Não se pode pedir à graxa que detenha a
engrenagem. Cunha, Temer, Serra são lubrificações constitutivas do colapso
global entre nós.
Saul Leblon
O mudo ruge.
Como o vulcão prestes a explodir, sinais
de alerta irrompem no noticiário de diferentes pontos do planeta.
A violência e o espaçamento típicos das
saturações não deixam muita margem a dúvidas.
Placas tectônicas aceleram a rota de
colisão; rolos de fumaça e estremecimentos da crosta prenunciam a erupção do
magma da história.
Brexit, Trump, Dallas, Nice, Turquia,
Luisiana, Berlim...
Os últimos vinte e dois dias foram
exemplares: a globalização neoliberal entrou no modo esgotamento.
Cada vez mais, os ‘colaterais’ da
supremacia dos mercados se exprimem em rupturas, vítimas e conflitos que se
acumulam no congestionado espaço das manchetes fumegantes.
A larga contabilidade da morte
anestesia, mas a aleatoriedade das geografias e dos atores encerra uma
regularidade reveladora.
Vive-se um tempo em que a descoordenação
antes de ser o imprevisto é a norma deliberada.
Escavada e burilada, ela compõe o altar
da religião sem Meca nem ofício ou santo, exceto a eternidade do fluxo
contínuo, ubíquo, indiviso: a circulação do capital e da mercadoria.
São elas as únicas liberdades de fato
soberanas impulsionadas pelo neoliberalismo globalizado, desde os anos 70 do
século passado.
Perímetros de soberania nacional foram
progressivamente calafetados pelo agigantamento da gigantesca massa de forças
assim potencializadas.
Espaços de mediação nos quais esse
ectoplasma pudesse ser transmudado em
inclusão, igualdade, estabilidade e civilização foram aplastados.
A atrofia descredenciou Estados e
governos.
Em seguida desossou partidos e projetos
históricos.
Desmoralizou a democracia
representativa, desdenhando da urna e das escolhas e agendas do voto
majoritário.
Por fim, desqualificou a própria
política como fórum de mediação dos conflitos da sociedade e do
desenvolvimento.
Um cemitério de administrações zumbis e
de Estados ornamentais (para a sociedade) emergiu vigiado pela engrenagem dos
fundos sem rosto, dos capitais sem pátria, do dinheiro chantagista.
A pedra angular de toda a vacuidade,
para recorrer a um oximoro destes tempos paradoxais, é a liberação da conta de
capitais.
A partir dela, a lógica neoliberal
promove o sequestro ou a rendição obsequiosa dos instrumentos endógenos de
comando da sociedade sobre o seu desenvolvimento.
A opressão, todavia, surfa em um poder
de sedução gigantesco.
Quem há de ser contra a liberdade de
trocas, de pessoas e de recursos estendida a todo o planeta?
Não se trata de retórica.
O crescimento do comércio global nas
últimas décadas suplantou de longe a taxa média do PIB mundial.
Transformou-se na grande e irresistível
cenoura de adesão ao mainstream do laissez faire, laissez passer repaginado
e mundializado.
Enquanto o PIB mundial cresceu em média
3,1%, entre 1985 e 2011, a taxa anual de crescimento do comércio internacional
foi de 5,6%. (OMC, 2013).
Entre os países do G-20, apenas
Indonésia e África do Sul registraram diminuição do índice de
internacionalização comercial nesse período.
Em tese, o dinamismo das exportações
eleva o nível de internacionalização das economias nacionais.
Oxigena cadeias de produção.
Revoluciona padrões de tecnologia,
consumo e produtividade.
Faz mais.
Em 2009, pela primeira vez, o comércio
mundial de bens intermediários (insumos industriais e serviços) atingiu valor
superior ao das exportações de bens finais (51% e 49%, respectivamente).
Mas aqui a panaceia teoricamente boa
para todos já revela suas trincas no movimento real da história.
A participação das empresas
multinacionais no comércio internacional disparou nas últimas décadas.
Segundo a Unctad, exportações globais totalizaram aproximadamente US$
19 trilhões em 2010.
Megacorporações globais responderam por
80% desse total, US$ 15 trilhões.
Só o comércio intrafirmas foi
responsável por aproximadamente 33% das transações.
A bordo dessa esquadra de bandeiras
poderosas, o volume do comércio internacional de bens e serviços cresceu, em
média, 7,3% ao ano, entre 2002/2007.
Muito acima do desempenho do PIB, com
aumento médio de 4,2 no período.
