Política
Lei de Cotas?
Polêmica racial e ‘reelitização’ no Itamaraty
Justiça barra aspirantes a diplomata indevidamente autodeclarados negros em concurso que retomou critério eliminatório da prova de inglês
Roberto Stuckert Filho/PR
Decisão do Itamaraty de retomar a prova de inglês como critério eliminatório prejudica a presença dos negros na carreira diplomática
O Itamaraty começa o ano em clima de polêmica racial. No fim de 2017, a Justiça proibiu a posse de candidatos a diplomata que aparentemente declararam-se negros de forma indevida. O diretor da escola de formação do Itamaraty foi pressionado a recuar de fazer do inglês de novo uma disciplina eliminatória no concurso da Casa, uma opção, também ao que parece, prejudicial a afrodescendentes e à aplicação da Lei de Cotas.
A proibição da posse foi determinada por uma liminar do juiz Ed Lyra Leal, da 22a Vara de Brasília. Ele atendeu a um pedido do Ministério Público Federal feito uma ação civil pública movida pelo MPF contra dispositivos do concurso realizado em 2017 para selecionar aspirantes a diplomata.
Na seleção, o Itamaraty buscou seguir a Lei de Cotas, de 2014, que reserva a negros 20% das vagas de concursos públicos. O processo tinha uma comissão para verificar se os postulantes autodeclarados negros eram aptos à condição de cotista. Uma outra comissão revisaria casos de pessoas barradas na verificação que se sentissem injustiçadas.
A primeira comissão excluiu cerca de 40 pessoas, das quais umas 25 conseguiram decisão favorável na revisão.
Em uma averiguação preliminar, a procuradora da República Anna Carolina Resende Maia Garcia, do 2o Ofício da Cidadania do MPF no Distrito Federal, pediu ao Itamaraty fotos dos autodeclarados negros e a gravação das entrevistas deles. Solicitou ainda as decisões das duas comissões.
A conclusão da procuradora foi que havia candidatos indevidamente autodeclarados negrose que houve erro por parte da comissão revisora que aceitou os recursos daquelas pessoas. Anna Carolina então decidiu acionar a Justiça, com uma ação apresentada em 14 de dezembro.
“É nítido que não foram as características fenotípicas desses candidatos que motivaram o deferimento ou indeferimento dos recursos”, afirma a procuradora na ação. “Nota-se, da simples análise das fotos, que os requeridos não têm a aparência física das pessoas negras.”
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O juiz Leal entendeu haver “o risco de lesão grave” se o concurso fosse adiante, pois quem não merece tiraria proveito da Lei de Cotas. “Mais relevante, o ingresso de candidatos desprovidos da qualificação legal representaria patente iniquidade perpetrada contra candidatos aprovados no concurso que preenchem o requisito da cota”, escreveu ao dar a liminar, em 19 de dezembro.
O governo não é o único réu na ação. Seis candidatos que conseguiram decisão favorável da comissão revisora também são: Filipe Mesquita de Oliveira, Matheus Freitas Rocha Bastos, Paulo Henrique de Sousa Cavalcante, Rebeca Silva Mello, Rodolfo Freire Mache e Verônica Couto de Oliveira Tavares.
Um dos citados na liminar do juiz Leal e na ação do MPF, Rodolfo Maiche diz ser indevida sua menção. “Fui um dos cotistas do concurso de 2017, mas não obtive nota final suficiente para lograr uma das 6 vagas reservadas pela lei 12.990/2014 (…) Donde verifica-se que não fui convocado para realização dos exames médicos, portanto não fui nomeado e, por conseguinte, não tive nomeação barrada por liminar exarada pelo TRF da 1º região”.
Eram seis os réus pois este é o número reservado a cotistas no Itamaraty. Os concursos anuais para diplomata costumam abrir 30 vagas.
“Para nós, 80% dos seis são ‘pardos claros’. ‘Pardos pretos’ e ‘pardos pardos’ vêm primeiro para fins de cotas”, diz Frei David, diretor da Educafro, entidade militante das ações afirmativas e da inclusão social de negros e pobres. “É o terceiro ano seguido que as vagas de negros são ocupadas por ‘pardos brancos’ no Itamaraty.”
