em editorial escrito com a tintura do cinismo, um dos centuriões
daquelas jornadas, o diário O Globo, fez recentemente a autocrítica esperta de
sua participação na ficção política em que os marcianos eram os comunistas
cubanos.
O Globo lamenta agora o apoio explícito ao golpe de Estado, mas
justifica a violência institucional: era inevitável, afirma, diante do quadro
caótico e extremado vivido então.
O editorial da família Marinho omite a sua decisiva participação na
semeadura do pânico caótico e extremado vivido então.
A comoção inoculada no
imaginário brasileiro nesse momento - leiam as manchetes de
qualquer jornal e listem a coluna das perdas e danos - é anterior ao consenso
estatístico criada pela invasão de ‘mais de um milhão’ na Paulista - troco
arredondado para ‘Milhões contra Dilma e a corrupção’, no site do Globo nesta
2ª feira.
Dilma e o PT não tiveram o apoio da classe média da Paulista nas urnas
de outubro.
Não há razão para acreditar que o teriam agora em um quadro em que, sem
a neutralidade do horário eleitoral para argumentar, o governo se resigna a
entrevistas de ministros convocadas na verdade pela mídia para repercutir suas
manchetes do dia anterior.
O agravamento da crise, com a escalada do dólar que atingiu o nervo não
negligenciável de um segmento cuja pátria é o turismo internacional, ademais de
elevar o custo de vida e o risco do desemprego, tudo isso foi habilmente
martelado pela mídia para desaguar na catarse anticorrupção que energizou o
milhão de domingo e os milhões da segunda-feira ‘contra Dilma’.
Em time que está ganhando em saltos de mil para milhão e de milhão para
milhões em um átimo de tempo, não há razões para se acreditar em mudança.
Quem precisa mudar é o governo.
Sua margem de manobra se estreita, ou melhor, ganha a nitidez prática
que o bom senso político já advertia antes das eleições.
A nitidez mostra um governo sem canal de comunicação com a sociedade
sendo encostada na parede por uma parte dela, para ‘atender’ a uma demanda de
natureza difusa, irracional e de ultimato.
A agenda da comoção cobra de Brasília uma plataforma que não reserva
outro espaço ao exercício da política que não a derrubada do governo.
Se não, vejamos.
A reforma política proposta para atacar a corrupção pela raiz, com o
fim do financiamento privado de campanha, é tratada como ‘embromação’, no douto
dizer de um ‘analista’ isento do jornal Valor nesta 2ª feira.
A austeridade ortodoxa – exigida pelo conservadorismo — e concedida
pelo governo é diuturnamente classificada como ‘insuficiente’, ao mesmo tempo
em que se difunde o terror diante das consequências negativas que as medidas já
tomadas acarretam à sociedade (desemprego com inflação em alta, dólar mais caro
e juros siderais).
Mas não, ‘Dilma não assumiu o ajuste’ e, ao mesmo tempo, ‘ as medidas
do ajuste já sinalizam a recessão’, regurgitam colunistas do glorioso
jornalismo de economia, auto mandatados para o exercício militante da
incoerência.
As tímidas tentativas do Planalto de fazer o que o PT deveria ter providenciado imediatamente após as eleições
ou, melhor ainda, durante a campanha, ou seja, uma repactuação do país para a
transição rumo a um novo ciclo de desenvolvimento são respondidas de forma
peremptória pelo PSDB.
‘Não é hora de afastar Dilma nem de pactuar’, sentenciou o pavão
Fernando Henrique Cardoso, assessorado pelo galo de briga das caçarolas de
cobre, Aloysio Nunes Ferreira, ‘Eu quero sangrar a Dilma (para evitar Lula em
2018)’.
O que sobra, então, para traduzir as ruas em exercício político da
democracia?
O impasse criado por quem insufla um milhão, ou ‘milhões’, mas não
oferece alternativas críveis, exceto o sangramento de sua conveniência, costuma
ser resolvido na história latino-americana da forma que sabemos.
Os selfies multiplicados na Paulista neste domingo no reencontro
idílico entre uma classe média de sabidas tradições e integrantes da tropa de
choque de Alckmin, evidenciam o terreno fértil à prática dessa lavoura
regional.
Voltamos assim ao preâmbulo da nota publicada neste espaço na
sexta-feira, após a manifestação do ‘tostão’, segundo a mídia, no mesmo palco
do ‘milhão’ de domingo.
O que se dizia ali é que, se há aprendizado em política, o governo não
poderia mais ignorar o que ali se
evidenciou.
O que se evidenciou ali é que existe – ainda - uma base social maior
talvez do que o próprio governo supõe,
que transgrediu todas as dificuldades impostas (não só pela mídia, mas
pelo PT, que se omitiu, e por Brasília, que titubeou e ficou distante) para ir
ao templo das elites e ali promover uma passeata dos 50 mil tostões, antes da
blitzkrieg estatística do domingo.
No altar do dinheiro e da elite paulistana, rostos, roupas e vidas de
recorte predominantemente humilde - tudo muito distinto da bem nutrida alegoria
do domingo - deixariam ali um recado que nem o temporal copioso do dia, nem o
aluvião midiático posterior conseguiriam apagar: ‘Temos críticas, temos
restrições, temos exigências e temos propostas. Mas queremos negociar com o
governo democraticamente eleito da Presidenta Dilma’, diziam as faces de
seriedade algo apreensiva debaixo da chuva inclemente.
Ainda há tempo de Brasília ouvir o recado.
O governo democraticamente eleito da Presidenta Dilma necessita, de
forma urgente, negociar a repactuação do país com o futuro.
Até para tornar compreensível e tolerável as restrições do presente,
que são reais.
Precisa ter um interlocutor credenciado para construir essa ponte em
nome da Presidenta, com legitimidade e força política incontestável.
E precisa começar procurando quem quer conversar.
Mas, sobretudo, quem demonstra responsabilidade e discernimento
político para se oferecer como um chão firme alternativo à ‘emissão do caos e
do pânico’.
Esse que, infelizmente, não leva apenas a um domingão de selfies com centuriões
da tropa de choque na Avenida Paulista.
Ou o governo reconhece esse interlocutor e mexe no tabuleiro do xadrez
com as peças que se dispõem a permanecer no jogo democrático, e de lance em
lance altera a rigidez das demais, ou o governo será tomado ele próprio por uma
rigidez cadavérica.
Aquela a partir da qual o xeque-mate é uma questão de tempo.
www.cartamaior.com.br
16/03/2015
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