Saul
Leblon
Lula não começa nem termina nele mesmo.
Num dos comícios da campanha de 2002, o então candidato Luís
Inácio Lula da Silva assim se definiu: ‘Eu sou uma criação das lutas sociais do
povo brasileiro’.
Essa síntese completa agora 71 anos.
Quantos setenta e um anos serão necessários para surgir outra
personificação do geral no particular que expresse o conjunto e ainda seja
capaz de ter a intuição, a vivacidade, a força e a singularidade cativante de
carne e osso de um Lula?
Com todas as fraquezas da carne e do osso ele é o maior líder
popular da história brasileira.
Com todas as adversidades e equívocos de um regime político que
sonegaria a sua presidência a maioria no Congresso – ao custo sabido e agora
cobrado - fez o melhor ciclo de governos
da história brasileira, ombreando-se a outro gigante, este vindo da elite,
Getúlio Vargas.
Agora que a propaganda do golpe desidrata na fornalha de uma
economia que borbulha e regurgita catástrofes nos seus próprios termos, fica
evidente a importância de se ter um Lula no patrimônio das ferramentas
necessárias à reordenação da sociedade e do desenvolvimento brasileiros.
A crise na qual a restauração neoliberal afoga a população, o
emprego, as contas públicas e a produção escancarou a fraude que atribuía ao PT
o desmanche do Brasil.
Constatar a farsa do que prometia o golpe, porém, não basta mais.
Não é um fim em si apontar o desastre da restauração conservadora
no país.
O mais urgente é superá-la antes que condene essa e a próxima
geração.
É preciso dialogar com os que foram seduzidos pelo monólogo
diuturno da fatalidade elitista e oligárquica.
Se Lula será candidato ou cabo eleitoral em 2018, se Moro terá ou
não a audácia crepuscular de liquidar seus direitos políticos antes que desabe
o regime ao qual pertence, são conjecturas.
Mas há uma certeza no centro da qual o nome de Luís Inácio Lula da
Silva se inscreve encastoado como a pedra angular de todo o edifício.
É preciso repactuar o futuro do Brasil e ninguém - nem Moro, na
sua megalomania - imagina que isso é factível sem ter na mesa a cadeira cativa
daquele que é capaz de conversar com o povo e com a juventude, com o
trabalhador, o desempregado e o empresário produtivo, com o investidor
internacional e com o pai de família que luta por um teto nas periferias do
país, ou por um pedaço de terra nos confins do Brasil.
Lula é uma síntese da luta social que acredita no diálogo como
parte da luta.
E na luta como parte do diálogo.
Por certo amadureceu esse ponto de equilíbrio nas lições da
experiência recente.
Hoje, e talvez mais que nunca, personifica uma singular área de
porosidade política de valor inestimável na superação progressista do impasse
vivido pela democracia brasileira.
Para evitar a força de atração desse magnetismo mediador no
palanque de 2018, como candidato ou cabo eleitoral, o que sobrou ao golpismo?
Sobrou a última carta na mesa: decidir 2018 em 2017.
Um golpe dentro do golpe precificado desde já na conflagração
entre milícias, grupos, trânsfugas, oportunistas e desesperados.
Para isso será necessário consumar aquilo que hoje tem menor
probabilidade de êxito do que ontem e, por certo, guarda mais chances do que
amanhã.
Ou seja, matar, picar,
salgar, espalhar partes do carisma e da credibilidade de Lula pelas ruas,
praças, vilas, periferias, vizinhanças e campos de todo o país.
'Esse homem não pode ser candidato; se for é capaz de vencer; se
vencer será impossível impedi-lo de assumir; se assumir pode fazer outro grande
governo.’
Essa é a versão corrente para o que dizia Lacerda em junho de
1950.
O ‘Corvo’, no afetuoso apelido que lhe deu, então, o jornalista
Samuel Wainer, tentava igualmente
abortar a candidatura de Vargas à presidência da República, alvejada à queima
roupa e à luz do dia: ‘Esse homem não
pode ser candidato; se candidato não pode ser eleito; se eleito não deve tomar
posse; se tomar posse não deve governar’.
A caçada a Lula reflete a velocidade vertiginosa da urgência
conservadora antes que ele retome o fôlego e o fôlego tome de vez as ruas.
Vale tudo não é força de expressão.
É o nome da pauta interativa que conecta o desespero das redações
a fileiras do judiciário partidarizado.
De onde virá a pá de cal?
Do pesqueiro que ele frequenta? Do estádio de futebol que ele
‘ganhou de presente’ de uma empreiteira, como estampou a sofreguidão
conservadora impressa com o logotipo de um jornal paulista? Da canoa de
alumínio de R$ 4 mil reais? Do apartamento que, afinal, não comprou? De um
delator desesperado? De alguém coagido pelo Califado de Curitiba, disposto a
qualquer coisa para proteger familiares retidos e ameaçados?
