Miguel do Rosário
Parodiando frase parecida, diríamos que
o Direito é importante demais para ficar em mãos de juristas.
Ademais, após o turbilhão constitucional
em que mergulhamos, desde a Ação Penal 470, que explodiu todas as
jurisprudências e protagonizou inúmeras violações à lógica, às leis, às
doutrinas, nunca me pareceu tão falso – e mesmo covarde – o lugar comum de que
“decisão judicial não se discute”.
Se não acreditar em mim, ouça Wanderley
Guilherme dos Santos, nosso maior cientista político.
Na parte final de seu último livro, A
Democracia Impedida, lançado há poucas semanas, o professor não
economiza argumentos contra a jurisdição de exceção inaugurada pelo julgamento
da Ação Penal 470, vulgo mensalão.
Estou convencido de que, no futuro, em
alguma brecha no inabalável colégio de mônadas, a AP 470 será estudada como o
que efetivamente foi: um julgamento de exceção.
As violações operadas na lógica, na
interpretação das leis, na aplicação das doutrinas, só se esclarecem se [for
considerado] (…) o clima passional da época. A veemência dos argumentos, dos
discursos e dos votos buscava ocupar, ofuscando-o, o vazio de provas
condenatórias. As três teses esdrúxulas, espinha dorsal da AP 470, servirão de
tutoria jurídica ao golpe parlamentar de 2016.
Se os próprios ministros do STF costumam
dizer, em raro acesso de modéstia, que ao STF cabe errar por último, então eles
próprios concordarão que a crítica às suas decisões é absolutamente necessária.
Afinal, se os ministros “erram por
último”, eles o fazem, se o considerarmos generosamente, não deliberadamente.
Então é preciso que alguém os esclareça sobre seus erros, não apenas para que
estes possam ser retificados, como para que não se repitam no futuro.
Entretanto, se a cultura democrática nos
impele à crítica de todos os poderes, inclusive o Judiciário, eu já não tenho
tanta certeza se esta liberdade deveria valer, da mesma forma, para
procuradores da República.
Refiro-me, claro, ao chefe da Lava-Jato,
Dalton Dallagnol, que, após decisão do STF, correu para o Facebook para
escrever um artigo contra a decisão da Suprema Corte de libertar José Dirceu,
comparando-o a traficantes de drogas.
O artigo de Dallagnol ganhou
imediatamente destaque nos grandes jornais do país, o que era previsível, desde
que esses mesmos jornais se tornaram, há muito tempo, porta-vozes de todo o
tipo de subversão institucional contra o Estado de Direito e contra a
Constituição, ambos aparentemente considerados como um estorvo à messiânica
luta contra a corrupção.
Tenho a impressão de que não é correto,
a um procurador, brandir nas redes sociais sua insatisfação contra uma decisão
da mais alta corte sobre um processo no qual o próprio procurador está
envolvido. Não seria isso desrespeito?
Usem a imaginação!
Imaginem se a moda pega?
E se procuradores brasileiros
resolvessem atacar os tribunais que julgam as causas em que eles estão
envolvidos, a cada vez que uma decisão judicial não lhes agrade?
Seria interessante!
A ditadura jurídica que assumiu o
controle político do país não previu isso: uma rebelião oriunda de dentro!
Espere-se, no entanto, que a mesma
liberdade seja concedida também a operadores jurídicos que se posicionarem
contra a Lava-Jato. Por exemplo, um ministro do STF não poderia postar no
Facebook um longo texto repleto de pesadas críticas às ações de um determinado
procurador?
Pensando bem, é melhor não. É melhor que
críticas e elogios às decisões judiciais fiquem restritas aos cidadãos comuns,
como blogueiros e comentaristas de blogs. E que procuradores e juízes se
atenham aos autos.
A fúria de Dallagnol, que o blog
apelidou, carinhosamente, de “Zé do PowerPoint”, contra a decisão do STF de
libertar Dirceu das masmorras da Globo em Curitiba, enseja uma discussão sobre
os arbítrios jurídicos da Lava-Jato.
Os argumentos do procurador são a mesma
xaropada cínica usada pela Globo desde a Ação Penal 470, sobre prender “ricos e
poderosos”.
É uma espécie curiosa de bolchevismo
plutocrático.
A jurisdição de exceção sempre foi uma
voraz consumidora de clichês populistas. Dallagnol, representante desse bizarro
jacobinismo seletivo, faz coro aos porta-vozes da família Marinho: prendam os
ricos, prendam os poderosos, desde que, naturalmente (mas isso eles não falam),
não sejam nós mesmos!
Alguns senadores brasileiros, por
exemplo, já viajaram à Venezuela, acompanhados de obedientes repórteres da
Globo (e depois não se sabe porque a profissão é considerada, segundo pesquisa
divulgada hoje, a pior do mundo), para visitarem um “preso político” daquele
país, devidamente condenado pela Justiça.
A mesma imprensa, no entanto, não faz
outra coisa a não ser campanha, explícita ou por omissão, em favor de mais
prisões políticas no Brasil. Há poucos dias, três membros do MTST foram presos
em São Paulo, por razões puramente políticas, e enviados a um presídio, sem que
nossa valente “imprensa livre” tenha se manifestado.
Voltemos ao caso Dirceu. Mais uma vez,
não sou eu quem digo, e sim o judicioso e prudente Wanderley Guilherme dos
Santos, no capítulo intitulado A expropriação constitucional do voto, o último
do livro já mencionado acima:
De novo, não atesto a inocência de José
Dirceu, porque não tenho conhecimento para tanto. Mas, ainda que culpado, ele
não esteve sujeito a processo civilizado, imparcial.
Ao final do volume, escrito no segundo
semestre de 2016, Wanderley Guilherme dos Santos encontra espaço para comentar
sobre o papel da imprensa e da Lava-Jato na construção do golpe parlamentar de
2016.
A imprensa, finalmente, é ator (…)
crucial na trincheira da agitação e propaganda. Cabe a ela a difusão do
noticiário alimentador da insatisfação larvar de diversos grupos, dispondo-os
para a perversão psicológica de que a substituição da presidência da República
se impõe pelo caráter agônico da crise. Competentes geradores de ansiedade e
angústia, os meios de comunicação impressa tornam-se determinantemente letais
como serial killers de caráter e reputação ao controlarem rádios e,
fundamentalmente, canais de televisão. (…) O sequestro do poder constituinte do
povo se processa por golpe parlamentar, em colusão tácita com o Judiciário e o
empresariado, tendo a unanimidade relevante da imprensa como filtro do
noticiário que chega às grande massas. A imprensa colabora decisivamente para a
consolidação do poder usurpado substituindo a conexão de sentido entre eventos,
a racionalidade comum à maioria das pessoas na percepção dos acontecimentos,
pela imposição de causalidades precárias entre ações de governo e artigos do
Código Penal. Na atual conjuntura, contam os golpistas, de forma transitória,
com a violenta operação dos procuradores e juízes da Lava-Jato, patologicamente
obsessiva em atribuir malignidade por intenção a fatos insignificantes.
Ao final do livro, Wanderley alerta que
o impeachment de Dilma Rousseff inaugura uma tecnologia golpista que poderá ser
exportada para o resto do mundo:
O Brasil não restará solitário no
conjunto de golpes parlamentares com benção constitucional. Está apenas
anunciando as vicissitudes democráticas do século XXI.
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