O que 11 setembro de 1973 tem a dizer 2015?
Sem maioria, o governo chileno foi submetido a um esfarelante jogo parlamentar, obrigado a demitir ministros, sendo desautorizado em inúmeros projetos.
Não é o apego a efeméride que dá pertinência à discussão da experiência de construção do socialismo no Chile, 42 anos depois da derrubada de Allende, em 11 de setembro de 1973.
Não se mira o passado. Mas a atualidade de certas perguntas que preservam sua pertinência desde que os Hawkers-Hunters da Força Aérea passaram a disparar contra o La Moneda, naquela terça-feira cinzenta de 1973.
Algumas falam diretamente ao Brasil dos dias que correm.
Exemplos.
O que acontece em um país quando o conservadorismo forma a percepção de que as possibilidades democráticas e eleitorais de seu retorno ao poder se estreitaram?
Que contrapesos poderiam, ou melhor, deveriam ser acionados quando a judicialização da política e o golpismo midiático compõem um corredor polonês asfixiante em torno de um governo democrático e progressista?
Em que medida é realista apostar em um alicerce defensivo ancorado exclusivamente na institucionalidade existente, quando não sucumbir implica superar os limites que elas guarnecem?
É um primeiro indicativo.
Há outros a sinalizar que não estamos falando de ontem.
Mas das evocações que 1973 inspira nos dias que correm.
O processo chileno tem recados a dar ao governo do PT.
E aos que se definem à esquerda do PT.
A coragem e a dignidade inexcedíveis de Salvador Allende e a de milhares de homens e mulheres que, a exemplo dele, perderam a vida e entes queridos no golpe, não estão em questão.
Mas o debate sobre os equívocos do processo e, sobretudo, a busca de alternativas, devem ser retomados à luz da nova realidade latino-americana, após um ciclo vitorioso de governos progressistas que pareciam ter superado as armadilhas enfrentadas pela experiência chilena.
O que se observa, porém, é um ressurgimento de certos impasses, modelados por desafios econômicos e políticos, de natureza regional e global, que se entrelaçam a estreitar a capacidade progressista de expandir as fronteiras da justiça social na região.
O autofalante do golpismo, não por acaso, voltou a emitir seus ultimatos com renovador vigor.
Allende embasaria seu cálculo político dois pilares debilitados no imaginário político latino-americano pelo golpe de Pinochet.
Mas sem que se tenha extraído disso as consequências políticas cabíveis.
A propalada solidez de 100 anos de democracia congressual chilena; e a decantada postura profissional do Exército do país formavam a pedra angular do projeto da Unidade Popular.
O ponto de partida ensejou certa prostração do Estado e da sociedade diante da beligerância progressiva da mídia e dos interesses locais e estrangeiros, que nunca endossaram a ideia de uma transição democrática para o socialismo.
Instalou-se a partir daí uma contradição latejante no motor da Unidade Popular.
De um lado, por eleger como ancora da travessia uma institucionalidade sobre a qual nunca teve domínio. E dentro da qual jamais conseguiu construir uma maioria efetiva.
Lembra algo?
De outro, e em decorrência do anterior, por desestimular a organizações autônomas de autodefesa, fiel ao princípio de que um ‘exército profissional’ zelaria pela higidez do processo constitucional e popular.
À natureza bipolar da engrenagem interna somar-se-ia certa subestimação das determinações mais gerais da desordem capitalista em curso no plano mundial. Também aqui há nuances de contato com equívocos cometidos no presente.
O poder americano então, fustigado por múltiplos reveses, armava as garras para recompor sua supremacia geopolítica.
Havia um contrafluxo conservador em marcha no mundo quando Allende chegou ao poder, em 21 de setembro de 1970, mostra o Especial de Carta Maior, de oportuna releitura no front brasileiro.
A luta armada contabilizava derrotas sucessivas na América Latina.
Ditaduras e frentes conservadoras multiplicavam-se.
O poder americano estava corroído pelo déficit e a inflação decorrentes do choque do petróleo e dos gastos na guerra do Vietnam.
Uma espiral adversa empurrava a máquina de guerra mais poderosa do mundo para uma derrota humilhante, consumada em 1975, quando Saigon caiu nas mãos das tropas comunistas.
A emergência de um Chile embalado na sedutora mescla de democracia e socialismo era o lança-chamas solto no paiol de um império inflamável e inflamado.
"Não permitiremos que isso dê certo".
Foram essas as palavras imperiais de Henry Kissinger a uma delegação de autoridades chilenas, logo após a vitória da Unidade Popular.
