PEC 241 é uma
gargalhada legislativa da direita
Teresa Cruvinel
O pensador português Boaventura de Sousa
Santos, é hoje um dos mais importantes intelectuais públicos do mundo,
entendendo-se como tal aquele que coloca seu saber a serviço do interesse geral
de seu povo ou da humanidade. Catedrático, filósofo, jurista, economista,
sociólogo e também poeta, ele foi homenageado ontem em Brasília como
personalidade internacional pela III Bienal do Livro e da Leitura. Profundo conhecedor e admirador do Brasil,
que frequenta há muitos anos, desde que viveu numa favela carioca para elaborar
sua tese de doutorado pela universidade americana de
Yale, ele tem acompanhado com interesse a crise política, a Lava-Jato, o
afastamento da ex-presidente Dilma, a
derrota do PT e o governo ultraliberal de Michel Temer. Antes da homenagem, nesta
entrevista ao 247 ele falou sobre estes assuntos, classificando a PEC 241 como
uma vingança da direita e um recado ao povo para que não vote mais na esquerda,
não poderá cumprir promessas com o gasto público engessado. “É uma gargalhada
legislativa da direita sobre uma esquerda arruinada”.
·
P – O governo
brasileiro está aprovando no Congresso a PEC 241, que fixa um teto para o gasto
publico nos próximos 20 anos. Como analisa esta medida?
R – A PEC 241 tem a característica de
ser uma medida que, em relação aos fins que oficialmente a justificam, não terá
nenhuma eficácia. Ela não estabilizará a dívida pública e não contribuirá de modo algum para a retomada
do crescimento. Neste momento, o grande problema de vários países é a quebra da
dinâmica econômica interna. Não se pode
confiar inteiramente nas exportações, porque isso só faria sentido em momentos
de “boom”, que não é o caso agora. Em situações como a que o Brasil atravessa, o
aquecimento do mercado interno seria muito importante, mas o que esta PEC
produzirá será o aprofundamento da recessão. De modo que ela não servirá para aquecer a economia, nem para
reduzir a dívida e nem terá qualquer efeito sobre a inflação. Portanto,
trata-se de uma daquelas medidas
cuja justificação oficial não resiste a qualquer teste técnico ou
científico. Eu conheço bem esta
área, que tenho estudado com algum
detalhe, e posso dizer isso com segurança. A eficácia que se está procurando é outra.
P – E qual é?
R – Esta emenda constitucional carrega
duas eficácias simbólicas que são muito importantes para os conservadores. Um primeiro objetivo é mostrar ao povão, às
classes populares do Brasil, que não se deve esperar nada do Estado nos
próximos 20 anos, a não ser o que a direita lhes quer dar. A direta no poder
inscreve esta medida na Constituição, estabelecendo de forma clara o que ela
permite que seja dado ao povo. Isso
significa que, em disputas eleitorais futuras, a esquerda não poderá prometer
nada, pois com estes limites impostos ao
orçamento, não poderá cumprir suas
promessas. A não ser, é claro, numa situação de convulsão social, em que
conquistasse uma maioria para poder alterar novamente a Constituição. Então, esta é uma das mensagens da PEC 241.
Ela é um recado às classes populares para que não espere nada do Estado nos
próximos 20 anos. E também para que não aposte novamente em candidatos de
esquerda, pois não poderão cumprir qualquer promessa apresentada com o gasto
público engessado por 20 anos, algo que nunca foi feito em qualquer país. Esta emenda diz que, se no futuro a esquerda
prometer algo diferente do que a direita permite, estará sendo falsa e
hipócrita. Logo, votar na esquerda será
um ato inútil, pois ela não poderá entregar nada do que prometer.
·
P – E o segundo
sentido simbólico?
R - A medida carrega outra eficácia
simbólica de conteúdo menos ideológico e mais de vingança pessoal. A PEC 241 é
também um ato de vingança contra a esquerda, é uma gargalhada legislativa que a
direita dá, de forma muito arrogante, sobre uma esquerda prostrada, em ruínas. Uma esquerda que não
está morta, como a direita gostaria, mas
está pelo menos desmaiada. Trata-se de um ato de vingança extraordinário. Estão
dizendo que tudo aquilo que foi posto em
prática nos últimos anos pela esquerda
foi sumariamente eliminado, apagado pela nova maioria conservadora. Esta PEC está aí para dizer: quem manda é a
direita e não ousem votar novamente na esquerda. Ela destrói, para o futuro, qualquer
expectativa em relação a governos progressistas que proponham algo diferente,
que se comprometam com mudanças.
·
P – Mas esta
gargalhada, esta vingança terá um custo muito alto que será pago pelo povo,
não?
R – Sim, as consequências serão
dolorosas, mas não virão no curtíssimo prazo.
