14/06/2015 - Copyleft
Paulo Rubem Santiago*
Nação ameaçada
A nação está ameaçada. Nada, porém, que não possa ser enfrentado com coragem, vontade política, clareza, opção e organização da sociedade
Não, não é o título de um filme
de ficção saído das lentes de Steven Spielberg ou David Cronenberg.
Também não se trata de qualquer sanção das federações de futebol às
torcidas, as conhecidas “nações”, indisciplinadas, que transformam a
paixão pelo futebol em praça de guerra após cada derrota. Estou falando
do projeto de nação do Brasil, República Federativa que completará 126
anos no próximo dia 15 de novembro.
Embora haja indicadores que revelam alterações significativas nas condições de vida do povo brasileiro nos últimos anos, embora tenhamos acabado de assistir ao anúncio de um vigoroso programa de transferências das operações de serviços na área de infraestrutura para possíveis grupos privados nacionais e estrangeiros, ainda assim, é na radiografia das relações entre o país, sua economia, instituições do setor e a esfera internacional que podemos afirmar se o projeto de nação caminha para consolidar sua soberania e seu desenvolvimento com igualdade ou se estamos retrocedendo ao tempo em que nossa inserção no mundo era comandada por dinamismos externos e pela exportação de bens de baixo valor agregado, conhecimento e inovação.
É disso que pretendo falar com o título desse artigo. Atualmente, não é certamente difícil atrairmos capitais que circulam mundo afora em busca de melhores taxas de retorno sobre seus ativos, aplicados em especial na administração de aeroportos, rodovias, ferrovias, universidades privadas ou portos. Da mesma forma é cada dia mais fácil entrarmos na rota desses investidores se lhes oferecermos altas taxas de juros pagando a remuneração de títulos públicos a eles oferecidos.
No primeiro caso, do investimento em infraestrutura, poderemos colher em breve melhores condições para atender às empresas e às pessoas físicas que demandam esses serviços, em especial na distribuição de bens e produtos, sobretudo aqueles que devem chegar aos portos ganhando o mercado mundial. Mesmo assim, quanto mais internacionalizadas forem essas operações, mais capitais serão remetidos aos seus controladores no futuro, sob a forma de lucros, dívidas inter-companhias, com impactos nada desprezíveis no balanço de transações correntes com o exterior e elevados riscos cambiais, além da guerra pelo controle das tarifas desses serviços, com clara pressão sobre os índices de inflação. Basta ver a reiterada elevação dos preços administrados, cujos contratos são ainda indexados à inflação passada desde a era do Plano Real e das privatizações dos governos de FHC.
No segundo caso, dos capitais ávidos por juros, a situação é mais grave. Quanto mais dólares chegarem para esse fim, maior o endividamento público, maior a valorização do Real frente ao dólar e a necessidade de intervenção do Banco Central, através da venda de títulos, captação de Reais e aquisição desses dólares. Isso estimula importações, encarece exportações, forja o flerte de investidores com essa modalidade de ampliação de ativos e aumenta a dívida pública. Óbvio, mais atraente será aplicar o capital a juros que investir em produção, ainda que na infraestrutura com taxas de retorno convidativas. Tais combinações, no mundo dos juros e do câmbio, poderão levar o país, como já tem acontecido, a reduzir a taxa de investimento público, pois arrastado pelo elevado peso de encargos da dívida pública no tesouro nacional, e a contingenciar transferências para o custeio e os investimentos nas áreas sociais, em função da proposta de ajuste fiscal (receita x despesas, numa ótica primária de avaliação).
Ao mesmo tempo, pela atração fatal da liquidez que os papéis públicos oferecem aos investidores, assistiremos à progressiva redução do investimento industrial e à queda da participação da indústria de transformação no produto interno bruto, enquanto as importações crescerão em função da apreciação cambial puxada pela alta dos juros. Então?
Bingo! Assim se desmonta o projeto de nação. Passaremos a ser plataforma de destino das exportações dos países industrializados centrais e porto seguro para a remuneração e ampliação dos capitais internacionais, voláteis, remunerados a juros. Na primeira opção desmonta-se a capacidade de planejamento do crescimento, do desenvolvimento tecnológico e da ampliação do valor agregado do produto, na segunda, sequestra-se o tesouro nacional e se transforma a política econômica e fiscal em âncora da acumulação financeira.
Aos poucos o futuro nos traz de volta ao passado, não tão recente, quanto exportávamos minérios, açúcar, café, gerávamos fortunas com o comércio exterior, mas seguíamos subdesenvolvidos, embora experts na exploração de recursos naturais. Nesse cenário, de que valerão milhares de novas vagas nos Institutos Federais de Educação Tecnológica e nas Universidades se a produção diminui, o investimento sai do produto e vai para os papéis, a exportação se reprimariza e as remessas de lucros e dividendos, do ganho fácil rentista às taxas de retorno dos negócios concedidos na infraestrutura, quebram o balanço de transações com o exterior?
Pois é, a nação está ameaçada. Nada, porém, que não possa ser enfrentado com coragem, vontade política, clareza, opção e organização da sociedade, de seus intelectuais e pesquisadores, ainda que estejamos num dos piores momentos da representação política da recente história democrática de nosso país, sob hegemonia de fundos privados, da corrupção e do obscurantismo das bancadas que querem legislar sobre os costumes e as orientações de cada cidadão brasileiro. Creio, por isso, movendo-me nessas direções, que o legado de Josué de Castro, Inácio Rangel, Celso Furtado, Florestan Fernandes, Paulo Freire, Anísio Teixeira, Rui Mauro Maurini, Cesar Lattes, Antônio Barros de Castro e tantos outros não terá sido em vão.