A subestimação do cerco internacional e da correlação de força adversa em marcha, então, nos campos político e econômico, explica um pedaço da mortal luta fratricida travada no ambiente progressista chileno.
A fragmentação das energias à esquerda ajudou o conjunto a perder o foco do principal.
Ou seja, da necessária construção de uma frente ainda mais abrangente e coesa do que a que elegeu Allende para resistir a um revés anunciado por generosos e explosivos indícios.
“Allende nacionalizou 79 grandes empresas industriais (as minas de cobre entre elas), 16 dos 18 bancos comerciais existentes, expropriou cem milhões de hectares de terra, completando-se assim o processo de reforma agrária iniciado no governo de Eduardo Frei (1964-70). Além disso, foram incorporadas às instâncias do poder, à cúpula do Estado, à administração pública e à direção das estatais representantes do povo e da classe operária. Foi o primeiro governo da história do Chile que contou com a participação de quatro ministros operários, três comunistas, um socialista".
"A direita não tolerou isso”.
A contabilidade histórica é feita por quem viveu esse filme como o segundo homem da estrutura da Unidade Popular, depois de Allende.
Luís Alberto Corvalán Lepe, (1916-2010), o lendário dirigente comunista chileno, coordenador da campanha da UP, foi entrevistado por Gilberto Maringoni em 1993.
A conversa, mantida inédita desde então, foi publicada pela primeira vez neste especial de Carta Maior
Corvalán disse algo especialmente sensível ao impasse brasileiro atual; ele afirmou a Maringoni que a questão política acabaria pesando ainda mais que a crise econômica na consolidação do ambiente golpista.
Guardadas as devidas proporções é o mesmo que Lula diz hoje sobre o impasse brasileiro.
Esse tema é retomado no texto produzido especialmente para Carta Maior pelo jornalista Martín Granowsky .
Um dos expoentes do jornal Página 12, Granowsky recupera o relato do encontro tenso e premonitório, ocorrido em Washington , entre a delegação oficial chilena e a cúpula do Departamento de Estado norte-americano.
O governo Allende apenas se desenhava.
Henry Kissinger foi completo no seu estilo: rude, insolente, imperial, preconceituoso.
“A América Latina é uma região de quase nenhuma importância…”. começou dizendo o falcão de Nixon logo no início da conversa. “ O Chile não tem nenhum valor estratégico. Nós podemos receber cobre do Peru, Zâmbia, Canadá. Vocês não têm nada que seja decisivo. Mas se estabelecido esse projeto rumo ao socialismo, conforme Allende fala, teríamos problemas sérios na França e na Itália, onde há socialistas e comunistas divididos, que com esse exemplo poderiam unir-se. E isso afeta substancialmente o interesse dos Estados Unidos".
"Não vamos permitir”.
Encerrou assim. Quase como um tiro à queima-roupa.
Termos ainda menos elegantes ele utilizaria um pouco mais adiante, como relata o próprio embaixador dos EUA no Chile (até agosto de 1973), Edward Kerry.
Sua entrevista no imperdível ‘O último combate de Salvador Allende’’, documentário incluído no Especial de Carta Maior, é desconcertante.
O conjunto dos relatos indica que enquanto a Unidade Popular evocava estrito respeito à ordem democrática, um programa de desestabilização financiado pela CIA minava a sociedade e a economia, determinado a não permitir que do coração da América Latina emergisse uma referência bem sucedida de construção de uma sociedade mais justa, soberana e próspera.
O contrafogo a esse contágio partia de quatro frentes, três das quais latejam sua atualidade no objetivo e no método:
A saber:
I) criar a sensação de caos econômico (‘fazer a economia gritar”, era a diretriz do departamento de Estado);
II) promover o descrédito através dos meios de comunicações (o El Mercúrio pautava diariamente os demais veículos);
III) seduzir fileiras das Forças Armadas (US$ 8 milhões da CIA estavam disponíveis...) e
IV) multiplicar protestos e conflitos de rua, com atentados a cargo de grupos paramilitares.
As coincidências ensejam variados alertas e reflexões.
Está claro que condenar a priori a desgastante busca de uma base parlamentar de governabilidade, ainda que sempre movediça e melíflua, significa entregar ao conservadorismo um território político estratégico, sem disputá-lo.
Ademais do enorme potencial de ressonância, trata-se de um poder dotado de instrumentos e legitimidade para paralisar um governo e um país.
Eduardo Cunha dispensa-nos de insistir nesse tópico.
Mas está claro também que a exclusiva e predominante concentração de forças nessa frente é insuficiente.
Para não dizer mortal.
Sem maioria, Allende foi submetido a um esfarelante jogo parlamentar, obrigado a demitir ministros, sendo desautorizado em inúmeros projetos e iniciativas sabotadas pelo Legislativo.