Eles não são parvos, vão conter
os efeitos mais nefastos enquanto não se consolidarem no poder e enquanto não
estiver afastado o risco de uma convulsão social. Afinal, ao longo dos últimos
13 anos as classes populares alimentaram expectativas mais positivas em suas
vidas, ao longo dos governos petistas. E
sabem também que as classes médias nunca são gratas aos governos pelos
benefícios que recebem em decorrência de políticas governamentais. Elas foram
ingratas agora com o PT e amanhã poderão ser ingratas com o governo que tirou o
PT do poder quando seus governos
deixaram de produzir mais benefícios,
por conta da exaustão do modelo que permitiu o “todos ganham” da era Lula. Estas classes médias poderão ser novamente ingratas se não
estiverem conseguindo pagar cartão de crédito em dia e manter seus filhos nas universidades, que
serão muito afetadas pela PEC 241, com redução de vagas ou elevação de custos
de mensalidades. Esta classe média
poderá sempre se manifestar, seja através de eleições ou de manifestações de
protesto. Portanto, eles sabem que para se consolidar precisam aplicar uma
doutrina de choque, ministrando um antibiótico de efeito rápido. Mas sabem
que depois será preciso alguma calma na implementação. Vão tentar dividir os grupos sociais e as
regiões do Brasil, embora o papel da esquerda seja tentar uni-los. Será então
um processo mais lento e sob uma forte e permanente campanha midiática,
assentada em duas ideias centrais: é preciso colocar as contas públicas porque
a gestão petista, como disse ainda ontem O Estado de São Paulo, foi “ruinosa e
criminosa”. Isso custará algum sacrifício a todos, aguentem as pontas porque
isso é condição para que o país volte a crescer. Não é este o discurso do
governo? O país até poderá voltar a
crescer, mas apesar destas políticas adotadas, e não por causa delas. Então, irão devagar com o andor, porque
também precisam atender suas clientelas, deputados e senadores precisam atender
ao seu eleitorado, que não integram as elites e vai cobrar uma resposta, que tem a ver com pão, saúde e escola. Eles
tomarão estes cuidados para evitar a convulsão social.
·
R – Isso pode
lhes garantir a vitória nas eleições de 2018?
R – Estão se preparando também para
isso, como vocês brasileiros bem sabem.
A prisão de Eduardo Cunha foi feita para
justificar a prisão do Lula, que feita de outro modo, poderia provocar reações, até mesmo uma
convulsão social. Então, trataram primeiro de prender um grande do outro lado,
mostrando que a justiça é imparcial.
Embora isso expresse também uma divisão entre as elites, que justifica a
necessidade de cortar algumas cabeças, o objetivo fundamental que
perseguem é impedir que o Lula seja candidato em 2018. Para isso é
preciso carimbá-lo como corrupto, tornando-o inelegível ainda que não seja
preso imediatamente. Apesar de toda a
campanha para desmoralizá-lo ele ainda é o nome mais forte para 2018 e isso é
uma coisa boa para a esquerda, embora não seja boa em outro sentido: pois com
Lula candidato não haverá nenhuma renovação no PT nem no conjunto da esquerda, algo que hoje é fundamental no Brasil. Estas são as contingências da política
brasileira para os próximos anos. Dizem que cientistas sociais só sabem prever
o passado, nunca o futuro, e isso é realmente muito difícil. Mas esta prisão do
Cunha é um sinal muito claro,
inequívoco. Se Lula for
candidato, este modelo neoliberal não se consolida. Ainda que ele faça muitas
concessões, escreva uma nova Carta ao Povo Brasileiro, e que se comprometa a não mexer em muitas
coisas, ele representa o contrário deste modelo que estão tentando implantar.
Ele é um torneiro mecânico que as elites não toleram e que tentarão evitar a
todo custo. Lula continua sendo o líder mais popular do Brasil,
não havendo ninguém que o bata em popularidade, embora ele seja massacrado todo dia, chamado de criminoso e
de chefe de quadrilha. Por isso,
precisam abatê-lo, precisam condená-lo em segunda instância para que seja
preso, ou para que fique inelegível ainda que não seja preso.
·
P – Como a
esquerda brasileira poderá sair desta ruína? E o giro da América Latina à
direita, vai durar?
R – Os governos populares latino-americanos,
muitos deles saídos de movimentos sociais, cometeram diversos erros e um deles
foi aproveitaram-se do chamado boom
das commodities, puxado pelo crescimento da China, para aprofundar o modelo de
desenvolvimento extrativista. Os ricos ganharam muito, mas os pobres foram
beneficiados com distribuição de renda através de políticas sociais. Ou seja, nada mudaram no modelo econômico, e
ao aceitá-lo, aceitaram também o modelo político que já era antigo. Inclusive,
as práticas de financiamento político-eleitoral. Não mudaram o modelo político
nem o sistema de mídia, nem o modelo tributário. E com isso, os partidos de esquerda foram aprisionados
numa lógica que sempre combateram. A
direita é que sempre se serviu da corrupção, da mídia e de ilegalidades para se
manter no poder. Quando o boom das
commodities acabou, o orçamento encolheu, o crescimento arrefeceu. A saída
seria fazer com que os ricos pagassem mais impostos, mas isso não foi ousado.
