21/10/2016 16:46 - Copyleft
Tatiana CarlottiCarandiru e a cultura da impunidade no Brasil
Documento solicita a abertura de um inquérito sobre a conduta do desembargador que anulou a condenação dos 74 policiais envolvidos no Massacre do Carandiru
Vinte e cinco entidades de direitos humanos e mais de trinta personalidades apresentaram, na última terça-feira (18.10.2016), uma reclamação disciplinar contra o desembargador Ivan Sartori, do Tribunal de Justiça de São Paulo.
O documento (leia a íntegra), encaminhado à ministra Carmem Lúcia, presidente do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), solicita a abertura de um inquérito sobre a conduta do desembargador, durante o julgamento que anulou a condenação dos 74 policiais militares envolvidos no Massacre do Carandiru.
Em 2 de outubro de 1992, o episódio levou à morte 111 pessoas nas dependências da Casa de Detenção de São Paulo. Duas décadas depois, ninguém foi preso. O governo de Luiz Antônio Fleury Filho (1991-1995) sequer foi responsabilizado.
Em 27 de setembro de 2016, atendendo a um recurso dos policiais, a 4ª. Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça anulou o veredicto de outros juris, que condenaram esses policiais. Sartori foi o relator desse julgamento. Além dele, participaram da decisão os desembargadores Camilo Léllis e Edison Brandão.
Apesar do relator defender a absolvição dos policiais, eles deverão ser submetidos a um novo julgamento, no 2° Tribunal do Júri da Capital (TJ-SP, 27.09.2016).
Legítima defesa?
Segundo Sartori, os policiais agiram em legítima defesa: “não houve massacre, houve legítima defesa e cumprimento do processo pela PM”. No texto da reclamação disciplinar, a decisão é considerada “absurda”, dada as provas apresentadas pelas “vítimas, funcionários e técnicos periciais”.
“A legítima defesa não pode ser aplicada para justificar atrocidades como a do Massacre do Carandiru, assim como o Holocausto não pode ser naturalizado como sendo o cumprimento do dever legal instituído pelo Estado nazista”, diz o documento.
Segundo Jessica Morris, diretora do Conectas Direitos Humanos, o argumento vai “contra todas as provas contundentes de que esses 111 presos foram na realidade executados”, entre elas, “tiros pelas costas, homens desarmados, muitos deles ainda em suas camas”.
“A decisão corrobora graves violações de direitos humanos, reforça a impunidade dos crimes cometidos pelo Estado e, também, legitima a violência que pauta a atuação das polícias aqui no Brasil”, aponta.
Jessica foi uma das participantes da coletiva de imprensa sobre a representação disciplinar, ocorrida na última terça-feira (18.10.2016), no Sindicato dos Jornalistas.
Abusos, falta de isonomia e imparcialidade
Na mesa, coordenada pelo ex-ministro Paulo Sérgio Pinheiro (Direitos Humanos), também estavam os advogados André Alcântara e João Paulo Godoy que citaram vários exemplos de “abusos, falta de isonomia e imparcialidade” cometidos pelo desembargador.
Entre eles, a reprodução da fala dos policiais em suas defesas em várias páginas do voto de Sartori. Segundo Alcântara, isso demonstra “uma escolha nítida do desembargador em privilegiar a PM. Tanto que ele chega a dizer que o Carandiru teve a vítima 112, que foi a instituição militar”.
Alcântara destacou, inclusive, a importância da reclamação disciplinar para denunciar as limitações e a atuação política do sistema judiciário brasileiro, que segue aplicando a “lógica de impunidade para alguns setores sociais” e a “da punidade e da criminalização” para os setores mais pobres e desfavorecidos.
Destacando a lentidão na tramitação do processo, ele considerou o desembargador como “uma das figuras dentro do Judiciário que usa o Judiciário como força política para reprimir os pobres e absolver os exterminadores dos pobres”.
“Nós entendemos que o Judiciário é um ator político importante na sociedade e ele deve estar do lado da vida, da pessoa humana. Queremos que o CNJ atue nessa situação para evitar que isso se expanda. Não é só em São Paulo que as coisas são assim”, complementou.
Quebra de decoro
Explicando que a representação não discute o mérito da ação judicial e das apelações, mas foca-se na conduta do desembargador, o advogado Fábio Godoy disse que, em relação à jurisprudência do CNJ, “existem precedentes que afastam magistrados dependendo da conduta deles”.
Ele avaliou, por exemplo, o comportamento do desembargador em entrevistas e nas redes sociais, sempre defendendo PMs e atacando as entidades de direitos humanos e a imprensa. Sartori chegou ao ponto de sugerir que imprensa e entidades estão envolvidas com o crime organizado.