Ao destinar um papel subordinado à dinâmica da mobilização popular, tornar-se-ia refém de uma centralidade institucional claramente adversa e de uma mídia determinada a desossar seu poder para legitimar sua derrubada.
Nesse roldão, cederia também em outro terreno familiar ao processo brasileiro.
O da mídia.
Pressionado, liberou 155 rádios de integrarem o guarda-chuva da cadeia nacional.
Ou seja, sancionou uma rede de radiodifusão autônoma e golpista.
Que martelava diuturnamente a insatisfação popular provocada por um desabastecimento deliberadamente produzido.
Em setembro de 1973 ‘a economia gritava’.
A encomenda de Washington estava pronta para ir à mesa.
A sensação dos gritos era amplificada pelo aparato midiático conservador.
E retornava às ruas numa espiral de crispação contagiosa.
A inexistência de uma estrutura popular ampla, organizada e unida, mas sobretudo, preparada para responder ao golpe e defender o governo evidenciaria, então, o preço caro da: 1) fragmentação da esquerda; 2) aposta na democracia representativa como fiadora exclusiva da travessia para uma sociedade mais justa.
E estamos falando do Chile que, diferente do Brasil atual, levou muito longe a capilaridade da mobilização popular.
Coube ao general Augusto Pinochet, de forma sangrenta, reafirmar o ditado segundo o qual, a democracia liberal promete mais do que o sistema está disposto a conceder.
Como um velho farol solitário, o ano de 1973 lança alertas sobre os rochedos e as armadilhas que, no presente, como há quatro décadas, separam os vagalhões da terra firme.
Reveses históricos seguidos, intercalados recentemente pela emergência auspiciosa de um colar de governos progressista que agora enfrenta também sua hora da verdade, mostra que as questões essenciais de 1973 continuam atuais e em aberto.
O tempo cuidaria de cristalizar o isolamento de algumas concepções, a prostração de outras e a rendição mercadista de muitas.
A tese da radicalização da democracia política ocuparia esse espaço como uma legenda-ônibus, recheada da difusa intenção de atravessar um vazio estratégico sem refletir nem providenciar as pontes necessárias para isso.
A luz intermitente do farol de 1973 parece dizer que, mesmo para quem vai devagar, é necessário ter clareza do porto a que se quer chegar.
E, sobretudo, dispor das velas adequadas para isso.
O risco de não faze-lo é ser tragado pelas correntezas permanentes do caminho.
Não se mira o passado. Mas a atualidade de certas perguntas que preservam sua pertinência desde que os Hawkers-Hunters da Força Aérea passaram a disparar contra o La Moneda, naquela terça-feira cinzenta de 1973.
Algumas falam diretamente ao Brasil dos dias que correm.
Exemplos.
O que acontece em um país quando o conservadorismo forma a percepção de que as possibilidades democráticas e eleitorais de seu retorno ao poder se estreitaram?
Que contrapesos poderiam, ou melhor, deveriam ser acionados quando a judicialização da política e o golpismo midiático compõem um corredor polonês asfixiante em torno de um governo democrático e progressista?
Em que medida é realista apostar em um alicerce defensivo ancorado exclusivamente na institucionalidade existente, quando não sucumbir implica superar os limites que elas guarnecem?
É um primeiro indicativo.
Há outros a sinalizar que não estamos falando de ontem.
Mas das evocações que 1973 inspira nos dias que correm.
O processo chileno tem recados a dar ao governo do PT.
E aos que se definem à esquerda do PT.
A coragem e a dignidade inexcedíveis de Salvador Allende e a de milhares de homens e mulheres que, a exemplo dele, perderam a vida e entes queridos no golpe, não estão em questão.
Mas o debate sobre os equívocos do processo e, sobretudo, a busca de alternativas, devem ser retomados à luz da nova realidade latino-americana, após um ciclo vitorioso de governos progressistas que pareciam ter superado as armadilhas enfrentadas pela experiência chilena.
O que se observa, porém, é um ressurgimento de certos impasses, modelados por desafios econômicos e políticos, de natureza regional e global, que se entrelaçam a estreitar a capacidade progressista de expandir as fronteiras da justiça social na região.
O autofalante do golpismo, não por acaso, voltou a emitir seus ultimatos com renovador vigor.
Allende embasaria seu cálculo político dois pilares debilitados no imaginário político latino-americano pelo golpe de Pinochet.
Mas sem que se tenha extraído disso as consequências políticas cabíveis.
A propalada solidez de 100 anos de democracia congressual chilena; e a decantada postura profissional do Exército do país formavam a pedra angular do projeto da Unidade Popular.
