País tem
direito de saber quem é Santo, quem é Careca
Paulo Moreira Leite
Embora já tenha chegado a sua 35ª fase,
a Operação Lava Jato não conseguiu livrar-se da acusação de trabalhar de modo
seletivo, reproduzindo um traço
historicamente nefasto da Justiça brasileira, onde o Estado "é usado como
propriedade do grupo social que o controla", nas palavras da professora
Maria Sylvia de Carvalho Franco, no estudo Homens
Livres na Ordem Escravocrata.
Neste universo, que descreve o Brasil
anterior a abolição da escravatura, onde o grilhão, a chibata e o pelourinho
eram instrumentos banais de manutenção da ordem para os habitantes da senzala,
o "aparelho governamental nada mais é do que parte do sistema de poder
desse grupo, um elemento para o qual se volta e utiliza sempre que as
circunstâncias o indiquem como o meio mais adequado."
Dias antes de Guido Mantega ter sido
forçado a deixar o centro cirúrgico do Alberto Einstein, onde sua mulher era
operada de um câncer, para cumprir um mandato de prisão, descobriu-se um fato
ao mesmo tempo chocante e instrutivo.
A Justiça Federal foi incapaz de
descobrir o endereço residencial de Pimenta da Veiga, ministro das Comunicações
do governo Fernando Henrique Cardoso,
para lhe entregar uma notificação relativa a AP 470, o Mensalão (Rubens
Valente, Folha de S. Paulo, 15/9/2016). Não se trata de um caso com muitas
dúvidas. Em 2005 a Polícia Federal encontrou quatro cheques do esquema de
Marcos Valério, no valor de R$ 75.000 cada um, na conta do ex-ministro. Pimenta
alegou que eram pagamentos por honorários que exerceu num serviço como
advogado. Não mostrou documentos nem apresentou casos concretos em que atuou. O
próprio Valério alegou, na CPI dos Correios, que havia ajudado Pimenta a pagar
a conta do tratamento de saúde de um filho. Não convenceu. Mesmo assim, o caso
já dura dez anos, o que configura outra ironia de longo curso.
Quando resolveu procurar Henrique
Pizzolato, o dirigente do PT condenado a 12 anos e sete meses no STF, o
Ministério Público fez investigações no Paraguai, Argentina e Espanha, até que
chegou ao interior da Itália para localizá-lo na casa de um sobrinho. Enfrentou
uma disputa na Justiça daquele país para garantir que Pizzolato fosse trazido
para cumprir pena no Brasil, embora tivesse passaporte italiano. A principal
denúncia contra o antigo diretor do Banco do Brasil envolve um pagamento de R$
326.000, quantia 10% superior aos R$ 300.000 de Pimenta. O detalhe é que
Pizzolato sempre alegou que o dinheiro não era para si, mas para o PT no Rio de
Janeiro. Verdade ou não, os R$ 326.000 nunca surgiram em sua conta nem foram
confirmados pela quebra de seu sigilo bancário ou fiscal.
Ao contrário do que ocorreu com o
dinheiro entregue a Pizzolato, os recursos destinados a Pimenta foram pagos em
quatro prestações e descobertos pelo delegado Luiz Fernando Zampronha, da
Polícia Federal, e mais tarde arquivados no inquérito 2474 -- aquele que o
Supremo não examinou quando julgava a AP 470.
Mesmo considerando antecedentes tão
notáveis sobre o caráter seletivo das investigações que envolvem políticos
brasileiros, a representação da Polícia Federal que pediu a prisão de Antonio
Pallocci, Branislav Kontic e Juscelino Dourado causa um choque inegável. Isso
porque a leitura das primeiras 30 páginas sobre o esquema de pagamentos
clandestinos do chamado Setor de Operações Estruturadas da Odebrecht, um
departamento destinado a sustentar esquemas políticos, nada informa sobre o
ministro ou o Partido dos Trabalhadores mas é muito revelador sobre o
conhecimento da PF sobre o esquema de corrupção do PSDB paulista.
Na página 13, por exemplo, descreve-se a
partilha de uma propina de 0.9% sobre um investimento de US$ 20,6 bilhões. Na
página 17, uma troca de email entre executivos da Odebrecht deixa claro que
estamos falando da linha 2 do Metrô, um investimento que seria particularmente
rico em denúncias de superfaturamento e gastos suspeitos. Na página 18, surgem
pseudônimos de quem irá receber o dinheiro. Em outra passagem, aparecem iniciais que poderiam identificar empresas envolvidas. Nas páginas
seguintes, surgem várias planilhas, com detalhamento de datas, prazos e
acordos. Na página 36, informa-se que o DGI, sigla usada para designar propina,
pode subir de 5% para 8% em determinada obra. Também se descobre que, além da
linha 2, a linha 4 do metrô entrou na dança. Foi ali, na estação Pinheiros, que
em 2007 ocorreu um acidente trágico, que provocou a morte de sete pessoas,
engolidas por uma cratera. Quando se refere ao consórcio encarregado da obra da
linha 4, um executivo da Odebrecht usa a palavra "vencedor" assim
mesmo, entre aspas, o que chama a atenção durante a leitura, pelo reforço da
ironia. Também se registra na mesma passagem o pagamento de duas parcelas de R$
250.000 destinadas a uma autoridade
identificada como "Santo".
