sexta-feira, 28 de outubro de 2016

PEC 241 É UMA GARGALHADA LEGISLATIVA DA DIREITA

PEC 241 é uma gargalhada legislativa da direita

Teresa Cruvinel

O pensador português Boaventura de Sousa Santos, é hoje um dos mais importantes intelectuais públicos do mundo, entendendo-se como tal aquele que coloca seu saber a serviço do interesse geral de seu povo ou da humanidade. Catedrático, filósofo, jurista, economista, sociólogo e também poeta, ele foi homenageado ontem em Brasília como personalidade internacional pela III Bienal do Livro e da Leitura.  Profundo conhecedor e admirador do Brasil, que frequenta há muitos anos, desde que viveu numa favela carioca para elaborar sua tese de doutorado pela universidade americana de Yale, ele tem acompanhado com interesse a crise política, a Lava-Jato, o afastamento da ex-presidente Dilma,  a derrota do PT e o governo ultraliberal de Michel Temer. Antes da homenagem, nesta entrevista ao 247 ele falou sobre estes assuntos, classificando a PEC 241 como uma vingança da direita e um recado ao povo para que não vote mais na esquerda, não poderá cumprir promessas com o gasto público engessado. “É uma gargalhada legislativa da direita sobre uma esquerda arruinada”.

·         P – O governo brasileiro está aprovando no Congresso a PEC 241, que fixa um teto para o gasto publico nos próximos 20 anos. Como analisa esta medida?

R – A PEC 241 tem a característica de ser uma medida que, em relação aos fins que oficialmente a justificam, não terá nenhuma eficácia.   Ela não  estabilizará a dívida pública e  não contribuirá de modo algum para a retomada do crescimento. Neste momento, o grande problema de vários países é a quebra da dinâmica econômica interna.  Não se pode confiar inteiramente nas exportações, porque isso só faria sentido em momentos de “boom”,  que não é o caso agora.  Em situações como a que o Brasil atravessa, o aquecimento do mercado interno seria muito importante, mas o que esta  PEC  produzirá será o aprofundamento da recessão.  De modo que ela não  servirá para aquecer a economia, nem para reduzir a dívida e nem terá qualquer efeito sobre a inflação.  Portanto,  trata-se de uma daquelas medidas  cuja justificação oficial não resiste a qualquer teste técnico ou científico.  Eu conheço bem esta área,  que tenho estudado com algum detalhe,  e posso dizer isso com segurança.  A eficácia que se está procurando é outra.
P – E qual é?

R – Esta emenda constitucional carrega duas eficácias simbólicas que são muito importantes para os conservadores.  Um primeiro objetivo é mostrar ao povão, às classes populares do Brasil, que não se deve esperar nada do Estado nos próximos 20 anos, a não ser o que a direita lhes quer dar. A direta no poder inscreve esta medida na Constituição, estabelecendo de forma clara o que ela permite que seja dado ao povo.   Isso significa que, em disputas eleitorais futuras, a esquerda não poderá prometer nada,  pois com estes limites impostos ao orçamento, não poderá  cumprir suas promessas. A não ser, é claro, numa situação de convulsão social, em que conquistasse uma maioria para poder alterar novamente a Constituição.   Então, esta é uma das mensagens da PEC 241. Ela é um recado às classes populares para que não espere nada do Estado nos próximos 20 anos. E também para que não aposte novamente em candidatos de esquerda, pois não poderão cumprir qualquer promessa apresentada com o gasto público engessado por 20 anos, algo que nunca foi feito em qualquer país.  Esta emenda diz que, se no futuro a esquerda prometer algo diferente do que a direita permite, estará sendo falsa e hipócrita.   Logo, votar na esquerda será um ato inútil, pois ela não poderá entregar nada do que prometer.

·         P – E o segundo sentido simbólico?

R - A medida carrega outra eficácia simbólica de conteúdo menos ideológico e mais de vingança pessoal. A PEC 241 é também um ato de vingança contra a esquerda, é uma gargalhada legislativa que a direita dá, de forma muito arrogante, sobre uma esquerda   prostrada, em ruínas. Uma esquerda que não está morta, como a direita gostaria,  mas está pelo menos desmaiada. Trata-se de um ato de vingança extraordinário. Estão dizendo que tudo aquilo que  foi posto em prática nos últimos  anos pela esquerda foi sumariamente eliminado, apagado pela nova maioria conservadora.  Esta PEC está aí para dizer: quem manda é a direita e não ousem votar novamente na esquerda.   Ela destrói, para o futuro, qualquer expectativa em relação a governos progressistas que proponham algo diferente, que se comprometam com mudanças.

·         P – Mas esta gargalhada, esta vingança terá um custo muito alto que será pago pelo povo, não?

