A SERPENTE JÁ FUROU A CASCA
Roberto Amaral
O que melhor pode caracterizar o pensamento de direita, senão a cultura do autoritarismo na formação da sociedade brasileira – na vida social, na vida política, na vida econômica, no cotidiano, na vida profissional, na vida doméstica – que se manifesta na grave disjuntiva casa grande x senzala, essa divisão colonial que sobrevive na democracia moderna e na república sereníssima? De um lado o senhor – sujeito de direitos –, de outro, o ‘pau mandado’, objeto de deveres. O que melhor caracteriza a ação de direita – o ovo em que é gerada a serpente do fascismo – senão a violência, que, de início verbal, logo descamba para a ameaça e a violência físicas, quase sempre grupal, pois nos grupos os covardes se tornam valentes?
O autoritarismo traz consigo o germe da intolerância, estampada em slogans como o ‘Ame-o ou deixe-o’ da última ditadura, que, com um ufanismo de fancaria, fincado em um desenvolvimento puramente mercadológico, tentava abafar as dores dos torturados, fazendo com que a maioria se sentisse minoria em sua terra, exilada da política e exilada da pátria que lhe queriam negar, da nacionalidade que lhe queriam roubar. Pode haver violência maior? O autoritário é senhor de sua verdade, uma verdade absoluta que não permite contestação e à qual o outro deve obediência, sob pena de discriminação. É dessa falsa crença, da qual se introjeta para melhor dominar, que o senhor extrai a intolerância, a crença em sua superioridade e a violência com a qual a defenderá, quase sempre explicada como doação divina, mas realmente firmada de fato na propriedade privada, a fonte do fausto e do poder, pincipalmente do poder sobre os outros.
O autoritarismo traz consigo a xenofobia, a aversão ao diferente, o nordestino e o migrante de um modo geral, o pobre, o negro, a prostituta, o homossexual, o desviante enfim, todo aquele que ameace a segurança do pequeno-burguês, frágil como um balão de gás. A classe dominante brasileira – e como ela seus penduricalhos reflexos, como a classe-média alta –, detesta o país e seu povo, com o qual não se identifica, para ela uma ‘gentinha’ feia, magra, mal vestida, mal cheirosa, gente boa tão-só para o serviço doméstico (sem acesso à sala de visitas nem à mesa dos banquetes), os chamados serviços sujos e pesados aos quais o senhor branco, e senhor porque branco, se nega. (Ao aprendiz de sociólogo que desejar conhecer como o complexo Casa Grande-Senzala se reproduz em nossas cidades modernas bastará deter-se em qualquer edifício de apartamentos e comparar o ‘quarto da empregada’ com a suíte do patrão.)
O pobre, aqui, na sua terra, cumpre o papel que na Europa desempenham os turcos e os portugueses e os asiáticos, o emigrante pobre em geral, qual seja, o de executar na terra do outro as tarefas que hoje repugnam ao dono da casa. Esta é a ‘ordem natural das coisas’ do liberalismo, e tentar alterá-la é considerado crime. Se não de lesa-pátria, de lesa-propriedade, ou seja, de lesa-desigualdade, pois na desigualdade, e na sua manutenção, se estrutura o Estado capitalista, fundado, como o regime da Casa Grande e Senzala, na dominação e no mando. O nosso não é diferente de nenhum outro. No altar da classe-média o culto é ao deus consumismo.
Na verdade, a pomposa ‘paz social’ do liberalismo depende de os de cima mandarem, e os de baixo aceitarem como natural esse mando, ou seja, de não o questionarem. O menor estremecimento nessa base abala o vértice onde se agasalha a classe dominante. Qualquer suspeita de desequilíbrio, o movimento mais irrelevante põe de pé a classe dominante e em guarda seus cães de fila, e ela, enfurecida é capaz de tudo. Ou seja, a ‘paz social’ depende de o pobre ‘conhecer o seu lugar’, e nele se conservar. Atiçada, ameaçada, a classe dominante reage com o retrocesso; voltar ao passado é sua resposta aos que reclamam pelo progresso.
Eis a chave da paz social da classe dominante que torce o nariz para a ascensão de classe e se incomoda com o progresso social.
O consumismo é o sonho capitalista que anima o empresário de todo o mundo, mas em nosso país, somente enquanto não proporcionar a democratização do acesso aos bens de consumo. Isso é intolerável, isso incomoda. O que é possível na teoria liberal é inaceitável na prática, na vida real, no cotidiano.
Toda vez que o país se deixa dominar pelo pensamento de direita, a sociedade se vê tomada pelos valores do autoritarismo, que vem das raízes escravocratas da formação de nossas chamadas elites, preguiçosas e incultas e porque incultas profundamente preconceituosas, e profundamente perversas e, como as elites suas antepassadas que procuram emular, de cujo fausto têm saudade, desvinculadas da terra e de sua gente, cujo futuro não partilha com o seu. O autoritarismo brasileiro é reacionário por essência; repugna-lhe o avanço social.
Nesses momentos, o observador menos atento de nossa crônica se descobre vivendo em país violento, quando a história que lhe ensinaram na escola diz de um povo cordial, amoroso, mais sensual que cartesiano. A violência vem da reação dos que tendo muito, quase tudo, não compreendem que os outros possam ter alguma coisa.