“Existe uma previsão legal, ele não pode fazer o que fez, imputando crimes a figuras essenciais para o sistema de Justiça: como a imprensa para dar publicidade a tudo o que acontece e as entidades de direitos humanos”, destacou o advogado.
Além disso, em decisões anteriores, o próprio Sartori teria defendido que “uma sentença de júri só poderia ser revogada quando as evidências dos autos são manifestamente contrárias à decisão”, o que demonstra uma mudança “repentina de posicionamento”, ponderou Godoy.
Afastamento e aposentadoria compulsória
Por meio dessa reclamação disciplinar, entidades e militantes de direitos humanos solicitam ao CNJ a instalação de um processo legal administrativo disciplinar contra Sartori.
Em caso de dúvida, pedem que seja aberta uma sindicância para apurar a conduta do magistrado e, “tão logo”, se abra esse processo. Também solicitam o afastamento do desembargador de suas atividades:
“A parcialidade do desembargador, descumprindo seu dever profissional, pode ainda influenciar nas decisões dos demais desembargadores na absolvição dos policiais militares no massacre do Carandiru ou trazer consequências para a tramitação adequada que uma grave violação de direitos humanos requer”, afirma o documento.
Eles também pedem a aposentadoria compulsória de Sartori:
“Diante da violação dos princípios da Administração Pública (impessoalidade, moralidade e eficiência) e dos deveres do magistrado, não resta opção a não ser promover a apuração da conduta e a consequente responsabilização do desembargador”.
Estima-se um prazo de 60 dias, para que o órgão se manifeste em relação ao pedido.
Barbárie
Várias entidades e militantes de direitos humanos participaram da coletiva de imprensa no Sindicato dos Jornalistas. Entre eles, José Luís Del Roio que lembrou várias violações de direitos humanos cometidos por policiais: “Se aceitarmos isso, vamos aceitar para sempre os 500 mortos de Maio”.
Ele também citou o caso das ossadas na vala de Perus, descobertas em 1990: “estamos aqui discutindo um caso de 24 anos, o da Vala de Perus tem 26 anos. Não chegamos nem perto de ter um DNA daqueles corpos. Não é possível que a gente não faça uma campanha forte, que a imprensa não reflita essa situação”.
“Nós vivemos em um país bárbaro. Não podemos ser uma grande nação – como devemos ser – se não limitarmos e extirparmos essa barbárie. Enquanto tivermos todo um aparato de justiça que comete sistematicamente violações, por motivos políticos ou por ódio de classe, não seremos uma grande nação”, complementou.
Clique aqui e assistam à integra a coletiva.
O documento (leia a íntegra), encaminhado à ministra Carmem Lúcia, presidente do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), solicita a abertura de um inquérito sobre a conduta do desembargador, durante o julgamento que anulou a condenação dos 74 policiais militares envolvidos no Massacre do Carandiru.
Em 2 de outubro de 1992, o episódio levou à morte 111 pessoas nas dependências da Casa de Detenção de São Paulo. Duas décadas depois, ninguém foi preso. O governo de Luiz Antônio Fleury Filho (1991-1995) sequer foi responsabilizado.
Em 27 de setembro de 2016, atendendo a um recurso dos policiais, a 4ª. Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça anulou o veredicto de outros juris, que condenaram esses policiais. Sartori foi o relator desse julgamento. Além dele, participaram da decisão os desembargadores Camilo Léllis e Edison Brandão.
Apesar do relator defender a absolvição dos policiais, eles deverão ser submetidos a um novo julgamento, no 2° Tribunal do Júri da Capital (TJ-SP, 27.09.2016).
Legítima defesa?
Segundo Sartori, os policiais agiram em legítima defesa: “não houve massacre, houve legítima defesa e cumprimento do processo pela PM”. No texto da reclamação disciplinar, a decisão é considerada “absurda”, dada as provas apresentadas pelas “vítimas, funcionários e técnicos periciais”.
“A legítima defesa não pode ser aplicada para justificar atrocidades como a do Massacre do Carandiru, assim como o Holocausto não pode ser naturalizado como sendo o cumprimento do dever legal instituído pelo Estado nazista”, diz o documento.
Segundo Jessica Morris, diretora do Conectas Direitos Humanos, o argumento vai “contra todas as provas contundentes de que esses 111 presos foram na realidade executados”, entre elas, “tiros pelas costas, homens desarmados, muitos deles ainda em suas camas”.
“A decisão corrobora graves violações de direitos humanos, reforça a impunidade dos crimes cometidos pelo Estado e, também, legitima a violência que pauta a atuação das polícias aqui no Brasil”, aponta.