O ponto de partida ensejou certa prostração do Estado e da sociedade diante da beligerância progressiva da mídia e dos interesses locais e estrangeiros, que nunca endossaram a ideia de uma transição democrática para o socialismo.
Instalou-se a partir daí uma contradição latejante no motor da Unidade Popular.
De um lado, por eleger como ancora da travessia uma institucionalidade sobre a qual nunca teve domínio. E dentro da qual jamais conseguiu construir uma maioria efetiva.
Lembra algo?
De outro, e em decorrência do anterior, por desestimular a organizações autônomas de autodefesa, fiel ao princípio de que um ‘exército profissional’ zelaria pela higidez do processo constitucional e popular.
À natureza bipolar da engrenagem interna somar-se-ia certa subestimação das determinações mais gerais da desordem capitalista em curso no plano mundial. Também aqui há nuances de contato com equívocos cometidos no presente.
O poder americano então, fustigado por múltiplos reveses, armava as garras para recompor sua supremacia geopolítica.
Havia um contrafluxo conservador em marcha no mundo quando Allende chegou ao poder, em 21 de setembro de 1970, mostra o Especial de Carta Maior, de oportuna releitura no front brasileiro.
A luta armada contabilizava derrotas sucessivas na América Latina.
Ditaduras e frentes conservadoras multiplicavam-se.
O poder americano estava corroído pelo déficit e a inflação decorrentes do choque do petróleo e dos gastos na guerra do Vietnam.
Uma espiral adversa empurrava a máquina de guerra mais poderosa do mundo para uma derrota humilhante, consumada em 1975, quando Saigon caiu nas mãos das tropas comunistas.
A emergência de um Chile embalado na sedutora mescla de democracia e socialismo era o lança-chamas solto no paiol de um império inflamável e inflamado.
"Não permitiremos que isso dê certo".
Foram essas as palavras imperiais de Henry Kissinger a uma delegação de autoridades chilenas, logo após a vitória da Unidade Popular.
A subestimação do cerco internacional e da correlação de força adversa em marcha, então, nos campos político e econômico, explica um pedaço da mortal luta fratricida travada no ambiente progressista chileno.
A fragmentação das energias à esquerda ajudou o conjunto a perder o foco do principal.
Ou seja, da necessária construção de uma frente ainda mais abrangente e coesa do que a que elegeu Allende para resistir a um revés anunciado por generosos e explosivos indícios.
“Allende nacionalizou 79 grandes empresas industriais (as minas de cobre entre elas), 16 dos 18 bancos comerciais existentes, expropriou cem milhões de hectares de terra, completando-se assim o processo de reforma agrária iniciado no governo de Eduardo Frei (1964-70). Além disso, foram incorporadas às instâncias do poder, à cúpula do Estado, à administração pública e à direção das estatais representantes do povo e da classe operária. Foi o primeiro governo da história do Chile que contou com a participação de quatro ministros operários, três comunistas, um socialista".
"A direita não tolerou isso”.
A contabilidade histórica é feita por quem viveu esse filme como o segundo homem da estrutura da Unidade Popular, depois de Allende.
Luís Alberto Corvalán Lepe, (1916-2010), o lendário dirigente comunista chileno, coordenador da campanha da UP, foi entrevistado por Gilberto Maringoni em 1993.
A conversa, mantida inédita desde então, foi publicada pela primeira vez neste especial de Carta Maior
Corvalán disse algo especialmente sensível ao impasse brasileiro atual; ele afirmou a Maringoni que a questão política acabaria pesando ainda mais que a crise econômica na consolidação do ambiente golpista.
Guardadas as devidas proporções é o mesmo que Lula diz hoje sobre o impasse brasileiro.
Esse tema é retomado no texto produzido especialmente para Carta Maior pelo jornalista Martín Granowsky .
Um dos expoentes do jornal Página 12, Granowsky recupera o relato do encontro tenso e premonitório, ocorrido em Washington , entre a delegação oficial chilena e a cúpula do Departamento de Estado norte-americano.
O governo Allende apenas se desenhava.
Henry Kissinger foi completo no seu estilo: rude, insolente, imperial, preconceituoso.
“A América Latina é uma região de quase nenhuma importância…”. começou dizendo o falcão de Nixon logo no início da conversa. “ O Chile não tem nenhum valor estratégico. Nós podemos receber cobre do Peru, Zâmbia, Canadá. Vocês não têm nada que seja decisivo. Mas se estabelecido esse projeto rumo ao socialismo, conforme Allende fala, teríamos problemas sérios na França e na Itália, onde há socialistas e comunistas divididos, que com esse exemplo poderiam unir-se. E isso afeta substancialmente o interesse dos Estados Unidos".
