Do Neoliberalismo ao Chavismo: 29 anos do 'Caracazo' na Venezuela
O 'Caracazo' foi o produto de uma síntese das insatisfações, das injustiças e do sufocamento de nível extremo vivenciado pelo povo venezuelano durante o período em que vigoraram as políticas neoliberais do Pacto de Punto Fijo
Há 29 anos, nos dias 27 e 28 de fevereiro de 1989, acontecia na Venezuela o que ficou conhecido como “Caracazo” ou “Sacudón”, quando estourou uma rebelião popular onde milhares de pessoas saíram espontaneamente às ruas do país saqueando o comércio como forma de protesto contra as medidas neoliberais impostas pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) e implementadas pelo então presidente da época, Carlos Andrés Pérez. Esse episódio é considerado como o fato histórico responsável pelo desencadeamento da Revolução Bolivariana, comandada anos depois por Hugo Chávez.
“Caracazo”: uma rebelião popular
A população venezuelana estava há décadas à mercê do modus operandi da oligarquia local, caracterizado por uma intensa corrupção, exploração, desigualdade social, demagogia, dependência externa e abuso de poder. A manutenção dessa agenda política conservadora e antidemocrática foi possibilitada graças ao Pacto de Punto Fijo, estabelecido em 1957 e articulado pelos EUA em conjunto com os partidos tradicionais e conservadores que subordinavam a democracia e o sistema político aos interesses das oligarquias que se alternavam no poder, impedindo a entrada de outras organizações políticas.
O “Caracazo” foi portanto o produto de uma síntese das insatisfações, das injustiças e do sufocamento de nível extremo vivenciado pelo povo venezuelano durante o período em que vigoraram as políticas neoliberais do Pacto de Punto Fijo. Para se ter uma ideia, nesse período histórico a estrutura social do país se encontrava extremamente debilitada gerando uma vulnerabilidade social de grandes proporções onde cerca de 3,5 milhões de crianças viviam em situação de pobreza, 83% da população carecia de serviços básicos, 5% do empresariado concentrava 70% da produção do país, 70% das pessoas viviam abaixo da linha da pobreza, 30% viviam literalmente em estado de pobreza absoluta, o PIB (Produto Interno Bruto) encolheu em 20%, o salário mínimo perdeu 48% de seu valor e o desemprego oscilou entre 25% a 30%, conforme dados do governo¹. Um horripilante quadro social que pode ser avaliado como uma crise humanitária, onde uma em cada cinco pessoas passava fome no país.
Eleito pela segunda vez, Carlos Andrés Pérez assumiu o seu segundo mandato como presidente da Venezuela no dia 2 de fevereiro de 1989. Dias após a sua chegada ao governo, o presidente anunciou um pacote de medidas que agravou ainda mais a situação do país: aumento abusivo do preço da gasolina, da passagem de ônibus e dos alimentos. Tais aumentos foram o estopim para que povo venezuelano se insurgisse contra a falsa democracia e as medidas econômicas neoliberais que beneficiavam somente a parcela rica da sociedade.
A rebelião popular foi a saída possível e necessária para desatar as amarras da repressão. Cansados de tamanho sufocamento e sem condições econômicas para comprar alimentos e produtos básicos de subsistência, uma multidão de explorados e exploradas saíram espontaneamente às ruas em um protesto violento, saqueando o comércio em várias cidades do país numa busca desesperada pela própria sobrevivência. As manifestações começaram na cidade de Guarenas, localizada a 15 quilômetros da capital Caracas, e se estenderam por diversas outras cidades do território nacional.
