22/02/2015 - Copyleft
Joaquim Palhares
ESPECIAL: O verdadeiro ralo da nação
O Brasil precisa dispor de um controle de capitais que permita dar maior poder de induzir e tributar a riqueza, sem gerar maior fuga e mais sonegação.
Estudos da The Price of Offshore
Revisited, coordenados pelo ex-economista-chefe da McKinsey, James
Henry, revelam que os brasileiros muito ricos possuíam, até 2010, cerca
de US$ 520 bilhões em paraísos fiscais.
É a quarta maior fortuna do mundo depositada em bunkers do dinheiro frio, francamente adiante do que seria proporcional à oitava economia do planeta.
Essa é mais uma evidência do sofisticado estado das artes das elites -- que se envergonham do governo corrupto -- no quesito sonegação, caixa 2 e demais malabarismos financeiros, favorecidos pela supremacia da desregulação bancária em quase todo o planeta.
Estamos falando de um desvio de recursos da ordem de R$ 1,5 trilhão de reais.
Esse imenso ralo da nação, diante do qual tudo o mais empalidece (inclusive o inaceitável desvio na Petrobrás, da ordem de R$ 4,5 bilhões), tampouco é negligenciável do ponto de vista das grandezas da luta pelo desenvolvimento.
O montante equivale, por exemplo, a tudo o que o BNDES prevê de investimento pesado no Brasil nos setores industrial e de infraestrutura, no quatriênio de 2015 a 2018.
Segundo os cálculos do banco, o efeito multiplicador dessas inversões rebaterá em encomendas da ordem de R$ 830 bilhões ao parque fabril brasileiro: 14% superiores às do quatriênio anterior.
Portanto, se a fortuna mantida pelos endinheirados nos bunkers internacionais retornasse na forma de investimento produtivo, significaria dobrar – repita-se, dobrar -- o impulso de expansão industrial, logística e encomendas na dinâmica econômica brasileira até o final da década.
Essa é uma pequena amostra dos impactos decorrentes da forma como a plutocracia local resolveu inserir-se nas cadeias globais da riqueza.
O fato de sete a oito mil contas de brasileiros reunirem outros US$ 7 bilhões clandestinamente remetidos à subsidiária suíça do HSBC, ao lado de depósitos de procedência igualmente sugestiva feitos por traficantes e terroristas internacionais, apenas confirma o principal.
O principal é que não faltam recursos para o Brasil deflagrar um novo ciclo de desenvolvimento.
Tampouco para dispor de contas fiscais razoavelmente equilibradas, sem recorrer ao arrocho sobre direitos dos trabalhadores, ou dos investimentos do Estado.
A aplicação de uma alíquota camarada de 20% sobre esses US$ 520 bi, por exemplo, pagaria um ano do escandaloso juro incidente sobre a dívida pública brasileira – cujo crescimento decorre em grande parte da incapacidade estatal de taxar as fortunas e heranças, entre outros, dos detentores desse pecúlio clandestino.
A tentativa de se construir por aqui um Estado social que assegure aos sem riqueza os mesmos direitos daqueles que enxergam no espaço público a mera extensão do interesse privado, esbarra assim em uma sabotagem fiscal clandestina que age em sintonia com a luta ideológica explícita em defesa do Estado mínimo, travada pelo martelete da emissão conservadora.
A indigência do espírito público dos endinheirados brasileiros não é nova.
Mas é forçoso reconhecer o seu senso de oportunismo no desfrute das novas possibilidades abertas pela globalização dos circuitos financeiros.
Em um texto de 1986, ‘Sobre o óbvio – Ensaios Insólitos’, o antropólogo Darcy Ribeiro, criador da Universidade de Brasília, e chefe da Casa Civil de Jango, iluminou os traços dessa rosca descendente, confirmada agora em episódios como o do HSBC, que certamente não constitui exceção no cipoal das conexões bancárias que transformam qualquer capital em capital estrangeiro dentro de seu próprio país.
‘Por muito tempo’, dizia Darcy Ribeiro, ‘se pensou que éramos e somos um país pobre, no passado e agora. Pois não é verdade. Esta é uma falsa obviedade. Éramos e somos riquíssimos (...) para uso e gozo de nossa sábia classe dominante. A verdade verdadeira é que, aqui no Brasil, se inventou um modelo de economia altamente próspera, mas de prosperidade pura. Quer dizer, livre de quaisquer comprometimentos sentimentais. A verdade, repito, é que nós, brasileiros, inventamos e fundamos um sistema social perfeito para os que estão do lado de cima da vida’
Darcy está falando de uma elite que prefere blindar automóveis a investir em infraestrutura, razão pela qual o país que tem a quarta maior fortuna do mundo em paraísos fiscais, ostenta também a maior frota de carros blindados do planeta.
