É necessário buscar um novo projeto de sociedade
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É necessário buscar um novo projeto de sociedade
Por Luís Felipe Miguel
No Jornal GGN
No Jornal GGN
Diz João Pereira Coutinho, obscuro conservador português que, por razões que fogem (ou não) ao meu entendimento, tem uma coluna semanal na Folha: "Como é triste a luta contra a ordem natural das coisas". Ele se referia à lei francesa que obriga, sob pena de multa, que anúncios publicitários informem quando as fotos foram manipuladas digitalmente, a fim de combater a disseminação de padrões irreais e nocivos de beleza (sobretudo feminina).
Nem sei se a lei francesa é a melhor opção. De minha parte, simpatizo mais com a ideia de simplesmente abolir a propaganda comercial. Mas é espantosa a falta de cuidado com que os traços constitutivos da nossa sociedade - o capitalismo, o consumismo, a dominação masculina - são logo apresentados como "a ordem natural das coisas". E eu que achava que estávamos chegando a uma situação em que a expressão "a ordem natural das coisas" só seria usada como deboche.
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Se a gente entende que as coisas do mundo social não seguem uma "ordem natural", mas são frutos de processos históricos, podemos nos perguntar quem ganha e quem perde com elas - e também como é possível mudá-las. É isso que Coutinho deseja evitar.
Páginas antes, uma posição parecida aparece na coluna de - claro - Hélio Schwartsman. Talvez mais esperto, não se abre tanto quanto seu colega português, mas o sentido é o mesmo. Ele observa como os mecanismos do mercado operam para ampliar a riqueza, criando novas oportunidades que vão tentar controlar ou mesmo regular. Seus exemplos: Airbnb e Uber. Permitem que eu extraia mais riqueza do meu tempo ocioso, do meu carro ocioso, do meu imóvel ocioso.
E qual é o custo disso? Não devemos perguntar? Nas cidades em que está mais enraizado, o Airbnb tem expulsado os inquilinos regulares e feito explodir os custo de habitação. É útil para os turistas, diante de uma indústria hoteleira que costuma praticar preços extorsivos. Mas seus efeitos vão muito além da relação entre proprietário e cliente; atingem os locais, incidem sobre a organização da vida urbana, promovem um novo nível de gentrificação e precisam ser todos incluídos na conta. A regulação do poder público, levando em conta outros interesses além dos proprietários, é indispensável.
Isso e muito mais pode ser dito do Uber. Sim, em muitas cidades os táxis são caros e a fiscalização do Estado, para garantir patamares de segurança e conforto, é ineficiente. Mas a conversa não para aí. Nós queremos mesmo cidades em que os carros particulares rodam sem parar, poluindo a atmosfera e colonizando todo o espaço urbano? Por que não investir, ao contrário, no desestímulo ao transporte individual? Por que aplicativos focado para o transporte coletivo não têm financiadores, não ganham visibilidade, não deslancham?
E mais: como prevenir a violência contra passageiros - em geral, passageiras - que a falta de controle permite? Como lidar com um aplicativo que continua rastreando seus usuários até cinco minutos depois de encerrada a corrida? Como garantir direitos de motoristas, naquilo que, sob a fachada de trabalho autônomo, é uma relação trabalhista de enorme precariedade?
Creio que a uberização é o passo seguinte à walmartização. Com a vertiginosa concentração da riqueza, a partir dos anos 1980, a solução para manter algum padrão de consumo para a classe média foi ampliar ainda mais a exploração da mão-de-obra menos qualificada, permitindo a venda de produtos muito baratos. Wal-Mart e McDonald's são exemplos icônicos; pagam salários irrisórios e oferecem condições de trabalho degradantes a seus empregados, que são a ponta final de uma cadeia produtiva toda marcada por isso - salários irrisórios e condições de trabalho degradantes. Mutatis mutandis, é o que o Uber oferece.
A solução não é individual - não é boicotar o Airbnb ou o Uber. O mundo está organizado de maneira a nos integrar nestes circuitos e a mera recusa individual torna-se fútil. É necessário buscar coletivamente um novo projeto de sociedade, em que o tempo livre não seja, como para Schwartsman, um desperdício, mas uma promessa de autonomia; em que o consumo não seja nossa meta; em que a convivência dos humanos entre si e com o meio-ambiente seja menos predatória; em que a desigualdade seja menos e menos tolerada. E em que a ordem das coisas não seja jamais aceita como "natural".
Luís Felipe Miguel é doutor em Ciências Sociais pela Unicamp, Professor do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília, onde coordena o Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades. Pesquisador do CNPq. Autor de diversos livros, entre eles Democracia e representação: territórios em disputa (Editora Unesp, 2014), Feminismo e política: uma introdução (com Flávia Biroli; Boitempo, 2014).
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