Jessica foi uma das participantes da coletiva de imprensa sobre a representação disciplinar, ocorrida na última terça-feira (18.10.2016), no Sindicato dos Jornalistas.
Abusos, falta de isonomia e imparcialidade
Na mesa, coordenada pelo ex-ministro Paulo Sérgio Pinheiro (Direitos Humanos), também estavam os advogados André Alcântara e João Paulo Godoy que citaram vários exemplos de “abusos, falta de isonomia e imparcialidade” cometidos pelo desembargador.
Entre eles, a reprodução da fala dos policiais em suas defesas em várias páginas do voto de Sartori. Segundo Alcântara, isso demonstra “uma escolha nítida do desembargador em privilegiar a PM. Tanto que ele chega a dizer que o Carandiru teve a vítima 112, que foi a instituição militar”.
Alcântara destacou, inclusive, a importância da reclamação disciplinar para denunciar as limitações e a atuação política do sistema judiciário brasileiro, que segue aplicando a “lógica de impunidade para alguns setores sociais” e a “da punidade e da criminalização” para os setores mais pobres e desfavorecidos.
Destacando a lentidão na tramitação do processo, ele considerou o desembargador como “uma das figuras dentro do Judiciário que usa o Judiciário como força política para reprimir os pobres e absolver os exterminadores dos pobres”.
“Nós entendemos que o Judiciário é um ator político importante na sociedade e ele deve estar do lado da vida, da pessoa humana. Queremos que o CNJ atue nessa situação para evitar que isso se expanda. Não é só em São Paulo que as coisas são assim”, complementou.
Quebra de decoro
Explicando que a representação não discute o mérito da ação judicial e das apelações, mas foca-se na conduta do desembargador, o advogado Fábio Godoy disse que, em relação à jurisprudência do CNJ, “existem precedentes que afastam magistrados dependendo da conduta deles”.
Ele avaliou, por exemplo, o comportamento do desembargador em entrevistas e nas redes sociais, sempre defendendo PMs e atacando as entidades de direitos humanos e a imprensa. Sartori chegou ao ponto de sugerir que imprensa e entidades estão envolvidas com o crime organizado.
“Existe uma previsão legal, ele não pode fazer o que fez, imputando crimes a figuras essenciais para o sistema de Justiça: como a imprensa para dar publicidade a tudo o que acontece e as entidades de direitos humanos”, destacou o advogado.
Além disso, em decisões anteriores, o próprio Sartori teria defendido que “uma sentença de júri só poderia ser revogada quando as evidências dos autos são manifestamente contrárias à decisão”, o que demonstra uma mudança “repentina de posicionamento”, ponderou Godoy.
Afastamento e aposentadoria compulsória
Por meio dessa reclamação disciplinar, entidades e militantes de direitos humanos solicitam ao CNJ a instalação de um processo legal administrativo disciplinar contra Sartori.
Em caso de dúvida, pedem que seja aberta uma sindicância para apurar a conduta do magistrado e, “tão logo”, se abra esse processo. Também solicitam o afastamento do desembargador de suas atividades:
“A parcialidade do desembargador, descumprindo seu dever profissional, pode ainda influenciar nas decisões dos demais desembargadores na absolvição dos policiais militares no massacre do Carandiru ou trazer consequências para a tramitação adequada que uma grave violação de direitos humanos requer”, afirma o documento.
Eles também pedem a aposentadoria compulsória de Sartori:
“Diante da violação dos princípios da Administração Pública (impessoalidade, moralidade e eficiência) e dos deveres do magistrado, não resta opção a não ser promover a apuração da conduta e a consequente responsabilização do desembargador”.
Estima-se um prazo de 60 dias, para que o órgão se manifeste em relação ao pedido.
Barbárie
Várias entidades e militantes de direitos humanos participaram da coletiva de imprensa no Sindicato dos Jornalistas. Entre eles, José Luís Del Roio que lembrou várias violações de direitos humanos cometidos por policiais: “Se aceitarmos isso, vamos aceitar para sempre os 500 mortos de Maio”.
Ele também citou o caso das ossadas na vala de Perus, descobertas em 1990: “estamos aqui discutindo um caso de 24 anos, o da Vala de Perus tem 26 anos. Não chegamos nem perto de ter um DNA daqueles corpos. Não é possível que a gente não faça uma campanha forte, que a imprensa não reflita essa situação”.
“Nós vivemos em um país bárbaro. Não podemos ser uma grande nação – como devemos ser – se não limitarmos e extirparmos essa barbárie. Enquanto tivermos todo um aparato de justiça que comete sistematicamente violações, por motivos políticos ou por ódio de classe, não seremos uma grande nação”, complementou.
Clique aqui e assistam à integra a coletiva.
Créditos da foto: reprodução
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