Faz todo sentido. Ainda que seja trágico.
O país redesenhado nos últimos 12 anos por políticas progressistas na esfera da renda e do combate à pobreza, não cabe mais na infraestrutura concebida por essa lógica, focada em apenas 30% de sua gente.
A desproporção teria que ser ajustada em algum momento.
Chegou a hora.
Seus ponteiros desenham duas opções na mesa da democracia.
Faze-lo taxando a riqueza de modo a redistribui-la na forma de investimentos, educação, serviços e empregos de qualidade na indústria e em frentes de maior incremento tecnológico, caso dos encadeamentos do pré-sal na área de energia e petroquímica.
Ou faze-lo regressivamente, revogando avanços, arrochando o investimento público e, sobretudo, desmanchando a base de quase pleno emprego erguida nos últimos anos –conquista que mais incomoda os endinheirados por conta da correlação de forças que espraia no mercado de trabalho, nas mesas de negociações e no calendário eleitoral.
Em toda a América Latina, elites lambem o beiço. Essa escolha coincide com a reversão no ciclo mundial de liquidez, associado à queda nas cotações das commodities. O conjunto, de fato, restringe a margem de manobra progressista na definição do passo seguinte da luta pelo desenvolvimento.
O Brasil, porém, é uma das raras economias que, mesmo em condições adversas, dispõe de requisitos objetivos para um salto industrializante, capaz de irradiar a produtividade necessária a novos avanços em direção à cidadania plena de sua gente.
A saber:
1. as empresas instaladas no país dispõem de uma massa de capital monetário suficiente para um novo ciclo de expansão, hoje estocado na roleta rentista (que inclui dívida pública e o repouso em paraísos fiscais) ;
2. O mercado de massa brasileiro forma hoje, sozinho, o 16º maior país do mundo em movimento econômico; poderia figurar no G-20;
3. a economia dispõe de sólidas bases de recursos naturais, incluindo-se o impulso industrializante inerente à exploração das maiores reservas de petróleo descobertas no planeta neste século;
4. O conjunto de investimentos já disparados na área de infraestrutura garante por si só um impulso combinado de crescimento e ganhos de produtividade.
Falta a amarração política desses ingredientes, processo que guarda semelhança com a disputa de um gigantesco jogo de truco estratégico.
A iniciativa privada mantém o pé no freio e a emissão conservadora exaspera a guerra de expectativas para desencorajar o capital privado a apostar no país.
Melhor deixar o dinheiro no HSBC da Suíça, ou em renda fixa aqui mesmo. Derrotado o “lulopetismo”, o lucro será maior, sugere-se.
Nesse lusco fusco prospera a sonegação e a evasão de riqueza em detrimento do salto possível na esfera produtiva e logística.
Nem tudo é luta política. Há, de fato, desequilíbrios macroeconômicos reais a vencer para destravar os braços cruzados do capital diante das urgências do país.
O câmbio valorizado é um deles.
Ademais de incentivar importações baratas, ele atrofia a exportação, subtrai empregos e demanda à indústria local e leva a uma integração desintegradora diante das cadeias globais de suprimento e tecnologia.
O necessário ajuste cambial, porém -- em marcha -- pressiona a inflação, que aciona juros mais altos para ser contida, que por sua vez fazem o fastígio da riqueza financeira, que se locupleta sem investir na produção, o que rebate em menor receita fiscal, que agrava o endividamento público, leva à mingua o Estado, inibe seu poder indutor na esfera privada, acanha a expansão da logística...
Quem vê no capitalismo apenas um sistema econômico, e não a dominação política intrínseca a sua encarnação social, derrapa no entendimento do que se passa no país nesse momento e do que é essencial para avançar.
O fato é que não há solução exclusivamente técnica para os desequilíbrios inerentes à luta pelo desenvolvimento.
Por isso eles têm que ser pactuado em compromissos, metas e salvaguardas de longo prazo. E só quem pode fazê-lo no Brasil hoje é a democracia participativa.
Nesse emaranhado de constrangimentos políticos e macroeconômicos, a greve do investimento reflete a conveniência de um capital que aderiu à ciranda rentista e dela não abdicará tão cedo, nem tão facilmente.
Ao contrário do que aconteceu no caso das cadeias industriais, nisso – repita-se -- o Brasil atingiu o estado das artes.