A emergência do pensamento de direita – que levou tantas e belas civilizações à guerra e à autodestruição – desperta na classe dominante brasileira suas raízes atávicas herdadas de uma colonização levada a cabo a ferro e fogo contra as nações indígenas, de início, e sempre contra o elemento negro escravizado, predatória contra a natureza e o meio ambiente, contra a civilização, ainda que tudo, inclusive o genocídio de nossos ancestrais, se fizesse em nome de Deus, e sob o comando da cruz, confiado em cuja proteção, aliás, se reúne, o Congresso Nacional, para, em nome da minoria proprietária, subsumir os interesses da maioria, dos pobres, das mulheres e dos negros, dos trabalhadores enfim.
Uma Câmara conservadora, comandada por um presidente prepotente, cujo mandato, desde o primeiro dia, é posto a serviço do atraso, do primitivo, da mediocridade do evangelismo mais rastapé, está impondo à sociedade a ideologia do atraso: estímulo à homofobia, à comercialização do processo eleitoral mediante o financiamento privado dos partidos, redução da maioridade penal, rejeição à regulamentação do aborto, redução dos direitos trabalhistas, restrições aos direitos civis, fim da demarcação das terras indígenas.
Agora se discute, simultaneamente, a redução da maioridade penal e a revogação do Estatuto do Desarmamento. A respeito deste, entre outras sandices, a ´bancada da bala’, explorando o medo e o desconhecimento do cidadão mediano, propõe que o número de armas de fogo que cada brasileiro possa portar salte de seis para nove! Ou seja, em vez de os governos continuarem obrigados a executar políticas de segurança pública eficientes, a solução para o alarmante índice de homicídios seria cada cidadão tornar-se uma mini milícia-paiol ambulante, potencialmente assassina e suicida. Faz sentido, desde que deixemos de lado a capacidade de raciocínio conquistada pela espécie humana ao longo do processo evolutivo.
Aliás, este é outro aspecto, o baixo nível cognitivo do baixo clero. O atual deputado médio não é apenas conservador e mesmo reacionário: ele é um néscio, incapaz de superar suas balbuciantes estultícias para debater com um seu semelhante – embora possa demonstrar destreza no manejo das artimanhas habituais da pequena política.
Na última quarta-feira 10, os deputados da chamada bancada evangélica (também da bala e do boi), interromperam uma votação da Câmara dos Deputados, ocuparam a Mesa, ocuparam as tribunas e os microfones e de mãos dadas – sem em nenhum momento serem repreendidos pelo presidente da sessão, convenientemente presidida pelo colega Eduardo Cunha –, e, em um plenário constitucionalmente leigo, rezaram o Pai-Nosso e gritaram ‘Viva Jesus, Viva Jesus Cristo’.
Enquanto isso, numa sala de comissões, recinto fechado, esbirros da polícia legislativa, convenientemente reforçada pela atual Mesa, atingiam jovens manifestantes com jatos de spray de gás de pimenta. Os estudantes pacificamente protestavam contra o projeto de redução da maioridade penal, bandeira de Eduardo Cunha e do grupo que comanda a Casa, composta fundamentalmente pelos ditos evangélicos, a bancada da bala e a bancada do agronegócio.
Nas ruas, os representados por Eduardo Cunha e Renan Calheiros e outros quadros menores saúdam a violência policial e reclamam – numa agressão à memória nacional – a volta da ditadura. Nos restaurantes apupam homens de Estado dignos e dedicados ao país como os ex-ministros Alexandre Padilha e Guido Mantega, este já anteriormente agredido quando acompanhava sua esposa em exames médicos em famoso hospital paulistano.
Ao desembarcar de um voo a Brasília, um leitor de Carta Capital (por acaso um ‘ex-militante do movimento estudantil sequestrado e mantido preso por três dias em 1980 na Argentina’, diz-nos a Carta da semana passada) foi hostilizado por carregar consigo um exemplar da revista. Não me recordo de algum companheiro da esquerda, ainda nos tempos da ditadura, haver sido insultado por ter às mãos o Pasquim ou o Opinião, que carregávamos com orgulho e ostensivamente. Conta-nos Elbio de Freitas Flores: “Estava com a revista na mão, me preparando para sair pelo corredor [do avião], quando ouvi: ‘Essa é uma revista idiota, quem lê é idiota’.
Era um homem de cabelos brancos de mais ou menos 50 anos, cuja valentia era estimulada pelo coro de um grupo formado na maioria por jovens: “Dilmão, eu quero,/Dilmão, eu quero/Dilmão eu quero mamar/dá uma teta/ dá uma teta/ dá uma teta para o petista roubar”. Segundo a revista, a súcia era formada por integrantes de um grupo autointitulado de ‘La Banda Loka Liberal’, que chegava a Brasília para participar de uma manifestação anti-Dilma, afinal esvaziada.
Os liberais e os democratas que estiverem tranquilos e se sentindo bem resguardados, porque até aqui a onda reacionária só ameaça o andar de baixo; os liberais e os democratas e os esquerdistas que estiverem tranquilos pensando que o ódio só persegue a presidente Dilma e o PT, que ponham as barbas de molho. Lembro-lhes um esquecido poema de Bertolt Brecht (como todo poeta, ele via o que os outros não viam ou fingiam não ver) sobre o judeu ingênuo que jamais suspeitou que seria a próxima vítima, pois antes levaram os negros, e ele não era negro; levaram os operários, mas ele não era operário; levaram os desempregados mas ele não era desempregado… Por fim foram buscá-lo e o encontraram só. Assim começou o que terminaria como holocausto de um povo.
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