A reação do governo de Carlos Andrés Pérez foi a de suspender as garantias constitucionais, decretando o toque de recolher e impulsionando um massacre comandado pelo exército que utilizou 4 mil militares, 4 milhões de munições e vários tanques de guerra para conter os protestos populares, resultando em uma das repressões mais sangrentas da história venezuelana. Mesmo depois que os saqueios tiveram fim, os militares continuaram disparando contra casas e edifícios. O número de mortos e feridos foi tão grande que os hospitais não deram conta de atender tamanha demanda. Ainda nos dias de hoje não se sabe ao certo o número de vítimas, no entanto, números oficias do governo da época apontam a morte de 300 pessoas, 2.000 mil desaparecidas e outras milhares de feridas. Entretanto, números extraoficiais alegam a morte de pelo menos 3.000 pessoas.
O início da Revolução Bolivariana
Fato é que o “Caracazo” modificou drasticamente os rumos da sociedade venezuelana, sendo que a partir desse fato histórico abriu-se uma nova janela de oportunidades. No ano seguinte ao massacre, em 1990, pela primeira vez na história do país um presidente em exercício ia a julgamento por acusações de corrupção, resultando em prisão anos depois.
No entanto, antes mesmo da prisão de Pérez, a crise social se aprofundava e no interior do exército surgiam disputas e tensionamentos internos. Foi então que no fatídico dia 4 de fevereiro de 1992, o então Tenente Coronel do exército, Hugo Rafael Chávez Frías, liderou uma rebelião de caráter cívico-militar. O golpe fracassou pois não havia organização suficiente para sustentá-lo. Hugo Chávez fez então um memorável discurso televisivo em rede nacional, onde assumiu as consequências do levante militar, num tempo onde ninguém assumia responsabilidade nenhuma sobre as questões políticas pelas quais passava o país. O discurso, que durou pouco mais de um minuto, foi suficiente para atrair o afeto e a simpatia do povo venezuelano, que vinha sendo enganado há tempos pelos discursos demagógicos, populistas e falaciosos dos oligarcas do puntofijismo.
Em certa oportunidade, em um discurso realizado no Cuartel de La Montaña, Hugo Chávez fez questão de diferenciar a tentativa de golpe de 1992 dos golpes costumeiramente perpetrados pelas elites de vários países latino-americanos:
“Golpistas são os que se unem à oligarquia para atropelar seu próprio povo, golpistas são os que pretendem instalar na Venezuela uma ditadura, golpistas e apátridas são os que se ajoelham ao imperialismo norte-americano. Nós somos anti-imperialistas, revolucionários, bolivarianos, e a cada dia somos mais e somos em maior profundidade.”
Em 2002, durante o décimo aniversário da rebelião cívico-militar do 4 de fevereiro de 1992, Hugo Chávez resgatou a importância histórica do “4F” (assim ficou reconhecido o 4 de fevereiro no país) e sintetizou o que significou a data:
“Claro, esse dia demos um golpe mortal no Pacto de Punto Fijo e lá estão eles debatendo-se entre os mortos políticos da história que não retornarão. Então, o 4 de fevereiro foi isso, a morte de um regime deslegitimado, pervertido e podre que não trazia benefício nenhum para a Venezuela. Mas o 4 de fevereiro ao mesmo tempo gerou a força que foi capaz de parir a nova Pátria.”
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Reprodução/Telesur
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Após o “4F”, Chávez esteve preso por 2 anos, o que serviu para catapultar sua popularidade, forjando no imaginário coletivo um personagem histórico que foi capaz de assumir responsabilidades e lutar contra as injustiças vividas pelo povo venezuelano. Chávez teve sua liberdade de volta durante o governo do então presidente eleito Rafael Caldeira e, logo depois, em 1998, venceu as eleições presidenciais da Venezuela com 56,2% dos votos, com uma campanha focada num projeto estratégico baseado na participação popular via poder constituinte.