A coagulação rentista de uma elite perfeitamente integrada ao circuito da alta finança global, feita de contas no HSBC e em paraísos fiscais, amesquinhou o alcance das escolhas da democracia, recusando-lhe instrumentos para dar à riqueza sua destinação social.
Se nem a lista dos detentores das contas no HSBC é publicada no Brasil – embora conste que a Folha/UOL a tem, assim como o ministro Joaquim Levy deveria requisita-la através do COAF e divulga-la — como induzir esses recursos à mutação produtiva?
Essa dissociação entre a elite e a sorte do país estabelece uma corrosão profunda nos laços da sociedade e abastarda a credibilidade na política e na democracia.
Não é uma fatalidade. É uma decorrência da luta política global que consolidou uma oligarquia transnacional cuja pátria é o circuito das finanças desreguladas.
Seus efeitos econômicos, de qualquer forma, são devastadores.
A maximização do retorno financeiro contaminou todas as dimensões do cálculo econômico submetendo as demais instâncias do mercado aos mesmos padrões irreproduzíveis de ganho da ganância rentista.
Desvela-se aqui uma dimensão pouco discutida da desindustrialização e da baixa produtividade brasileira, decorrente da inapetência empreendedora das elites apascentadas em piquetes de juro alto.
Combater esse descompromisso com o investimento produtivo implica uma mudança estrutural no tabuleiro do jogo do desenvolvimento.
Implica dispor de um controle de capitais que permita dar maior poder de induzir e tributar a riqueza, sem gerar maior fuga e mais sonegação.
A democracia brasileira precisa avançar para que isso não seja apenas uma miragem de futuro.
Precisa se colocar como uma ferramenta a serviço do desenvolvimento.
Depende desse passo o escrutino plebiscitário de escolhas que vão catalisar a força e o consentimento necessários a uma nova hegemonia mudancista no país (leia o editorial ‘A mão da rua’; nesta pág).
Essa é a questão crucial que lateja nas entranhas de um Brasil espremido entre dois caminhos: avançar na realização de suas potencialidades estratégicas; ou regredir à condição de um duto de riquezas expatriadas, a contrapelo das urgências de seu povo.
São escolhas subjacentes às engrenagens da sonegação, muitas vezes confundidas com um mero desvio jurídico.
O que elas revelam, na verdade, é um desvio de finalidade da riqueza social, cuja regeneração efetiva passa pela repactuação democrática do futuro brasileiro.
Essa é a natureza do debate que propomos com os textos que compõem o Especial da Carta Maior.
Boa leitura.
Joaquim Palhares
Diretor de Carta Maior
É a quarta maior fortuna do mundo depositada em bunkers do dinheiro frio, francamente adiante do que seria proporcional à oitava economia do planeta.
Essa é mais uma evidência do sofisticado estado das artes das elites -- que se envergonham do governo corrupto -- no quesito sonegação, caixa 2 e demais malabarismos financeiros, favorecidos pela supremacia da desregulação bancária em quase todo o planeta.
Estamos falando de um desvio de recursos da ordem de R$ 1,5 trilhão de reais.
Esse imenso ralo da nação, diante do qual tudo o mais empalidece (inclusive o inaceitável desvio na Petrobrás, da ordem de R$ 4,5 bilhões), tampouco é negligenciável do ponto de vista das grandezas da luta pelo desenvolvimento.
O montante equivale, por exemplo, a tudo o que o BNDES prevê de investimento pesado no Brasil nos setores industrial e de infraestrutura, no quatriênio de 2015 a 2018.
Segundo os cálculos do banco, o efeito multiplicador dessas inversões rebaterá em encomendas da ordem de R$ 830 bilhões ao parque fabril brasileiro: 14% superiores às do quatriênio anterior.
Portanto, se a fortuna mantida pelos endinheirados nos bunkers internacionais retornasse na forma de investimento produtivo, significaria dobrar – repita-se, dobrar -- o impulso de expansão industrial, logística e encomendas na dinâmica econômica brasileira até o final da década.
Essa é uma pequena amostra dos impactos decorrentes da forma como a plutocracia local resolveu inserir-se nas cadeias globais da riqueza.
O fato de sete a oito mil contas de brasileiros reunirem outros US$ 7 bilhões clandestinamente remetidos à subsidiária suíça do HSBC, ao lado de depósitos de procedência igualmente sugestiva feitos por traficantes e terroristas internacionais, apenas confirma o principal.
O principal é que não faltam recursos para o Brasil deflagrar um novo ciclo de desenvolvimento.
Tampouco para dispor de contas fiscais razoavelmente equilibradas, sem recorrer ao arrocho sobre direitos dos trabalhadores, ou dos investimentos do Estado.
