sexta-feira, 13 de maio de 2016

Democracia sem democratas

Democracia sem democratas

O afastamento da presidenta Dilma de seu cargo simboliza a hipócrita, espúria e impiedosa virada de mesa do incipiente processo democrático no País.


José Carlos Peliano*
José Cruz / Agência Brasil
O afastamento da Presidenta Dilma do cargo não apenas retira temporariamente seu mandato concedido por 54 milhões de eleitores, ele simboliza hipócrita, espúria e impiedosamente a virada de mesa do incipiente processo democrático no País.
 
O subterfúgio usado pelos parlamentares de se valerem de procedimentos de gestão orçamentário-financeira não contemplados por lei, as chamadas pedaladas fiscais, para afastar do poder as marcas e os tentáculos do PT foi a bola da vez da conspiração. Ação igualmente usada por outros governadores na cobertura das dívidas estaduais foi apenada no foro político somente para a Presidenta. 
 
A tropa oposicionista não se olhou no espelho. Baixou a cabeça, tapou os ouvidos e seguiu a vingança de Eduardo Cunha - acusado de vários processos de corrupção, hoje afastado para julgamento no STF. 
 
A fúria concentrou-se em recorrer a expediente legislativo, embora previsto na Constituição, para justificar um ato ilegítimo, ilegal, inconstitucional. Este foi-lhe assegurado por uma maioria oportunista no Congresso Nacional. Os capa-pretas do STF se calaram de verde e amarelo.

 
Os advogados se valem muitas vezes dos meandros das leis, seus artigos mal redigidos, suas interpretações possíveis, suas combinações duvidosas, para defenderem suas partes e seus processos. Mas não usam do engano, do cinismo e da fraude para levar à frente seus intentos.
 
É a primeira vez na capenga democracia brasileira que a representante política maior do povo é afastada por interpretação leviana dos regramentos legais e em proveito próprio de suas excelências. Com esse expediente, a dita Casa do Povo retira desse mesmo povo seu poder constitucional e soberano de serem válidos seus votos, 367 votos contra 54 milhões.
 
Isso não é democracia, esses não são democratas! O governo do povo, pelo povo e para o povo, defendido tão bravamente por Rui Barbosa, não inclui somente o Poder Executivo. O Legislativo e o Judiciário também fazem parte solidária. Não cabe a nenhum deles extrapolar seus mandatos, direitos e obrigações sob pena de ferir a democracia, quiçá mortalmente.
 
Desafortunadamente os pretensos democratas legislativos parece não lerem notícias vindas do exterior. A social democracia europeia igualmente faz uma inflexão à ré em praticamente todo seu território, em especial na Grécia, Portugal, Espanha e França. Os ajustes econômicos neoliberais destroem os avanços obtidos pelo trabalho em prol do todo-poderoso capital. Empresas ganham, trabalhadores perdem e com eles suas famílias, boa parte da população.
 
Enganaram seus representantes, sim, dos gregos, portugueses, espanhóis, franceses e dos demais pela venda enganosa de programas econômicos de ajuste salvadores das pátrias. Como o interino Temer internam-se os mesmos princípios e ações nos seus 180 dias de experiência como presidente não eleito pelo povo.
 
Mas os representantes europeus não se valeram de suas propagandas enganosas para provocarem a destituição de quem quer que seja. Sobrou um mínimo de vergonha e lucidez política para ainda defenderem e hastearem bandeiras rotas de democracia.
 
Em especial no caso grego, o então presidente Tsipras chamou ele mesmo por nova eleição presidencial diante da imposição pela Troika de um programa draconiano de ajuste econômico. Quis ouvir seu povo diretamente, não seus representantes legislativos. Não foi preciso que o parlamento grego criasse uma artimanha política qualquer para ameaça-lo ou retira-lo do poder como ocorreu aqui no planalto central.
 
O que de fato iguala nossa republiqueta de bananas às repúblicas europeias é a cartilha econômica neoliberal. Esta sim que, ao fim e ao cabo, expressa a derrocada da democracia na prática por envenenar o tecido econômico e retirar mais uma vez do ganha pão do trabalho os frutos para serem acumulados pelo capital. Ou como diria Thomas Piketty, aumentar mais ainda os ganhos do 1% em detrimento dos restantes 99%.
 
Comentarista político e diretor do grupo de pressão inglês Compass, Neal Lawson, afirma ver aquique no continente europeu a crença na social democracia, segundo a qual um partido possa através do estado criar as bases que favoreçam os interesses do trabalho sobre o capital, está à morte como prática política. Acredita que a social democracia venha a se juntar ao comunismo somente como um termo de relevância histórica.
 
Há uma urgente relevância histórica, no entanto, prestes a ocupar o vazio da democracia brasileira e da social democracia europeia. As manifestações populares arregaçam as mangas e partem para a tomada das ruas como espaço público de suas reivindicações e lutas políticas.
 
Não as manifestações de apoio irrestrito aos políticos antidemocráticos, como se viu desde a eleição e posse da Presidenta até seu afastamento. Essas manifestações não mudam nada, não avançam a democracia, não hasteiam a bandeira das lutas e conquistas sociais. Apenas apoiam suas vantagens já adquiridas e rechaçam as conquistas sociais dos mais pobres.
 
Mesmo nos EUA, considerado o país mais afluente e democrático do mundo, manifestações públicas tomaram corpo com o movimento Occupy Wall Street e agora no apoio sistemático ao candidato anti-neoliberal à presidência, Bernie Sanders. Inquietações políticas variadas ocorrem igualmente nas ruas europeias.
 
Embora seja humanamente trágica a contradição entre a tomada avassaladora do neoliberalismo nas economias dos continentes e as manifestações de inúmeros grupos dos respectivos povos em direção a direitos sociais melhores e perenes, até mesmo básicos, o quadro de crise é digno de priorização, avaliação e enfrentamento.
 
O avanço das garras do capital sobre os necessários ganhos do trabalho demonstra no fundo a ansiedade daquele em ocupar espaço antes de um provável recuo futuro. Risco e oportunidade na crise servem tanto para o capital quanto para o trabalho. Se este souber aglutinar suas sabedoria, força e energia tem tudo para reconquistar espaços perdidos e ganhar outros, hoje capitalizados. É questão de tempo, tática e estratégia. E união entre visões politicas diferentes.
 
A própria quadra brasileira de democracia sem democratas enseja uma reação por igual das ruas. Até mesmo para aqueles que apostaram na queda da Presidenta, quando verão que o autoritarismo político, a restrição às liberdades individuais, a falta total de criatividade educacional, cultural e ambiental, e o retrocesso econômico e social, fazem parte do receituário do grupo do governante de plantão.
 
O segundo mandato da Presidenta não começou nem andou bem, não por sua decisão pessoal, tampouco ministerial, ela não pode governar com o Congresso nas mãos de maioria denunciada ou com processos já formados na Justiça e STF. Suas propostas ali encaminhadas eram sufocadas, além de ver em seu lugar outras para derrubar suas pretensões.
 
Os mesmos que não a deixaram governar, a afastaram. Para por o que em seu lugar? Outro condenado por ficha suja. Golpista que retirou seu partido do apoio ao governo mas lá ficou como figurante à espera do golpe final.
 
O momento é de reflexão, redefinição de atuações, manifestações às ruas. Que possamos refundar nossa democracia com verdadeiros democratas, não com oportunistas de ocasião, descompromissados políticos, mercadores do templo.
 
*colaborador da Carta Maior


Créditos da foto: José Cruz / Agência Brasil
 
Fonte: Carta Maior

Nenhum comentário:

Postar um comentário