quarta-feira, 10 de janeiro de 2018

No Equador, a esquerda se fragmenta A ESCOLHA DO VICE EXIGE MUITO CUIDADO

Internacional

América do Sul

No Equador, a esquerda se fragmenta

por Murilo Matias, de Quito e Guayaquil — publicado 05/01/2018 00h16, última modificação 05/01/2018 11h42
O rompimento entre o presidente Lenín Moreno e seu antecessor, Rafael Correa, cria dúvidas sobre o futuro da "Revolução Cidadã"
Fotos: Juan Ruiz / AFP
Lenin Moreno.jpg
Lenín Moreno em reunião de seu gabinete em 3 de janeiro. Estilo e posições diferentes de Correa


Há pouco mais de seis meses, a esquerda latino-americana respirava aliviada com a eleição de Lenín Moreno à presidência do Equador. O resultado era imaginado como a garantia de continuidade da "Revolução Cidadã", projeto que completava dez anos no poder sob a liderança do então presidente Rafael Correa.
Quem esperava trégua no país com a manutenção do pólo progressista foi surpreendido pelo conflito aberto entre Correa e Moreno. O atual presidente, que foi vice de Correa até 2013 e teve seu apoio na campanha eleitoral, pelo partido Aliança País, rompeu com o antecessor. "O cidadão Rafael Correa é um opositor a mais”, afirmou Moreno recentemente em entrevista ao jornal El País.
A disputa entre as duas principais lideranças do movimento na arrancada da nova gestão está instalada no centro do governo. O vice-presidente eleito, Jorge Glas, foi detido acusado de estar associado à corrupção em licitações envolvendo a empreiteira brasileira Odebrecht. Em uma decisão baseada sobretudo em delações premiadas, foi sentenciado a seis anos de reclusão.
O fato de Moreno defender a investigação e destituir Glas de suas funções foi encarado como gesto de traição por Correa, radicado na Bélgica desde o fim de seu mandato.
A convocação, para fevereiro, de um referendo popular que pode proibir a reeleição indefinida para cargos públicos gerou mais um fator de desgaste. Correa é a favor da possibilidade de reeleição. "Veja, o que acontece com Merkel na Alemanha é liderança e maturidade, se é no Equador é ditadura e caudilhismo. Isso é síndrome de terceiro mundo", criticou Correa. Na quinta-feira 4, o ex-presidente voltou ao país para liderar a campanha contra o fim da reeleição.
A disputa pelo controle do partido, por sua vez, acrescenta instabilidade ao cenário político. No fim de 2018, o Equador foi sacudido pelo retorno do ex-presidente ao país por duas semanas para um giro nacional e para a convenção da Aliança País. Na ocasião, Lenín Moreno perdeu o comando da sigla e recorreu ao Conselho Nacional Eleitoral. Diante da disputa, o futuro da legenda é incerto.
Mesmo com a fratura na Aliança País, bloco majoritário no congresso com 74 deputados dentre os 137 eleitos, Moreno promove uma agenda propositiva.
Seus apoiadores lembram programas como o Médico do Bairro, planejado para levar 14 mil profissionais de saúde a áreas vulneráveis; a construção de 20 mil moradias do Casa para Todos; a expansão da Missão Manuela Espejo, referência no trabalho junto a pessoas portadoras de deficiência; o financiamento a setores da agricultura familiar e a jovens estudantes; a redução em 10% dos supersalários de altos servidores; e a venda de um dos aviões presidenciais e de carros de luxo sob propriedade do Estado.
Jorge Glass.jpg
Jorge Glas: condenado por corrupção
Neste cenário, a aprovação de Lenín Moreno está próxima dos 80%, segundo pesquisa do Centro de Pesquisa e Estudos Especializados (Ciees). "Existe uma ruptura grande no Aliança, mas as pessoas estão tranquilas, não há marchas ou grandes movimentos", diz a musicista de Quito Karol Contreras, eleitora do partido. "Lenín parece estar fazendo bem as coisas e ganhando popularidade, inclusive com antigos opositores, enquanto os seguidores de Correa estão mais cautelosos esperando os próximos acontecimentos", afirma.
Para outros, a aparente normalidade deve-se à manipulação dos meios de comunicação e dos setores dominantes. A judicialização da política, especialmente no caso de Glas, é comparada pelos apoiadores de Correa aos casos de outros líderes sul-americanos populares, como os ex-presidentes da Argentina e do Brasil, Cristina Kirchner e Luiz Inácio Lula da Silva.