A aplicação de uma alíquota camarada de 20% sobre esses US$ 520 bi, por exemplo, pagaria um ano do escandaloso juro incidente sobre a dívida pública brasileira – cujo crescimento decorre em grande parte da incapacidade estatal de taxar as fortunas e heranças, entre outros, dos detentores desse pecúlio clandestino.
A tentativa de se construir por aqui um Estado social que assegure aos sem riqueza os mesmos direitos daqueles que enxergam no espaço público a mera extensão do interesse privado, esbarra assim em uma sabotagem fiscal clandestina que age em sintonia com a luta ideológica explícita em defesa do Estado mínimo, travada pelo martelete da emissão conservadora.
A indigência do espírito público dos endinheirados brasileiros não é nova.
Mas é forçoso reconhecer o seu senso de oportunismo no desfrute das novas possibilidades abertas pela globalização dos circuitos financeiros.
Em um texto de 1986, ‘Sobre o óbvio – Ensaios Insólitos’, o antropólogo Darcy Ribeiro, criador da Universidade de Brasília, e chefe da Casa Civil de Jango, iluminou os traços dessa rosca descendente, confirmada agora em episódios como o do HSBC, que certamente não constitui exceção no cipoal das conexões bancárias que transformam qualquer capital em capital estrangeiro dentro de seu próprio país.
‘Por muito tempo’, dizia Darcy Ribeiro, ‘se pensou que éramos e somos um país pobre, no passado e agora. Pois não é verdade. Esta é uma falsa obviedade. Éramos e somos riquíssimos (...) para uso e gozo de nossa sábia classe dominante. A verdade verdadeira é que, aqui no Brasil, se inventou um modelo de economia altamente próspera, mas de prosperidade pura. Quer dizer, livre de quaisquer comprometimentos sentimentais. A verdade, repito, é que nós, brasileiros, inventamos e fundamos um sistema social perfeito para os que estão do lado de cima da vida’
Darcy está falando de uma elite que prefere blindar automóveis a investir em infraestrutura, razão pela qual o país que tem a quarta maior fortuna do mundo em paraísos fiscais, ostenta também a maior frota de carros blindados do planeta.
Faz todo sentido. Ainda que seja trágico.
O país redesenhado nos últimos 12 anos por políticas progressistas na esfera da renda e do combate à pobreza, não cabe mais na infraestrutura concebida por essa lógica, focada em apenas 30% de sua gente.
A desproporção teria que ser ajustada em algum momento.
Chegou a hora.
Seus ponteiros desenham duas opções na mesa da democracia.
Faze-lo taxando a riqueza de modo a redistribui-la na forma de investimentos, educação, serviços e empregos de qualidade na indústria e em frentes de maior incremento tecnológico, caso dos encadeamentos do pré-sal na área de energia e petroquímica.
Ou faze-lo regressivamente, revogando avanços, arrochando o investimento público e, sobretudo, desmanchando a base de quase pleno emprego erguida nos últimos anos –conquista que mais incomoda os endinheirados por conta da correlação de forças que espraia no mercado de trabalho, nas mesas de negociações e no calendário eleitoral.
Em toda a América Latina, elites lambem o beiço. Essa escolha coincide com a reversão no ciclo mundial de liquidez, associado à queda nas cotações das commodities. O conjunto, de fato, restringe a margem de manobra progressista na definição do passo seguinte da luta pelo desenvolvimento.
O Brasil, porém, é uma das raras economias que, mesmo em condições adversas, dispõe de requisitos objetivos para um salto industrializante, capaz de irradiar a produtividade necessária a novos avanços em direção à cidadania plena de sua gente.
A saber:
1. as empresas instaladas no país dispõem de uma massa de capital monetário suficiente para um novo ciclo de expansão, hoje estocado na roleta rentista (que inclui dívida pública e o repouso em paraísos fiscais) ;
2. O mercado de massa brasileiro forma hoje, sozinho, o 16º maior país do mundo em movimento econômico; poderia figurar no G-20;
3. a economia dispõe de sólidas bases de recursos naturais, incluindo-se o impulso industrializante inerente à exploração das maiores reservas de petróleo descobertas no planeta neste século;
4. O conjunto de investimentos já disparados na área de infraestrutura garante por si só um impulso combinado de crescimento e ganhos de produtividade.
Falta a amarração política desses ingredientes, processo que guarda semelhança com a disputa de um gigantesco jogo de truco estratégico.
A iniciativa privada mantém o pé no freio e a emissão conservadora exaspera a guerra de expectativas para desencorajar o capital privado a apostar no país.