A dominância das manufaturas e serviços
na composição dos fluxos, favorecida pela derrubada das tarifas e de
legislações protecionistas, fez o valor das exportações mundiais desses itens
crescer 264% entre 1990-2008.
De US$ 4,3 trilhões para U$15,3
trilhões.
Os circuitos de produção e consumo
extravasaram as fronteiras tradicionais na nova planta manufatureira
globalizada, fortemente concentrada nas mãos de grandes corporações.
O poder de interferência e indução dos
Estados e das urnas nas políticas nacionais de desenvolvimento sofreria desde
então apreciável processo corrosivo.
Mais complicado que isso.
Embora notável, a fermentação do
comércio mundial desde a década de 1980 ficou ainda muito aquém do poder
ordenador concentrado nas mãos do verdadeiro motor sistêmico da globalização
neoliberal: Os fluxos financeiros internacionais.
Eles equivalem hoje a cerca de 40 vezes
o valor das trocas comerciais.
Não há poder econômico ou político que
se ombreie a isso até o momento.
Trata-se de um poder imperial ubíquo.
É ele que pavimenta as rotas, alarga
portas, arromba trancas, subordina nações, adestra governos, submete agendas,
domestica partidos, abastarda programas, desmoraliza lideranças, derruba
recalcitrantes, dita ajustes, fiscaliza austeridades, calibra arrochos.
Instaura, enfim, a endogamia funcional
entre o interesse financeiro e o domínio comercial dos mares e dos continentes.
Em quarenta anos de supremacia da
desregulação econômica não surgiram instituições dotadas de poder e abrangência
capaz de contraditar a lógica concentradora e excludente para colocá-la a
serviço da civilização e do bem-estar social dos povos e nações.
O efeito dominó, ao contrário, derrubou,
mastigou e cuspiu tudo o que parecia sólido ou prometia sê-lo.
No chão mole viceja o sentimento de
frustração que se confirma no rastro de Estados rendidos e de sobras humanas dessa lapidação épica.
Desfilam aí os desempregados, os
desterrados, os deslocados, os desesperados, os descrentes, os desvalidos, os
despossuídos, os devorados, os desacorçoados.
‘Loosers’ de todas as origens.
Expelidos pela liquefação de nações e
valores das revoluções burguesas do século XIX, e dos ideais socialistas,
libertários e igualitários do século XX, compõem o gigantesco orfanato da
desesperança e, cada vez mais, como se vê, do desespero.
A Europa tem hoje 8 milhões de
imigrantes sem papéis; 120 milhões de pobres e 27 milhões de desempregados.
Nos EUA, antes ainda da crise de 2008,
90% dos lares viram sua renda deslizar em plano inclinado. Apenas 1% das
famílias ascendeu ao paraíso prometido pela retórica neoliberal do Estado
mínimo com benefício máximo, atingindo faixa de ingressos superior a meio
milhão de dólares/ano.
Mais de 20% dos menores norte-americanos
vivem atualmente em condições de pobreza.
Na sociedade afluente a única coisa que
de fato flui é a desigualdade, que em cem anos nunca foi tão aguda quanto
agora.
Pela primeira vez, cristaliza-se no
mundo rico o mesmo sentimento das periferias nas nações pobres: uma geração de
jovens tem a correta percepção de que dificilmente repetirá a faixa de renda
dos pais, se é que conseguirá viver com a sua própria um dia.
O conjunto fortalece o diagnóstico
obscurantista que projeta a causa da pobreza nacional na presença ‘invasiva’ da
pobreza de idioma estrangeiro.
Não precisa muito para dar a ignição a
movimentos extremista xenófobos e populistas, que por sua vez liberam a
demência terrorista.
Não necessariamente nessa ordem, mas com
essa octanagem explosiva.
O noticiário conservador mimetiza a
desordem ajudando a construí-la.
Ao sonegar os antecedentes da tormenta,
estica-se o elástico da gigantesca armadilha histórica em que vivemos.
Uma etapa irreversível do desenvolvimento das
forças produtivas entrou em colapso sem dispor de uma arregimentação política
capaz de promover a sua mutação a serviço da civilização humana.
A nova Bastilha global de interdições e chantagens
aguarda o seu 14 de Julho.
Na sala de espera a história encena o
enredo do caos.
Esse que congestiona as manchetes e escaladas
noticiosas diuturnamente.
O caos é a desautorização virulenta da
essência da democracia.
A Queda da Bastilha em 14 de Julho de
1789 reinventou o futuro da sociedade humana.
E o fez, no dizer instigante do filósofo
Jacques Rancière, ao suprimir as distinções entre a filiação divina, ou
fiduciária, do rei e da realeza, de um lado, e a vala comum dos mortais, de
outro.