Eles não vão parar.
Desfrutáveis rapazes e moças denominados ‘jornalistas
investigativos’ inscrevem-se nas mais diferentes façanhas para antecipar o
desfecho ansiado, antes que resistência
que se espalha aborte o cronograma.
Procuradores procuram febrilmente a pauta da semana, auxiliados
por redações interativas.
Não há limites.
Como demonstra a invasão ilegal do Senado pela Polícia Federal, a
dinâmica é a do regime de exceção: adaptar a lei às necessidades de manutenção
no poder da coalizão que assaltou o mandato da Presidenta Dilma Rousseff.
A narrativa geral do desespero vem adaptada ao sotaque de cada
público. Desde a mais crua, às colunas especializadas em conspirar com afetação
pretensamente macroeconômica ou jurídica.
A mensagem vibra a contagem regressiva em direção a ‘ele’.
‘Ele’ é o troféu mais cobiçado, a cabeça a ser pendurada no espaço
central da parede onde já figuram outras peças preciosas, embalsamadas pela
taxidermia conservadora.
A sentença de morte política foi lavrada em 2005/06, quando se
concluiu que pela via eleitoral Lula seria imbatível diante das opções disponíveis.
A partir de então seu entorno e depois o seu próprio pescoço
seriam espremidos num garrote que agora range, acelera, hesita, derrapa e ainda
não conseguiu completar as derradeiras voltas do parafuso vil.
O assalto final será indolor à matilha que o conduz?
A contagem regressiva bateu na porta do imponderável.
A coalizão golpista ingressou precocemente naquela etapa do
entrudo em que ninguém é de ninguém.
Quem sobrará?
A pergunta política de resposta mais cobiçada nos dias que correm
sibila quatro letras abominadas pelo radicalismo golpista: ele pode resistir?
Quem?
L-u-l-a.
Depende muito do discernimento das lideranças nascidas dessa
costela e até mesmo – ou quem sabe, principalmente - de algumas referenciadas a
marcos ideológicos que vão além dela.
São hoje as mais mobilizadas.
Amanhã serão as primeiras atingidas, se a ‘macrização’ do Brasil
for bem sucedida.
Lula é refém da avaliação que o conjunto da esquerda - e de
setores democráticos e nacionalistas, bem como dos liberais sinceros e de
segmentos do empresariado produtivo - fizer de sua importância para o futuro da
democracia e do desenvolvimento do país.
É tão ou mais refém disso do que do sentenciamento de Moro ou da
mídia. Nestes já foi condenado.
Mas a intersecção de uma crise que irrompe mais grave do que eles
estavam preparados para enfrentar e a reação da rua diante dela pode mudar o
seu roteiro da guilhotina para o centro da repactuação brasileira.
Não é róseo o horizonte.
Há uma recidiva da crise mundial, cuja extensão e profundidade o
PT subestimou, Dilma subestimou, Lula subestimou.
Estamos a bordo desse túnel de horror escavado com a ajuda dessa
subestimação que jogou o Brasil abruptamente no liquidificador de um
acirramento da disputa pelo bolo mais magro, sem que se tivesse preparado a
população para isso.
O golpe penetrou nesse vazio.
Mas também subestimou o tamanho do vagalhão, crente de que satisfeitas
as ‘expectativas’ dos mercados, com morte do ‘lulopopulismo’ e a violação da
Carta de 88, o crescimento saltaria etapas para coroar a legitimação do assalto
ao poder.
Nada isenta Lula dos equívocos sabidos, que o tornaram mais
vulnerável nesse momento.
O embate, porém, vai muito além do que imagina o bisturi
(ambidestro) que resume a equação brasileira a lancetar o espaço do PT e de
Lula na urna eletrônica de 2018.
O passado continua a frequentar o presente na vida das nações,
através da sua gente, dos seus anseios, da memória que é um pedaço do futuro.
O ciclo iniciado em 2003 tirou algumas dezenas de milhões de
brasileiros da pobreza; deu mobilidade a outros tantos milhões na pirâmide de
renda.
Foi inconcluso porque atribuiu às gôndolas do supermercado a
tarefa de promover o salto de consciência que mudaria a correlação de forças da
sociedade.
A inclusão foi tão expressiva, porém, que sob a cortina de fogo
impiedosa do monopólio midiático, há quase uma década, acuado, ferido,
enxovalhado noite e dia, sem espaço de resposta, Lula ainda figura como o nome
que parte com 28% a 30% dos votos nas sondagens da corrida presidencial para
2018.