David conversou sobre o assunto com o diretor do instituto Rio Branco, a escola de formação do Itamaraty, um dia antes da ação do MPF. O embaixador José Estanislau do Amaral Souza Neto topou abrir à sociedade civil a participação nas comissões de verificação e revisora do concurso de 2018, para evitar novas polêmicas. Mas não quis voltar atrás no concurso de 2017. Disse isso à procuradora Anna Carolina, por telefone.
Souza Neto foi o responsável por ressuscitar em 2017 o caráter eliminatório da prova de inglês no concurso. Fixa-se uma nota e, quem tira menos, dá adeus à disputa. A prática havia sido abolida em 2004, primórdios do governo Lula, com o objetivo de democratizar o acesso à carreira, tida como restrita a brancos endinheirados.
“É uma reforma democrática que permitirá a um número maior de brasileiros que nunca tiveram chance de viver no exterior ter condições de concorrer em razoável igualdade de condições, desde que provem sua excelência e capacidade de aprendizado”, dizia o ministro das Relações Exteriores na época, embaixador Celso Amorim.
Para compensar a entrada de candidatos com inglês precário, o Itamaraty passou a investir em aulas paralelas e, após um ano e meio, os estudantes tinham de apresentar certificado de proficiência no idioma. A lógica é que o futuro diplomata deveria terminar sua formação falando inglês, não que precisasse ser assim no começo.
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O atual diretor da escola pensa diferente. Diz estar “apenas reintroduzindo uma boa prática que sempre existiu no passado”. Inglês, afirma, é o “idioma mais usado internacionalmente e sem o qual um diplomata seria um profissional incompleto, incapaz de desempenhar plenamente suas funções". O caráter eliminatório da prova “obedece assim ao requisito do bom exercício da profissão”.
Essas explicações constam de uma troca de cartas com Frei David, à qual CartaCapital teve acesso. O contato começou em junho passado e culminou com um encontro entre eles em 13 de dezembro, em Brasília. A intenção da Educafro era fazer o Itamaraty desistir do critério eliminatório do inglês.
Segundo a reportagem apurou, ao ressuscitar o critério, Souza Neto agiu aparentemente por conta própria. Sem estímulos de professores do Rio Branco que poderiam estar preocupados com a qualidade dos alunos ou do chanceler tucano Aloysio Nunes Ferreira.
O embaixador de 61 anos chegou ao cargo no início do governo Temer, em outubro de 2016. Foi colaborador direto de outro presidente, o tucano Fernando Henrique Cardoso (1995-2002). Era da assessoria diplomática do Palácio do Planalto entre 1995 e 1997. Ao sair da gestão FHC, trabalhou por cinco anos no setor privado, em empresas como a multinacional Unilever.
Em 1994, foi assessor no ministério da Fazenda ao lado do diplomata Sérgio Danese, atual número 2 do Itamaraty. O número 2 da época em que o inglês deixou de ser excludente vê com o pé atrás a volta da prática. “Era discriminatório. O candidato podia ter uma média alta, se soubesse muito de outras disciplinas, isso tinha de ser levado em conta”, afirma Samuel Pinheiro Guimarães.
“Dizem que a qualidade dos alunos do Rio Branco teria caído. Não sei. Inglês e francês são indispensáveis na diplomacia, o português é pouco falado no mundo, há que se reconhecer”, completa o embaixador.
“A grande vítima do critério eliminatório é o povo negro, dado o fosso histórico que nos separa dos brancos, causado por séculos de escravidão e segregação racial”, diz Frei David. Um levantamento da Educafro nos resultados dos três últimos concursos do Itamaraty, incluindo o de 2017, indica que de fato os negros vão sofrer mais.
Em 2017, 40% dos candidatos cotistas tiraram em inglês menos do que a nota mínima, enquanto entre os brancos foram 9%. Em 2016, foram 44% e 9%, respectivamente. Em 2015, 78% e 51%.
Essa decisão do Itamaraty é um “retrocesso” que favorece quem “passam férias na Europa duas a três vezes por ano e tem curso de inglês desde os 6 anos”, diz David. “É a re-elitização" da diplomacia.
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