O resgate secreto de Giocondo Dias
Na última parte de sua entrevista, José Salles explica como conseguiu retirar Giocondo Dias do país após o cerco dos militares e conta detalhes de reunião histórica do Comitê Central do PCB
Atualizada às 22h25
Opera Mundi publica, neste domingo, a última parte de uma longa entrevista concedida, em janeiro de 2015, pelo militante do PCB José de Albuquerque Salles, para um projeto em andamento de um livro. Na primeira parte, Salles falou sobre a conjuntura política por volta de 1964, quando Jango foi derrubado. Na segunda, Salles comentou o processo de estruturação da repressão durante o regime militar e avaliou como disputas políticas internas atrapalharam a organização do partido na resistência contra a ditadura. Agora, ele conta como conseguiu retirar o militante Giocondo Dias do país. Além disso, Salles escreveu um artigo, que acompanha esta entrevista, chamado "Apontamentos para a memória do Partidão".
Opera Mundi publica, neste domingo, a última parte de uma longa entrevista concedida, em janeiro de 2015, pelo militante do PCB José de Albuquerque Salles, para um projeto em andamento de um livro. Na primeira parte, Salles falou sobre a conjuntura política por volta de 1964, quando Jango foi derrubado. Na segunda, Salles comentou o processo de estruturação da repressão durante o regime militar e avaliou como disputas políticas internas atrapalharam a organização do partido na resistência contra a ditadura. Agora, ele conta como conseguiu retirar o militante Giocondo Dias do país. Além disso, Salles escreveu um artigo, que acompanha esta entrevista, chamado "Apontamentos para a memória do Partidão".
“Tenho uma carta aqui, para um amigo, um conterrâneo baiano”, disse o homem, anônimo, para o alfaiate. O encontro surpresa aconteceu em sua pequena loja , localizada em Madureira, no subúrbio do Rio. Ele negou prontamente conhecer a pessoa procurada. Sem discutir ou apresentar outro argumento, o visitante desconhecido insistiu com elegância. “Tudo bem. Deixarei a carta aqui. Não se aborreça, não”. E foi embora.
Naquele ano de 1975, o Brasil vivia o período mais duro de repressão contra o Partido Comunista Brasileiro (PCB), chamado à época de Partidão. Neste clima de terror iminente, de linha dura da ditadura, qualquer palavra dita da maneira errada pelo homem que carregava a carta poderia assustar o alfaiate e encerrar a conversa antes da hora. Sem ligação com nenhum partido ou envolvimento com política, o alfaiate de Madureira não se arriscaria a receber dentro de casa o desconhecido.
José Salles: Apontamentos para a memória do Partidão
A história começara antes, na França, quando o o homem anônimo recebeu as instruções de como proceder. “Eu pedi pra esse francês - que eu esqueço o nome, sei que ele morava na Ilha de Saint Louis: ‘Olhe, não diga claramente. Se você dizer claramente, o cara vai te mandar embora’”, conta José de Albuquerque Salles, integrante do Comitê Central do PCB, que escreveu a carta e sugeriu o modo de ela ser entregue em Madureira.
A entrega do documento era parte do plano de resgate de Giocondo Dias, militante comunista desde os anos 1930 e uma das principais lideranças do PCB à época, que conseguira se refugiar no subúrbio carioca, isolado dos demais companheiros. Após a queda das gráficas e de quase todos os membros da Direção no Brasil, o cerco militar se aproximava de Giocondo, e sua morte era um risco iminente.
Fora do Brasil, Salles tentava localizar o amigo e companheiro de militância.
“Eu me lembro que nós tomamos a decisão de pegá-lo. Não foi decisão da direção não”, explica Salles. “Eu tenho uma opinião muito elogiosa sobre o Dias, sobre a capacidade política dele. E éramos muito amigos. Pesou a valorização política e eu disse: então vou buscar!"
Do exílio, onde dividia sua morada entre as cidades de Moscou e Paris, Salles planejava encontrar Dias no Brasil, convencê-lo da fuga e, por meio de uma fronteira, retirá-lo. Para aumentar a segurança da ação, a operação de resgate era secreta, sem participação ou apoio estrutural do PCB. A ajuda veio apenas do Partido Comunista Soviético que, além de fornecer recursos financeiros, mobilizou o Partido Comunista Argentino para apoiar a operação.
“Minha ideia geral era localizá-lo", conta Salles. Como não sabia exatamente onde ele estava e qual era a segurança do apoio com que Dias contava, Salles planejou um recuo recuo para outro lugar. Não era possível contar com o partido no Brasil, e era preciso tirá-lo do Brasil, pela fronteira.