"Não vamos permitir”.
Encerrou assim. Quase como um tiro à queima-roupa.
Termos ainda menos elegantes ele utilizaria um pouco mais adiante, como relata o próprio embaixador dos EUA no Chile (até agosto de 1973), Edward Kerry.
Sua entrevista no imperdível ‘O último combate de Salvador Allende’’, documentário incluído no Especial de Carta Maior, é desconcertante.
O conjunto dos relatos indica que enquanto a Unidade Popular evocava estrito respeito à ordem democrática, um programa de desestabilização financiado pela CIA minava a sociedade e a economia, determinado a não permitir que do coração da América Latina emergisse uma referência bem sucedida de construção de uma sociedade mais justa, soberana e próspera.
O contrafogo a esse contágio partia de quatro frentes, três das quais latejam sua atualidade no objetivo e no método:
A saber:
I) criar a sensação de caos econômico (‘fazer a economia gritar”, era a diretriz do departamento de Estado);
II) promover o descrédito através dos meios de comunicações (o El Mercúrio pautava diariamente os demais veículos);
III) seduzir fileiras das Forças Armadas (US$ 8 milhões da CIA estavam disponíveis...) e
IV) multiplicar protestos e conflitos de rua, com atentados a cargo de grupos paramilitares.
As coincidências ensejam variados alertas e reflexões.
Está claro que condenar a priori a desgastante busca de uma base parlamentar de governabilidade, ainda que sempre movediça e melíflua, significa entregar ao conservadorismo um território político estratégico, sem disputá-lo.
Ademais do enorme potencial de ressonância, trata-se de um poder dotado de instrumentos e legitimidade para paralisar um governo e um país.
Eduardo Cunha dispensa-nos de insistir nesse tópico.
Mas está claro também que a exclusiva e predominante concentração de forças nessa frente é insuficiente.
Para não dizer mortal.
Sem maioria, Allende foi submetido a um esfarelante jogo parlamentar, obrigado a demitir ministros, sendo desautorizado em inúmeros projetos e iniciativas sabotadas pelo Legislativo.
Ao destinar um papel subordinado à dinâmica da mobilização popular, tornar-se-ia refém de uma centralidade institucional claramente adversa e de uma mídia determinada a desossar seu poder para legitimar sua derrubada.
Nesse roldão, cederia também em outro terreno familiar ao processo brasileiro.
O da mídia.
Pressionado, liberou 155 rádios de integrarem o guarda-chuva da cadeia nacional.
Ou seja, sancionou uma rede de radiodifusão autônoma e golpista.
Que martelava diuturnamente a insatisfação popular provocada por um desabastecimento deliberadamente produzido.
Em setembro de 1973 ‘a economia gritava’.
A encomenda de Washington estava pronta para ir à mesa.
A sensação dos gritos era amplificada pelo aparato midiático conservador.
E retornava às ruas numa espiral de crispação contagiosa.
A inexistência de uma estrutura popular ampla, organizada e unida, mas sobretudo, preparada para responder ao golpe e defender o governo evidenciaria, então, o preço caro da: 1) fragmentação da esquerda; 2) aposta na democracia representativa como fiadora exclusiva da travessia para uma sociedade mais justa.
E estamos falando do Chile que, diferente do Brasil atual, levou muito longe a capilaridade da mobilização popular.
Coube ao general Augusto Pinochet, de forma sangrenta, reafirmar o ditado segundo o qual, a democracia liberal promete mais do que o sistema está disposto a conceder.
Como um velho farol solitário, o ano de 1973 lança alertas sobre os rochedos e as armadilhas que, no presente, como há quatro décadas, separam os vagalhões da terra firme.
Reveses históricos seguidos, intercalados recentemente pela emergência auspiciosa de um colar de governos progressista que agora enfrenta também sua hora da verdade, mostra que as questões essenciais de 1973 continuam atuais e em aberto.
O tempo cuidaria de cristalizar o isolamento de algumas concepções, a prostração de outras e a rendição mercadista de muitas.
A tese da radicalização da democracia política ocuparia esse espaço como uma legenda-ônibus, recheada da difusa intenção de atravessar um vazio estratégico sem refletir nem providenciar as pontes necessárias para isso.
A luz intermitente do farol de 1973 parece dizer que, mesmo para quem vai devagar, é necessário ter clareza do porto a que se quer chegar.
E, sobretudo, dispor das velas adequadas para isso.
O risco de não faze-lo é ser tragado pelas correntezas permanentes do caminho.
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