R – Sim, as consequências serão dolorosas, mas não virão no curtíssimo prazo.  Eles não são parvos,  vão conter os efeitos mais nefastos enquanto não se consolidarem no poder e enquanto não estiver afastado o risco de uma convulsão social. Afinal, ao longo dos últimos 13 anos as classes populares alimentaram expectativas mais positivas em suas vidas, ao longo dos governos petistas.  E sabem também que as classes médias nunca são gratas aos governos pelos benefícios que recebem em decorrência de políticas governamentais. Elas foram ingratas agora com o PT e amanhã poderão ser ingratas com o governo que tirou o PT do poder quando  seus governos deixaram de produzir  mais benefícios, por conta da exaustão do modelo que permitiu o “todos ganham” da era Lula.  Estas classes médias  poderão ser novamente ingratas se não estiverem conseguindo  pagar  cartão de crédito em dia  e manter seus filhos nas universidades, que serão muito afetadas pela PEC 241, com redução de vagas ou elevação de custos de mensalidades.  Esta classe média poderá sempre se manifestar, seja através de eleições ou de manifestações de protesto. Portanto, eles sabem que para se consolidar precisam aplicar uma doutrina de  choque, ministrando  um antibiótico de efeito rápido. Mas sabem que depois será preciso alguma calma na implementação.   Vão tentar dividir os grupos sociais e as regiões do Brasil, embora o papel da esquerda seja tentar uni-los. Será então um processo mais lento e sob uma forte e permanente campanha midiática, assentada em duas ideias centrais: é preciso colocar as contas públicas porque a gestão petista, como disse ainda ontem O Estado de São Paulo, foi “ruinosa e criminosa”. Isso custará algum sacrifício a todos, aguentem as pontas porque isso é condição para que o país volte a crescer. Não é este o discurso do governo?   O país até poderá voltar a crescer, mas apesar destas políticas adotadas, e não por causa delas.  Então, irão devagar com o andor, porque também precisam atender suas clientelas, deputados e senadores precisam atender ao seu eleitorado, que não integram as elites e vai cobrar uma resposta,  que tem a ver com pão, saúde e escola. Eles tomarão estes cuidados para evitar a convulsão social.

·         R – Isso pode lhes garantir a vitória nas eleições de 2018?

R – Estão se preparando também para isso, como  vocês brasileiros bem sabem. A prisão de Eduardo Cunha foi  feita para justificar a prisão do Lula, que feita de outro modo,  poderia provocar reações, até mesmo uma convulsão social. Então, trataram primeiro de prender um grande do outro lado, mostrando que a justiça é imparcial.  Embora isso expresse também uma divisão entre as elites, que justifica a necessidade de cortar algumas cabeças, o objetivo fundamental  que  perseguem é impedir que o Lula seja candidato em 2018. Para isso é preciso carimbá-lo como corrupto, tornando-o inelegível ainda que não seja preso imediatamente.  Apesar de toda a campanha para desmoralizá-lo ele ainda é o nome mais forte para 2018 e isso é uma coisa boa para a esquerda, embora não seja boa em outro sentido: pois com Lula candidato não haverá nenhuma renovação no PT nem no conjunto da esquerda,  algo que hoje é fundamental no Brasil.  Estas são as contingências da política brasileira para os próximos anos. Dizem que cientistas sociais só sabem prever o passado, nunca o futuro, e isso é realmente muito difícil. Mas esta prisão do Cunha é um sinal muito claro,  inequívoco.  Se Lula for candidato, este modelo neoliberal não se consolida. Ainda que ele faça muitas concessões, escreva uma nova Carta ao Povo Brasileiro,  e que se comprometa a não mexer em muitas coisas, ele representa o contrário deste modelo que estão tentando implantar. Ele é um torneiro mecânico que as elites não toleram e que tentarão evitar a todo custo. Lula continua sendo o líder mais popular  do Brasil,  não havendo ninguém que o bata em popularidade, embora ele seja  massacrado todo dia, chamado de criminoso e de chefe de quadrilha.  Por isso, precisam abatê-lo, precisam condená-lo em segunda instância para que seja preso, ou para que fique inelegível ainda que não seja preso.

·         P – Como a esquerda brasileira poderá sair desta ruína? E o giro da América Latina à direita, vai durar?

R – Os governos populares latino-americanos, muitos deles saídos de movimentos sociais, cometeram diversos erros e um deles foi aproveitaram-se do chamado boom das commodities, puxado pelo crescimento da China, para aprofundar o modelo de desenvolvimento extrativista. Os ricos ganharam muito, mas os pobres foram beneficiados com distribuição de renda através de políticas sociais.  Ou seja, nada mudaram no modelo econômico, e ao aceitá-lo, aceitaram também o modelo político que já era antigo. Inclusive, as práticas de financiamento político-eleitoral. Não mudaram o modelo político nem o sistema de mídia, nem o modelo tributário. E com isso,  os partidos de esquerda foram aprisionados numa lógica que sempre combateram.  A direita é que sempre se serviu da corrupção, da mídia e de ilegalidades para se manter no poder. Quando o boom das commodities acabou, o orçamento encolheu, o crescimento arrefeceu. A saída seria fazer com que os ricos pagassem mais impostos, mas isso não foi ousado. Para sair da situação atual, a esquerda precisa se reinventar, mudando sua própria lógica, valorizando os movimentos sociais e suas experiências, articulando a combinação entre democracia representativa e democracia participativa. O Podemos, na Espanha, expressa esta nova vontade política de criar o que chamo de partidos-movimentos. A esquerda precisa inventar também uma forma de fazer política em que o dinheiro não domine as decisões partidárias.