Reprodução/YouTube
Salles conseguiu retirar Giocondo Dias do país em meio à ditadura militar
Salles conseguiu retirar Giocondo Dias do país em meio à ditadura militar
Encontrar o paradeiro de Giocondo no período de clandestinidade, no entanto, não era fácil. Uma das estratégias para pesquisa, à distância, era enviar mensageiros "civis", sem participação na organização partidária, com cartas endereçadas para pessoas-chave, com quem Dias mantinha amizade ou outro tipo de relação. A ideia de procurar o alfaiate, que não tinha qualquer ligação com o PCB, veio de Armênio Guedes, dirigente do Partido, que lembrou da amizade de Dias com o costureiro do subúrbio carioca.
“O Armênio, que era muito amigo dele [Giocondo Dias], me disse: ‘olha, talvez ele esteja com o alfaiate em Madureira’. Disse que era muito amigo dele e tal”, conta Salles. “Ele [Giocondo Dias] teve a habilidade de saltar para algum tipo de recuo não vinculado à organização partidária. Tinha que ser artesanal, fora dos circuitos que podiam estar contaminados. Ele teve essa inteligência”, completa.
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A carta foi escrita pelo próprio Salles, com informações que só poderiam ser reconhecidas por Dias, e deixada com o alfaiate em agosto de 1975. A resposta chegou em Paris, na França, em janeiro de 1976, por meio de uma caixa postal via caixa postal, método que ampliava a segurança das trocas.
A carta-resposta chegou às mãos de Salles, que estava em Moscou para uma reunião de cúpula do PCB, por meio do hoje senador paulista Aloysio Nunes (PSDB-SP). Atualmente um dos principais quadros do campo conservador da política brasileira, naquele momento Nunes era um militante comunista de absoluta confiança dos líderes do partido.
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“Ele pegou um avião levando a carta para mim em Moscou, em janeiro de 76. Eu me lembro da Praça Vermelha, num frio danado. E o Aloysio com sapato de sola comum, brasileiro, morrendo de frio. Ele era muito engraçado, muito espirituoso. Tá numa direita doida, né? Mas éramos muito amigos. Ele foi casado com uma prima minha. Chegamos a morar juntos em Paris”, conta Salles.
Localizado, Dias foi informado sobre as intenções de retirá-lo do país para garantia de sua própria segurança, e topou sair clandestinamente do Brasil. Por solicitação dos soviéticos, os comunistas argentinos estavam organizados para fazer todo o esforço necessário ao sucesso da operação.
“Não discutiram, não sugeriram, não propuseram. Foram extremamente profissionais", lembra Salles. "Aí eu fui para lá, fiquei três meses. Fevereiro, Março e Abril, quando os argentinos me deram um casal, que também não tinha militância política, já de certa idade". Esse casal teria a missão de pegar Dias no Rio de Janeiro e levá-lo à Argentina, que ia entrar em um carrão e ir até o Rio, através da Zulma [Taveiros Guimarães], irmã do Albertinho [Alberto Passos Guimarães Filho]”, relata.
Segundo Salles, praticamente todos que participaram no resgate o fizeram mesmo sem nunca terem visto Dias antes, apenas por amor à causa, sem pedirem remuneração alguma pela participação. O dinheiro enviado pelos soviéticos foi usado, entre outras operações, para a compra de um Ford Falcon na Argentina. O casal foi ao Rio de Janeiro com o veículo. Na capital fluminense, com apoio de Zulma, encontraram Dias que, com um documento argentino falso, conseguiu passar pela fronteira do Brasil no retorno do casal para solo portenho.
“Ele chegou fraco, magrinho. Contente de ter sobrevivido, mas tenso, nervoso. Porque ele sabia que tinha responsabilidade nas quedas. E não sabia como a direção ia tratar ele. Conversamos um pouco. Quando eu volto atrás, me arrependo de não ter conversado mais, ter uma postura mais calorosa”, lamenta.
Da Argentina, Salles e Dias foram para Assunção, no Paraguai. De lá, pegaram um avião para Santa Cruz de La Sierra, na Bolívia. Em outro avião, foram para Quito, no Equador, onde passaram a noite. No dia seguinte, um avião da Air France os levou para a cidade de Genebra, na Suiça, onde encontraram Armênio Guedes e Zuleika Alambert, dirigentes comunistas que já estavam exilados.
A primeira reação dos companheiros – os quais sequer sabiam do resgate – com o sucesso da operação foi de alegria. Fora do país, Dias não corria mais risco de morte.