*Professor da UFPE e Presidente da Fundação Joaquim Nabuco
Embora haja indicadores que revelam alterações significativas nas condições de vida do povo brasileiro nos últimos anos, embora tenhamos acabado de assistir ao anúncio de um vigoroso programa de transferências das operações de serviços na área de infraestrutura para possíveis grupos privados nacionais e estrangeiros, ainda assim, é na radiografia das relações entre o país, sua economia, instituições do setor e a esfera internacional que podemos afirmar se o projeto de nação caminha para consolidar sua soberania e seu desenvolvimento com igualdade ou se estamos retrocedendo ao tempo em que nossa inserção no mundo era comandada por dinamismos externos e pela exportação de bens de baixo valor agregado, conhecimento e inovação.
É disso que pretendo falar com o título desse artigo. Atualmente, não é certamente difícil atrairmos capitais que circulam mundo afora em busca de melhores taxas de retorno sobre seus ativos, aplicados em especial na administração de aeroportos, rodovias, ferrovias, universidades privadas ou portos. Da mesma forma é cada dia mais fácil entrarmos na rota desses investidores se lhes oferecermos altas taxas de juros pagando a remuneração de títulos públicos a eles oferecidos.
No primeiro caso, do investimento em infraestrutura, poderemos colher em breve melhores condições para atender às empresas e às pessoas físicas que demandam esses serviços, em especial na distribuição de bens e produtos, sobretudo aqueles que devem chegar aos portos ganhando o mercado mundial. Mesmo assim, quanto mais internacionalizadas forem essas operações, mais capitais serão remetidos aos seus controladores no futuro, sob a forma de lucros, dívidas inter-companhias, com impactos nada desprezíveis no balanço de transações correntes com o exterior e elevados riscos cambiais, além da guerra pelo controle das tarifas desses serviços, com clara pressão sobre os índices de inflação. Basta ver a reiterada elevação dos preços administrados, cujos contratos são ainda indexados à inflação passada desde a era do Plano Real e das privatizações dos governos de FHC.
No segundo caso, dos capitais ávidos por juros, a situação é mais grave. Quanto mais dólares chegarem para esse fim, maior o endividamento público, maior a valorização do Real frente ao dólar e a necessidade de intervenção do Banco Central, através da venda de títulos, captação de Reais e aquisição desses dólares. Isso estimula importações, encarece exportações, forja o flerte de investidores com essa modalidade de ampliação de ativos e aumenta a dívida pública. Óbvio, mais atraente será aplicar o capital a juros que investir em produção, ainda que na infraestrutura com taxas de retorno convidativas. Tais combinações, no mundo dos juros e do câmbio, poderão levar o país, como já tem acontecido, a reduzir a taxa de investimento público, pois arrastado pelo elevado peso de encargos da dívida pública no tesouro nacional, e a contingenciar transferências para o custeio e os investimentos nas áreas sociais, em função da proposta de ajuste fiscal (receita x despesas, numa ótica primária de avaliação).
Ao mesmo tempo, pela atração fatal da liquidez que os papéis públicos oferecem aos investidores, assistiremos à progressiva redução do investimento industrial e à queda da participação da indústria de transformação no produto interno bruto, enquanto as importações crescerão em função da apreciação cambial puxada pela alta dos juros. Então?
Bingo! Assim se desmonta o projeto de nação. Passaremos a ser plataforma de destino das exportações dos países industrializados centrais e porto seguro para a remuneração e ampliação dos capitais internacionais, voláteis, remunerados a juros. Na primeira opção desmonta-se a capacidade de planejamento do crescimento, do desenvolvimento tecnológico e da ampliação do valor agregado do produto, na segunda, sequestra-se o tesouro nacional e se transforma a política econômica e fiscal em âncora da acumulação financeira.
Aos poucos o futuro nos traz de volta ao passado, não tão recente, quanto exportávamos minérios, açúcar, café, gerávamos fortunas com o comércio exterior, mas seguíamos subdesenvolvidos, embora experts na exploração de recursos naturais. Nesse cenário, de que valerão milhares de novas vagas nos Institutos Federais de Educação Tecnológica e nas Universidades se a produção diminui, o investimento sai do produto e vai para os papéis, a exportação se reprimariza e as remessas de lucros e dividendos, do ganho fácil rentista às taxas de retorno dos negócios concedidos na infraestrutura, quebram o balanço de transações com o exterior?
Pois é, a nação está ameaçada. Nada, porém, que não possa ser enfrentado com coragem, vontade política, clareza, opção e organização da sociedade, de seus intelectuais e pesquisadores, ainda que estejamos num dos piores momentos da representação política da recente história democrática de nosso país, sob hegemonia de fundos privados, da corrupção e do obscurantismo das bancadas que querem legislar sobre os costumes e as orientações de cada cidadão brasileiro. Creio, por isso, movendo-me nessas direções, que o legado de Josué de Castro, Inácio Rangel, Celso Furtado, Florestan Fernandes, Paulo Freire, Anísio Teixeira, Rui Mauro Maurini, Cesar Lattes, Antônio Barros de Castro e tantos outros não terá sido em vão.
*Professor da UFPE e Presidente da Fundação Joaquim Nabuco
Fonte: Carta Maior
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