·         P – A Operação Lava-Jato tem clara inspiração  na Operação Mãos Limpas  italiana. Lá, deu em Berlusconi. O que pode acontecer no Brasil se todo o sistema político for “deslegitimado” pela Lava-Jato?

R – Há duas teorias sobre a Operação Mãos Limpas, e eu defendo uma delas. A primeira diz que houve na Itália, que tem um sistema jurisdicional bem diferente,  um ataque generalizado a toda a corrupção,  e que obviamente atingiu os partidos que  já haviam estado no poder.  Não poderia atingir os comunistas porque depois da Segunda Guerra eles nunca chegaram ao poder nacional. Portanto, os atingidos foram a Democracia Cristã e os socialistas.  Mas os partidos políticos não eram alvo específico. O que havia era uma disfuncionalidade da corrupção dentro do sistema. A corrupção não pode ser combatida enquanto os corruptos não começam a falar, pois é muito difícil chegar às provas.  Na Itália, estavam pagando demasiado, as comissões eram muito elevadas,  isso incomodou setores do capital e, a certa altura, alguns deles começaram a falar.  Esta é a teoria com que concordo. Outros pensam que  os juízes italianos envolvidos com a Operação Mãos Limpas eram predominantemente de esquerda, e que teria havido na iniciativa a intenção de liquidar com os partidos de direita. Mas foi exatamente a destruição dos líderes tradicionais da direita que permitiu o surgimento de nomes novos na direita,  para ocupar o vazio que se criou.  Em verdade, havia na operação juízes de diferentes tendências. Foi um processo diferente.  Aqui, haverá naturalmente uma forte desestruturação do sistema político,  mas acho que a grande incógnita é saber quem vai parar a Lava-Jato.  Muitos apostaram que a saída da presidente Dilma Rousseff permitiria seu estancamento. Eu sempre achei que não,  porque o mais importante era travar Lula, e Lula ainda não foi travado.  Mas precisavam dar alguma satisfação  à sociedade brasileira, tomando  algumas medidas. Ficou muito claro, para o mundo, que a presidente não cometeu qualquer crime de responsabilidade. O Supremo Tribunal Federal poderia e deveria ter tomado medidas para impedir que houvesse um golpe. Não havendo crime, a troca de governo só poderia ocorrer nas próximas eleições.  O STF perdeu uma oportunidade de afirmar-se como garantidor da democracia no país.  Isso deixará na corte uma ferida muito profunda, que se agrava com a obtenção de vantagens salariais pelo Judiciário,  estranhamente no meio de uma crise que impõe sacrifícios a outras carreiras.  O sistema judicial é algo que estudo há muitos anos, tenho relações com muitos ministros da suprema corte brasileira,  mas não posso deixar de dizer que o STF tem uma dívida para com o país.

·         P – O senhor acha que esta postura intimidada do Supremo decorreu de certo temor da reação da mídia e da opinião pública?

R – Os tribunais em geral são conservadores,  movidos por um forte sentimento corporativo, o que leva à interiorização de ideias conservadoras, de direita.  Um juiz dito como progressista, como Sergio Moro,  cometeu atos manifestamente ilegais, como o depoimento coercitivo do presidente Lula e o vazamento de suas conversas com Dilma e com pessoas de sua intimidade.  E a associação dos magistrados federais saiu em sua defesa e apoio.  Para mudar o Judiciário teria que haver uma contracorrente progressista.  Existem juízes progressistas, mas a corporação é conservadora. O Judiciário não tinha razões para ter queixas dos governos do PT, em que foi prestigiado de diversas formas, inclusive com aumentos salariais também. A Polícia Federal foi empoderada, assim como o Ministério Público.  O sistema judicial poderia, portanto, ter feito uma luta limpa contra a corrupção, sem desestabilizar o governo, sem omitir-se diante de um golpe, sem alimentar uma crise política.   Mas este é um país de dois pesos e duas medidas. Houve um escândalo, e mais que isso, houve uma criminalização do convite de Dilma para Lula ser ministro. E, no entanto, o que fez Fernando Henrique para favorecer o hoje ministro do STF Gilmar Mendes? Deu-lhe o status de ministro, como chefe da Advocacia Geral da União, para garantir-lhe o foro especial do STF. Alguém reclamou? Ninguém.


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