Nasceu dessa ruptura um conceito ainda
hoje rechaçado pela riqueza.
A ideia de que a igualdade não pode ser
um alvo remoto, mas deve ser um ponto de partida.
A construção de um futuro comum requer a
igualdade dos atores desde o presente.
Onde: no âmbito de uma democracia
efetiva, em que o poder emane do povo, para o povo, pelo povo.
A guilhotina, de um lado - mas também os
Direitos do Homem e do Cidadão, proclamados cerca de um mês depois da derrubada
da Bastilha, em 26 de agosto de 1789 - cuidaria de lavrar essa equivalência em
cabeças e nas cabeças.
É tudo o que a globalização nega
esfericamente à sociedade e à política hoje.
De forma violenta ela suprime a
igualdade no presente e sonega aos povos os meios para sonhar com ela no
futuro.
O fim da história como o fim da utopia.
Mas a equação da eternidade não fecha.
A Zona do Euro enfrenta seu oitavo ano
entre a deflação e a recessão.
A Itália tem desemprego recorde.
Alemanha e França assistem a uma espiral
de xenofobia.
Grécia tem 59% da juventude fora do
mercado.
Portugal encara uns 500 mil
desempregados.
A
Espanha devastou sua rede de proteção social em oito anos de concessões à
austeridade e ainda deve mais um corte de dez bilhões de euros, avisa a
troika...
Assim por diante.
Foi preciso que um economista moderado,
Thomas Piketty, coligisse uma enciclopédia estatística do avanço rentista sobre
a riqueza global para que o tema da desigualdade merecesse algum espaço – fugaz,
diga-se — no debate econômico e midiático do nosso tempo.
A ocultação da criatura pretende
esconder o colapso do criador.
A essência da desordem neoliberal que se
evidencia em contradições nos seus próprios termos.
Crise de superprodução de capitais
especulativos, associada a juros negativos (o Brasil é uma excrescência da
regra), sobras humanas com anemia da demanda e excesso de capacidade ociosa.
É sobre essa base de placas tectônicas
em movimento, a emitir sinais de uma explosão próxima, que o Brasil se depara
com a delicada transição de um ciclo econômico.
A sociedade precisa repactuar as bases
de seu desenvolvimento.
Mas um golpe de Estado em curso não
apenas ignora os sinais de fumaça ao redor: ele é um item constitutivo das
manifestações mórbidas em espiral ascendente.
Não se pode pedir à graxa que detenha a
engrenagem.
Cunha, Temer, Serra, assemelhados e
homólogos na mídia são lubrificações constitutivas do colapso global no plano
local.
Assim como a eutanásia do rentista, a
derrota desse círculo de besuntadores do mercado requer circunstâncias
indutoras bem mais contundentes do que simplesmente denunciar a sua natureza.
A derrubada da Bastilha hoje consiste em
dotar a democracia de um poder regulador
dos capitais e do investimento para que possa exercer seu papel: ser uma força
antagônica às tendências regressivas, abraçadas, entre outros, pela agenda de
arrocho do golpe brasileiro.
A consciência desse confronto é um dado
fundamental para renovar a ação política em nosso tempo.
Quando a economia se avoca um templo
sagrado, dotado de leis próprias, revestida de esférica coerência endógena,
avessa às ruas e às urnas, o que sobra à democracia se não romper?
Os que, como Serra, incitavam o governo
Lula a jogar o país ao mar na crise de 2008 agora retrucam que o custo de não
tê-lo afogado na hora certa acarretou ‘custos insustentáveis’.
Que precisam ser extirpados do
orçamento.
Prescreve-se um caldo de afogamento no
capítulo dos direitos sociais da Carta Cidadã.
Na prática, o teto de gastos preconizado fará
regredir a fatia dos pobres na receita futura.
A noção da igualdade como ponto de
partida modelador do desenvolvimento está com a cabeça na guilhotina da
restauração da Bastilha brasileira.
As escolhas intrínsecas a uma
repactuação do desenvolvimento no século XXI não são singelas.
Nada que se harmonize do dia para a
noite.
É crucial, assim, pactuar linhas de
passagem feitas de metas, ganhos, perdas, salvaguardas e prazos.
Mas há um requisito para isso ter algum
peso num tempo que estrebucha e ameaça levar as nações junto: tirar a economia
do altar sagrado da ortodoxia e expô-la a uma repactuação democrática que
mobilize toda a cidadania.
www.cartamaior.com.br 19/07/2016
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