"Se equivocam os que creem na saída de Rafael Correa do cenário político e no fim da Revolução Cidadã. O governo rendeu-se aos pactos tradicionais com os setores mais conservadores, o que em médio prazo pode trazer consequências sociais terríveis", afirma Gabriela Rivadeneria, deputada do Aliança País, aliada de Correa, que presidiu a Assembleia Nacional entre 2013 e 2017. "Como bloco vamos a manter a coerência com nosso projeto, nossa história e identidade".
Fim da "revolução"?
Diante do fracionamento no campo da esquerda, abriu-se espaço para novos e velhos nomes da política local. Logo após a apertada vitória sobre o banqueiro Guillermo Lasso, Moreno propôs a realização de um amplo diálogo nacional, incluindo as forças opositoras e movimentos sociais que tiveram relação tensa com o governo nos últimos anos. Moreno promete buscar uma "concertação", estilo diferente do de Correa, bem mais assertivo.
A medida também é criticada. "O legado de Correa está sendo destruído e o Executivo concentra-se tanto nas brigas e disputas que não consegue governar. Há uma contrarrevolução em andamento nesses seis meses de gestão", comenta o aposentado Jimmy Enriquez, eleitor do Aliança País em Quito. Richard Gonzales, pequeno empresário de Guayaquil e crítico de Correa, discorda. "Agora está melhor", afirma.
A mesa de negociações deu voz a dois presidenciáveis derrotados na eleição. Ivan Espinel, que havia apoiado o Aliança País no segundo turno, tornou-se ministro da pasta de Inclusão Econômica e Social. Em dezembro, renunciou ao cargo pressionado por denúncias de corrupção envolvendo atividades públicas passadas. As conversas com Dalo Bucaran, do Força Equador, também geraram inconformismo. Ele é filho do ex-presidente Abdala Bucaran, acusado de corrupção.
"Uma mudança de estilo não deve ser motivo de temor, pois as revoluções não são feitas por um presidente sozinho, mas junto com suas bases, e o povo já não se deixa enganar e não permitirá que retirem seus direitos alcançados, graças à corrente de esquerda que segue vigente e mudando a vida de milhões de pessoas na América do Sul", afirma ", afirma, em tom conciliador, Kharla Chávez, congressista do Aliança País.
Rafael Correa
Efígie de Rafael Correa vendida em rua de Quito em 31 de dezembro. As efígies são tradicionais na virada do ano no Equador
"Projetos contra a corrupção como a lei contra os paraísos fiscais ou a proposta de lei para erradicar a violência contra as mulheres são signos de que a Revolução Cidadã vive novo momento, mas de nenhuma maneira terminou", 
Dentre as diferenças de comportamento que resultaram em mudanças efetivas pode-se citar o fim das sabatinas, eventos promovidas por Correa para apresentar dados governamentais à população, e a aproximação com atores sociais como a Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador (Conaie). "A estrutura do correísmo não deixa o governo avançar. No momento existe mais espaço para o diálogo, mas sem grandes avanços no que pleiteamos. A ala morenista ainda não está no controle e busca base social para se consolidar", afirma Apawki Castro, diretor de comunicações do coletivo indígena.
Em meio à disputa, o tema da corrupção segue como protagonista. Moreno tem aumentado as críticas sobre as suspeitas de desvio em atos de Correa, mas dentro de seu campo político enfrenta problemas. No fim de novembro, a imprensa equatoriana divulgou um áudio do secretário da presidência, Eduardo Mangas, no qual ele levanta dúvidas sobre a lisura do processo eleitoral e sugere o término do diálogo nacional. O governo nega as duas coisas.
Diante dos desdobramentos, a contenda entre o perfil carismático de Lenín Moreno e a liderança de Correa promete persistir polarizando a esquerda equatoriana. "Lenín sempre teve uma imagem muito positiva, mesmo de quem não votou nele, então resta saber se o desgaste do poder o afetará. Correa, por sua vez, gera paixões e deixou a administração com 70% de aprovação", afirma Tatiana Larrea, diretora de Pesquisa do Centro de Pesquisa e Estudos Especializados (Ciees).
"Os problemas do Aliança País relacionam-se com a falta de institucionalidade de nossos partidos de modo que esse conflito, ainda que surpreendente, remete a disputas antigas dentro da estrutura" diz. 'Quanto à corrupção, é sempre um tema perigoso. O governo pode capitalizar essa situação agora, mas futuramente pode se voltar contra ele próprio", conclui.
Fonte: Carta Capital

Nenhum comentário:

Postar um comentário