Baltazar Garzón, juiz
espanhol, denuncia golpe no Brasil
O Juiz Baltasar
Garzón, que prendeu o ditador chileno Augusto Pinochet e se tornou tão
conhecido na Europa como Sergio Moro no Brasil, demonstra em artigo, publicado
neste domingo (24), indignação com o que está acontecendo com a democracia
brasileira.
Segundo Garzón, "a luta
contra a corrupção é vital e deve ser prioritária em qualquer democracia, mas é
preciso estar atento aos interesses daqueles que pretendem se beneficiar da
'cegueira' que supõe a luta em si mesma"; o jurista diz ainda ser
"capaz de perceber o espetáculo oferecido pelo procedimento de juízo
político que está em curso contra a Presidenta Dilma Rousseff e que guarda
semelhanças com outros que foram vivenciados por países como Paraguai e
Honduras"
Leia a íntegra do artigo:
Ética Política e Justiça no Brasil
Partindo da consciência crítica de quem pertence a um país que em algum
momento histórico exerceu o férreo poder do colonialismo atualmente em debate
entre mil contradições e contrariedades, mas também partindo da firmeza
democrática e da convicção de defender valores universais como justiça,
liberdade e democracia, quero compartilhar com vocês meus sentimentos e algumas
reflexões que tenho feito diante da difícil situação que vive
institucionalmente o Brasil.
Sinto profundo pesar em observar que pessoas que são referências da boa
política, defensores dos direitos sociais, de trabalhadores e daqueles que são
os elos mais fracos da cadeia humana estão na mira das corporações que,
insensíveis aos sentimentos dos povos, estão dispostas a eliminar todos os
obstáculos que se lhes apresentem para consolidar posição de privilégio e
controle econômico sobre a cidadania com consequências graves para o futuro.
Nessa dinâmica perversa, os grandes interesses não hesitam em eliminar política
e civilmente aqueles que o contrariam na defesa dos mais frágeis que sempre
foram privados de voz e de palavra para decidir seus próprios destinos.
Mesmo partindo da perspectiva de quem não vive o dia a dia da política
brasileira, devo dizer que sou capaz de perceber o espetáculo oferecido pelo
procedimento de juízo político que está em curso contra a Presidenta Dilma
Rousseff e que guarda semelhanças com outros que foram vivenciados por países
como Paraguai e Honduras, forjados institucionalmente por parte daqueles que
somente estavam interessados em alcançar o poder a qualquer preço.
A interferência constante do Poder Judiciário com o fim de influenciar
nesses processos deve cessar. Por experiência, sei os riscos que representam os
jogos de interesses cruzados, não tanto em favor da justiça e sim com o
objetivo de acabar como o oponente político instrumentalizando a um dos poderes
básicos do Estado e fazendo-o perder o equilíbrio que deve preservar em
momentos como este, tão delicados para a sociedade. O judiciário deve
prosseguir suas atuações sem midiatização política de nenhum tipo, sem
prestar-se a jogos perigosos em benefício de interesses obscuros, distantes da
confrontação política transparente e limpa.
A perda das liberdades e a submissão da Justiça a interesses espúrios
pode custar um preço excessivo ao povo brasileiro. O Poder Judiciário e seus
componentes devem resistir e defender a cidadania frente às tentativas
evidentes e grosseiras de instrumentalização interessada. O objetivo não parece
ser, como dizem, acabar com o projeto político do Partido dos Trabalhadores e
seus máximos expoentes, mas submeter à população de forma irreversível a um
sistema vicarial controlado pelos mais poderosos economicamente.
A luta contra a corrupção é vital e deve ser prioritária em qualquer
democracia, mas é preciso estar atento aos interesses daqueles que pretendem se
beneficiar da "cegueira" que supõe a luta em si mesma. A justiça deve
manter os olhos completamente abertos para perceber o ataque ao sistema
democrático que é perceptível na realização de uma espécie de juízo político
sem consistência nem base jurídica suficiente para alcançar legitimidade e que
somente busca tomar o poder por vias tortuosas desenhadas por aqueles que
deveriam defender os interesses do povo e não os próprios. Ou ainda daqueles
que nunca disputaram eleições e que pretendem substituir a vontade das urnas,
hipotecando o futuro do povo brasileiro.
A indignação democrática que sinto ao acompanhar os fatos do Brasil,
país pelo qual tenho imenso apreço, me provoca profunda dor e ao mesmo tempo me
compele a expressar esses sentimentos diante daqueles que não têm pudor em
destruir as estruturas democráticas que tanto tempo levaram para serem
erguidas, aqueles que não hesitam em interferir na ação da Justiça em benefício
próprio.
Ninguém conquista um reino para sempre e o da democracia deve ser
conquistado e defendido todos os dias frente aos múltiplos ataques e isso se
faz desde os mais recônditos lugares do país, de uma mina, uma pequena fábrica,
do interior da Floresta Amazônica já tão atacada e deteriorada por interesses
criminosos, das redações dos periódicos ou plataformas televisivas que servem
de tentação à submissão corporativa, das ruas das cidades e dos púlpitos das
igrejas, das favelas e dos conselhos de administração das empresas, das
universidades, das escolas, em cada casa da família brasileira é preciso lutar
diuturnamente pela democracia. E é obrigação de todas e todos fazer isso não
somente em seu país, mas também fora, em qualquer lugar, porque a democracia é
um bem tão escasso cuja consolidação é missão do conjunto de toda a comunidade
internacional.
Tanto o presidente Lula da Silva, a quem conheço e admiro, como a
presidenta Dilma Rousseff, com quem nunca estive pessoalmente, representaram o
melhor projeto em termos de política social e inclusiva e que, caso tenham
incorrido em irregularidades, merecem um juízo justo e direito básico à ampla
defesa e não um julgamento ilegítimo em praça pública realizado por quem não
tem direito nem uma posição ética para fazê-lo. O povo brasileiro nunca
perdoará o ataque frontal à democracia e ao Estado Democrático de Direito.
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