Melhor deixar o dinheiro no HSBC da Suíça, ou em renda fixa aqui mesmo. Derrotado o “lulopetismo”, o lucro será maior, sugere-se.
Nesse lusco fusco prospera a sonegação e a evasão de riqueza em detrimento do salto possível na esfera produtiva e logística.
Nem tudo é luta política. Há, de fato, desequilíbrios macroeconômicos reais a vencer para destravar os braços cruzados do capital diante das urgências do país.
O câmbio valorizado é um deles.
Ademais de incentivar importações baratas, ele atrofia a exportação, subtrai empregos e demanda à indústria local e leva a uma integração desintegradora diante das cadeias globais de suprimento e tecnologia.
O necessário ajuste cambial, porém -- em marcha -- pressiona a inflação, que aciona juros mais altos para ser contida, que por sua vez fazem o fastígio da riqueza financeira, que se locupleta sem investir na produção, o que rebate em menor receita fiscal, que agrava o endividamento público, leva à mingua o Estado, inibe seu poder indutor na esfera privada, acanha a expansão da logística...
Quem vê no capitalismo apenas um sistema econômico, e não a dominação política intrínseca a sua encarnação social, derrapa no entendimento do que se passa no país nesse momento e do que é essencial para avançar.
O fato é que não há solução exclusivamente técnica para os desequilíbrios inerentes à luta pelo desenvolvimento.
Por isso eles têm que ser pactuado em compromissos, metas e salvaguardas de longo prazo. E só quem pode fazê-lo no Brasil hoje é a democracia participativa.
Nesse emaranhado de constrangimentos políticos e macroeconômicos, a greve do investimento reflete a conveniência de um capital que aderiu à ciranda rentista e dela não abdicará tão cedo, nem tão facilmente.
Ao contrário do que aconteceu no caso das cadeias industriais, nisso – repita-se -- o Brasil atingiu o estado das artes.
A coagulação rentista de uma elite perfeitamente integrada ao circuito da alta finança global, feita de contas no HSBC e em paraísos fiscais, amesquinhou o alcance das escolhas da democracia, recusando-lhe instrumentos para dar à riqueza sua destinação social.
Se nem a lista dos detentores das contas no HSBC é publicada no Brasil – embora conste que a Folha/UOL a tem, assim como o ministro Joaquim Levy deveria requisita-la através do COAF e divulga-la — como induzir esses recursos à mutação produtiva?
Essa dissociação entre a elite e a sorte do país estabelece uma corrosão profunda nos laços da sociedade e abastarda a credibilidade na política e na democracia.
Não é uma fatalidade. É uma decorrência da luta política global que consolidou uma oligarquia transnacional cuja pátria é o circuito das finanças desreguladas.
Seus efeitos econômicos, de qualquer forma, são devastadores.
A maximização do retorno financeiro contaminou todas as dimensões do cálculo econômico submetendo as demais instâncias do mercado aos mesmos padrões irreproduzíveis de ganho da ganância rentista.
Desvela-se aqui uma dimensão pouco discutida da desindustrialização e da baixa produtividade brasileira, decorrente da inapetência empreendedora das elites apascentadas em piquetes de juro alto.
Combater esse descompromisso com o investimento produtivo implica uma mudança estrutural no tabuleiro do jogo do desenvolvimento.
Implica dispor de um controle de capitais que permita dar maior poder de induzir e tributar a riqueza, sem gerar maior fuga e mais sonegação.
A democracia brasileira precisa avançar para que isso não seja apenas uma miragem de futuro.
Precisa se colocar como uma ferramenta a serviço do desenvolvimento.
Depende desse passo o escrutino plebiscitário de escolhas que vão catalisar a força e o consentimento necessários a uma nova hegemonia mudancista no país (leia o editorial ‘A mão da rua’; nesta pág).
Essa é a questão crucial que lateja nas entranhas de um Brasil espremido entre dois caminhos: avançar na realização de suas potencialidades estratégicas; ou regredir à condição de um duto de riquezas expatriadas, a contrapelo das urgências de seu povo.
São escolhas subjacentes às engrenagens da sonegação, muitas vezes confundidas com um mero desvio jurídico.
O que elas revelam, na verdade, é um desvio de finalidade da riqueza social, cuja regeneração efetiva passa pela repactuação democrática do futuro brasileiro.
Essa é a natureza do debate que propomos com os textos que compõem o Especial da Carta Maior.
Boa leitura.
Joaquim Palhares
Diretor de Carta Maior
Nenhum comentário:
Postar um comentário