Afobados colunistas cuidam de tranquilizar os patrões: sua derrota
é fatal diante de uma quase certa aliança conservadora no segundo turno.
Em termos.
Com acesso diário à tevê que hoje lhe é sonegada, ao rádio e ao
debate, num cenário econômico que dificilmente será menos que devastador, as
alardeadas dianteiras dos seus principais adversários podem derreter junto com
o ‘crime’ de frequentar um pesqueiro em Atibaia ou de ter sido favorecido por reformas em um ‘tríplex’
que, afinal, não lhe pertence.
Em 1954, quando a direita já escalava as grades do Catete e os
jornais conservadores escalpelavam a reputação de quem quer que rodeasse
Vargas, sua morte política era
comemorada por uma parte da esquerda.
O varguismo era acusado, então, de ser um corredor aberto ao
imperialismo, um manipulador das massas.
Vargas não era um bolchevique. Nem Lula o é.
Tampouco detinha a representação de São Francisco de Assis na Terra.
Era um estancieiro.
Não fez a reforma agrária. Nunca viveu agruras, não liderou
greves, não leu Marx – perseguiu comunistas no seu primeiro governo.
Ao mesmo tempo, criou o salário mínimo, as leis trabalhistas,
peitou o imperialismo.
Vargas foi o que são líderes nacionais populares de cada tempo
concreto: seres contraditórios de carne e osso, exatamente por isso magnéticos
na personificação de um projeto de desenvolvimento em que o vórtice selvagem do
capital passa a ser domado pelas rédeas dos interesses sociais organizados.
Vem de Varoufakis, o ex-ministro da Fazenda da Grécia, a preciosa
síntese do que está em jogo num mundo que é o avesso disso, capturado pela
desregulação dos mercados: ‘(a pedra de toque é) não deixar nenhuma zona livre
de democracia na sociedade’.
Nenhuma zona livre de democracia significa, sobretudo, vetar ao
mercado a prerrogativa de determinar o
futuro da sociedade.
Lula tem seu espaço nesse enredo, do qual a emergência luminosa
das ocupações estudantis é só um exemplo daquilo que a participação pode fazer
para reformar de fato as bases do país, sem excluir sua razão de ser: o povo
brasileiro.
Quantas vozes arrebatadoras, como a de Ana Júlia, que hipnotizou a
rede social com seu discurso no legislativo de Curitiba em defesa da
participação dos estudantes, não estão à espera de uma oportunidade para fulminar o fatalismo com o
frescor e o desassombro, capazes de
fazer do Brasil o país que ele
poderia ser mas ainda não é?
Em abril de 1953 uma parte da esquerda brasileira considerava que
Vargas não tinha mais espaço em um mutirão desse tipo.
Simultaneamente, uma ciranda de ataques descomprometidos de
qualquer outra lógica, que não a derrubada de um projeto de desenvolvimento
soberano, sacudia o entorno do governo que criara a Petrobras, o BNDES e uma
política de fortalecimento do mercado interno com forte incremento do salário
mínimo.
Lembra algo?
A dramaticidade do suicídio político mais devastador da história
iluminaria o discernimento popular gerando revolta diante do ódio golpista que
tirou a vida de Vargas.
Quem dispensava a Getúlio o tratamento dado a um cachorro morto
teve que reinventar a sua agenda com ligeireza para não ser atropelado.
Sessenta e dois anos e dois meses depois do tiro que sacudiu o
país, a pressão atual do cerco conservador permite aquilatar a virulência que
foi aquele momento.
O Brasil está de novo submetido ao encalço de cascos
especializados em escoicear a nação, seu patrimônio e os direitos, poucos, de
sua gente miúda.
Dispara-se contra a nação o mesmo arsenal para alvos e objetivos
correlatos.
A mesma elasticidade ética reveste a ação da mídia determinada a
calafetar cada poro do país com uma gosma de nojo e prostração.
Persiste, enfim, o cerco ao Catete.
A qualquer Catete – como já se disse neste espaço - dentro do qual
políticas públicas tentem pavimentar mais um trecho da estrada inconclusa que
leva à construção de uma democracia social no coração da América Latina.
Esse é o tabuleiro da história no qual um peão completa agora 71
anos sob o xeque mate de reis e rainhas que ameaçam empurrá-lo para fora da
mesa.
Mas que tem um trunfo não negligenciável: ser uma síntese de
representatividade capaz reorganizar o jogo, sem o quê o xadrez brasileiro pode
se converter em uma devastadora derrocada de peças de dominó. Da qual nenhum
deles escapará.
www.cartamaior.com.br
28/10/2016
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