A verdade é que, além de dois vereadores
do PSDB paulistano citados nominalmente, ao lado de quantias relativamente
modestas num contexto de pagamentos
milionários -- R$ 6.000 e R$ 3.000 - não há menção explícita a nenhuma
autoridade de escalão mais alto. São elas que recebem pagamentos de R$ 200.000
ou R$ 250.000 por mês -- por vários meses. Embora José Serra e Geraldo Alckmin
sejam mencionados como suspeitos óbvios por pessoas que conhecem os bastidores
do caso, a verdadeira pergunta consiste em saber por que não se buscou apurar
sua identidade real -- fosse qual fosse. Boatos não resolve. Suspeita que não é
apurada também não. Não há motivo para segredinhos. Os fatos estão descritos em
documentos públicos.
O tempo passa e quem se beneficia é o
acusado, seja quem for. Como acontece com tantos colegas de Pimenta da Veiga no
mensalão PSDB-MG, as acusações acabam prescrevendo.
Durante um bom período, um personagem
conhecido como "Italiano, visto como o protagonista das investigações que
envolvem Antonio Palocci, foi identificado com outro ministro, Guido Mantega.
Após um trabalho de checagem, procurando compatibilizar nome de assessores e
eventos descritos em diversas trocas de mensagem, a Polícia Federal concluiu
que Palocci era o "Italiano." Foi com base nessa visão que fez a
representação e, numa cena indispensável para alimentar o já previsível de
carnaval televisivo, conduziu o ministro para a carceragem da Polícia Federal
em Curitiba.
O problema é que entre as palavras
civismo, virtude que tem sido frequentemente associada a Lava Jato, e cinismo,
palavra comum no vocabulário de seus críticos, a única diferença consiste numa
letra.
Se não há motivo para suspeitas
prematuras nem acusações irresponsáveis, não há razão jurídica aceitável para
se manter na penumbra a identidade de personagens conhecidos como
"Santo" e "Careca" nos e-mails da Odebrecht. Elas devem ser
conhecidas e investigadas, com o mesmo rigor dispensado a Antonio Palocci - a
menos que, aceitando a troca do "v" pelo "n", aceite-se que
há uma seleção política para alvos do Judiciário. Neste caso, é preciso admitir
que não estamos investigando nem a corrupção nem a troca de favores. Mas um
partido e seus dirigentes, o que só é aceitável sob ditaduras. Não se quer justiça, mas política, colocando
o estado "a serviço do grupo social que o controla," como escreve
Maria Sylvia de Carvalho Franco, referindo-se às instituições que mantinham a
escravidão.
A tragédia da linha 4, na qual sete
pessoas perderam a vida, só reforça a
necessidade de um esclarecimento completo a respeito da identidade e do papel
de "Santo" e "Careca."
A assumida intimidade de Fernando
Henrique com Emílio Odebrecht, principal acionista do grupo, muito mais
influente naquele período, que é descrita com tanta intimidade no Diário da
Presidência, é mais uma razão para isso. Como se aprende pela leitura, FHC
chegou a imaginar que o pai de Marcelo Odebrecht poderia ajudá-lo num programa
de investimentos públicos destinado a redesenhar o capitalismo brasileiro. Está
lá, no volume 1. A mudança do coração da economia sob orientação da Odebrecht.
Entendeu?
A seletividade, sabemos todos, produz
anedotas como uma Justiça que não consegue descobrir o endereço de um antigo
ministro, Pimenta da Veiga. Mas não só.
Roberto Brant, que foi ministro da
Previdência no governo Fernando Henrique Cardoso, também foi apanhado na rede
de Marcos Valério. Recebeu um cheque de R$ 100.000. Disse que era contribuição
para sua campanha. Acredito sinceramente que, como tantos, estava falando a
verdade. Não importa. O fato é que seu destino foi outro. Renunciou ao mandato
e ficou livre, enquanto parlamentares do PT, na mesma situação, marchavam no
cadafalso da AP 470.
Na nova vida, fora de Brasília, Brant
não teve de escapar de oficiais da Justiça. Pelo contrário. Um belo dia, lhe
chegou o convite para uma missão nobre. Preparar a versão final de um projeto
político de mudanças para o país. Foi assim que, uma década depois de ser apanhado
com um cheque de Marcos Valério, tornou-se o autor do texto final de um
documento chamado Ponte para o Futuro, projeto que deu o esqueleto ideológico
para o golpe de 31 de agosto.
Deu para entender como tudo se liga com
tudo?
www.brasil247.com.br 28/09/2016
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