Em reunião realizada em Moscou após o resgate, influenciado por Luís Carlos Prestes, o Comitê Central chegou a abordar a possível aplicação de uma punição contra Dias por conta da queda da maior parte dos integrantes do Comitê Central. Alguns integrantes da cúpula comunista responsabilizavam Dias pelo ocorrido. Salles se opôs. “Resolvi não apoiar isso", lembra. Na sua avaliação, um porcesso do gênero poderia acabar com Dias politicamente. "Seria injusto com ele.”
Giocondo Dias, o Cabo Vermelho, foi uma das vozes contra a luta armada no Comitê Central do PCB (Foto: PCB.org)
A decisão de Salles também era uma estratégia de defesa política. Além de não querer destruir seu amigo, ele avaliou que a eventual saída de Dias do Comitê Central fortaleceria o grupo que se articulava em torno de Prestes. Para Salles, isso deixaria o Comitê Central "totalmente na mão de Prestes e do grupo dele."
Caso Salles
O sucesso da operação secreta para o resgate de Dias projetou o aumento da força política de Salles dentro do Comitê Central. No final de 1978, foi eleito Coordenador da Comissão Executiva do Comitê Central do partido. Após a eleição, problemas de saúde e uma pressão arterial que chegou a 18x16 o forçaram a tirar alguns dias de férias, com sua companheira, para descansar no México, onde estavam instalados sua mãe e seu irmão.
Antes disso, deixou, entre as orientações aos partidários com quem trabalhava para que mantivessem contato com Victória Monofi. Filha de um importante importador de grãos argentino, a jovem era amiga de Marieta, noiva de Salles. Na época, ele pretendia articular, com o pai da moça, a exportação de grãos da Argentina para países socialistas.
“A Victória chegou e pediu um dinheiro. O que eu poderia até emprestar. Ao lado disso, ela pediu um passaporte. Isso foi um absurdo. Ela não falou comigo e eu não pedi para ninguém dar passaporte. Era um negócio extremamente restrito”, conta Salles.
As acusações que recaíram sobre a amiga da noiva de Salles eram de que a jovem argentina havia pedido dinheiro e um passaporte falso. Além disso, alguns líderes do PCB acreditavam na possibilidade de que Victória estivesse envolvida com drogas. Nenhuma das suspeitas foi confirmada.
“Nunca ninguém a viu (Victória) portando ou usando drogas. Nunca ninguém do CC ou que eu conheça, disse isto. Nunca foi presa. No processo de discussão, ninguém disse isto. O pessoal do Prestes disse que ela lhes tinha dito que tinha a ver com drogas. Não sou grande conhecedor da moça, Não a propus para coisa nenhuma e não posso ser responsabilizado por qualquer miséria que ela tenha dito. Em nenhum momento, no caso Salles, ninguém deu a informação que a tinha visto com drogas, usando ou portando, ou vendendo. Nem que ela tenha sido presa; nem que talvez tenha acontecido isto”, explica Salles.
Luís Carlos Prestes, ao lado de sua filha, Anita Prestes, e Marly Viana e seu marido, o espanhol Ramon Peña, abriram guerra contra Salles. Sob a acusação de que ele envolvera-se com traficantes de drogas, reuniram o Comitê Central em fins de 1978 ou início de 1979 (há versões contraditórias sobre a data), em Praga (Hungria), para, entre outras decisões, propor a investigação do caso e discutir a expulsão de Salles do PCB.
Anita, Prestes e a Marly foram para a reunião do Comitê Central com duas propostas. Uma era expulsar Salles do Partido. A outra, substituir o Comitê Central por uma comissão até o próximo Congresso, com membros indicados pelo próprio Prestes. As propostas foram negada por ampla maioria e, por 17 votos a 4, o Comitê Central votou contra a saída de Salles.
“Nunca tive amigos que tenham a mais leve proximidade com drogas, nunca usei, e nunca nem vi , em minha vida. Foi eleita uma comissão no CC para investigar, e fui absolvido, pois nem a mais leve acusação foi comprovada”, destaca Salles. Sem punições formais, o resultado concreto daquela reunião, no entanto, acabou se materializando em uma dura crítica da cúpula de dirigentes sobre a atuação de Salles na direção do Partido. O episódio freou sua ascensão política dentro do PCB.
Após estar reunião do Comitê Central e o período no cargo de Coordenador da Comissão Executiva, José Salles não mais se candidatou a nenhum cargo de direção dentro do Partido. Continuou sendo reeleito membro do Comitê Central por quase dez anos, até meados da década de 80. “Passei à condição que o Armênio Guedes chamava de comunista avulso, sem partido”, conta. Salles passou um tempo a trabalho na Rússia, cursou a Faculdade de Relações Internacionais das Belas Artes e, na França, trabalhou no seu doutorado, que não concluiu. Desde então, diz conversar muito sobre política com seus amigos, sejam comunistas ou não.
Fonte: Opera Mundi
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