Para sair da situação atual, a esquerda precisa se reinventar, mudando sua
própria lógica, valorizando os movimentos sociais e suas experiências,
articulando a combinação entre democracia representativa e democracia
participativa. O Podemos, na
Espanha, expressa esta nova vontade política de criar o que chamo de
partidos-movimentos. A esquerda precisa inventar também uma forma de fazer
política em que o dinheiro não domine as decisões partidárias.
·
P – A Operação
Lava-Jato tem clara inspiração na
Operação Mãos Limpas italiana. Lá, deu
em Berlusconi. O que pode acontecer no Brasil se todo o sistema político for
“deslegitimado” pela Lava-Jato?
R – Há duas teorias sobre a Operação Mãos
Limpas, e eu defendo uma delas. A primeira diz que houve na Itália, que tem um
sistema jurisdicional bem diferente, um
ataque generalizado a toda a corrupção,
e que obviamente atingiu os partidos que
já haviam estado no poder. Não
poderia atingir os comunistas porque depois da Segunda Guerra eles nunca
chegaram ao poder nacional. Portanto, os atingidos foram a Democracia Cristã e
os socialistas. Mas os partidos
políticos não eram alvo específico. O que havia era uma disfuncionalidade da
corrupção dentro do sistema. A corrupção não pode ser combatida enquanto os
corruptos não começam a falar, pois é muito difícil chegar às provas. Na Itália, estavam pagando demasiado, as
comissões eram muito elevadas, isso
incomodou setores do capital e, a certa altura, alguns deles começaram a falar.
Esta é a teoria com que concordo. Outros
pensam que os juízes italianos
envolvidos com a Operação Mãos Limpas eram predominantemente de esquerda, e que
teria havido na iniciativa a intenção de liquidar com os partidos de direita.
Mas foi exatamente a destruição dos líderes tradicionais da direita que
permitiu o surgimento de nomes novos na direita, para ocupar o vazio que se criou. Em verdade, havia na operação juízes de diferentes
tendências. Foi um processo diferente.
Aqui, haverá naturalmente uma forte desestruturação do sistema
político, mas acho que a grande
incógnita é saber quem vai parar a Lava-Jato.
Muitos apostaram que a saída da presidente Dilma Rousseff permitiria seu
estancamento. Eu sempre achei que não,
porque o mais importante era travar Lula, e Lula ainda não foi
travado. Mas precisavam dar alguma
satisfação à sociedade brasileira,
tomando algumas medidas. Ficou muito
claro, para o mundo, que a presidente não cometeu qualquer crime de
responsabilidade. O Supremo Tribunal Federal poderia e deveria ter tomado
medidas para impedir que houvesse um golpe. Não havendo crime, a troca de
governo só poderia ocorrer nas próximas eleições. O STF perdeu uma oportunidade de afirmar-se
como garantidor da democracia no país.
Isso deixará na corte uma ferida muito profunda, que se agrava com a
obtenção de vantagens salariais pelo Judiciário, estranhamente no meio de uma crise que impõe
sacrifícios a outras carreiras. O
sistema judicial é algo que estudo há muitos anos, tenho relações com muitos ministros
da suprema corte brasileira, mas não
posso deixar de dizer que o STF tem uma dívida para com o país.
·
P – O senhor acha
que esta postura intimidada do Supremo decorreu de certo temor da reação da
mídia e da opinião pública?
R – Os tribunais em geral são
conservadores, movidos por um forte
sentimento corporativo, o que leva à interiorização de ideias conservadoras, de
direita. Um juiz dito como progressista,
como Sergio Moro, cometeu atos
manifestamente ilegais, como o depoimento coercitivo do presidente Lula e o
vazamento de suas conversas com Dilma e com pessoas de sua intimidade. E a associação dos magistrados federais saiu
em sua defesa e apoio. Para mudar o
Judiciário teria que haver uma contracorrente progressista. Existem juízes progressistas, mas a
corporação é conservadora. O Judiciário não tinha razões para ter queixas dos
governos do PT, em que foi prestigiado de diversas formas, inclusive com
aumentos salariais também. A Polícia Federal foi empoderada, assim como o
Ministério Público. O sistema judicial
poderia, portanto, ter feito uma luta limpa contra a corrupção, sem
desestabilizar o governo, sem omitir-se diante de um golpe, sem alimentar uma
crise política. Mas este é um país de
dois pesos e duas medidas. Houve um escândalo, e mais que isso, houve uma
criminalização do convite de Dilma para Lula ser ministro. E, no entanto, o que
fez Fernando Henrique para favorecer o hoje ministro do STF Gilmar Mendes?
Deu-lhe o status de ministro, como chefe da Advocacia Geral da União, para
garantir-lhe o foro especial do STF. Alguém reclamou? Ninguém.
www.brasil247.com.br 28/10/2016
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