A partir de então, ao longo de 19 anos de governo – primeiro com Chávez e agora com Nicolás Maduro – o chavismo sustenta 23 vitórias eleitorais, sendo derrotado em apenas duas ocasiões. Esse número expressivo de vitórias é justificado pelas transformações políticas, econômicas e sociais proporcionadas pelos governos chavistas, sendo que os indicadores socioeconômicos da Venezuela melhoraram exponencialmente durante esse período:
- O Gini² – índice utilizado pelo Banco Mundial para medir a desigualdade social – passou de 0,498 para 0,394 (quanto mais próximo de zero melhor), sendo que o índice brasileiro ficou em 0,520 (3º pior da América Latina) se comparado no mesmo período.
- O IDH³ (Índice de Desenvolvimento Humano) – medida utilizada pela Organização das Nações Unidas (ONU) para classificar os países pelo seu grau de “desenvolvimento humano” – da Venezuela ficou na colocação 71º entre 188 países, a frente inclusive do Brasil e da média dos índices dos países latino-americanos.
- O desemprego⁴ caiu de 14% em 1999 para 5,5% em 2014.
- A taxa de analfabetismo⁵ foi reduzida de 9,1% (antes do chavismo) para 4,7% em 2015.
- A expectativa de vida⁶ aumentou de 72 anos em 1996 para 75 anos em 2014.
- A pobreza⁷ foi reduzida de 49,4% para 26,4% em 2010.
- A Venezuela passou a ser o 2º país na América Latina com maior proporção de estudantes universitários⁸, cerca de 10,5 milhões ou 34% da população, ficando atrás apenas de Cuba.
Novo “Caracazo” à vista?
Apesar de todos os avanços da Revolução Bolivariana a Venezuela vive nos dias de hoje uma crise econômica e uma instabilidade social que tem trazido enormes dificuldades ao país. Ao contrário do que se diz nos grandes meios de comunicação, a Venezuela não passa hoje por uma crise humanitária tal como na época do “Caracazo”. Todavia, a situação é alarmante uma vez que as forças imperialistas comandadas pelos EUA em coordenação com países europeus e latino-americanos tal como Colômbia, possuem por objetivo levar a Venezuela a um novo colapso, no sentido de enfraquecer o chavismo, retomar o controle político do país e submete-lo aos interesses norte-americanos, tal como já ocorre com Brasil, Argentina, Colômbia, Peru e diversos outros países latino-americanos.
Trata-se portanto de uma restauração conservadora de caráter neoliberal no continente latino-americano, após um período em que os governos de esquerda foram predominantes em vários países. As táticas para submeter as nações latino-americanas aos interesses norte-americanos são várias e dependem da realidade de cada país. No entanto, independentemente da tática, o papel dos grandes meios de comunicação é sempre crucial pois é através deles que as forças imperialistas e as oligarquias locais buscam legitimar suas intervenções.
No Haiti (2004), por exemplo, houve participação direta do exército norte-americano, que sequestrou o presidente eleito Jean-Bertrand Aristide e a “opinião pública” afirmou que o presidente havia renunciado voluntariamente. Em Honduras (2009) as forças armadas nacionais se incumbiram de realizar o serviço, mas também houve influência direta norte-americana uma vez que o Chefe do Estado Maior, Romeo Vázquez, e o Chefe da Força Aérea, General Luis Prince Suazo, foram graduados pela School of the Americas e a base militar de Honduras, operada por soldados norte-americanos, foi utilizada para levar o presidente eleito Manuel Zelaya. No Paraguai (2012) o presidente Fernando Lugo sofreu um impeachment sendo acusado de ser o responsável pelo enfrentamento entre campesinos e policiais, onde morreram 17 pessoas. A polícia paraguaia no entanto recebeu uma doação em equipamentos militares no valor de 2 milhões de dólares e o Chefe da Polícia Nacional, Paulino Rojas, recebeu treinamentos no FBI. No Brasil (2016) não houve, a princípio, participação direta dos militares. O golpe teve caráter jurídico, onde a presidenta eleita Dilma Rousseff foi destituída por supostos “crimes de responsabilidade”. Tal como revelado pelo Wikileaks, a presidente Dilma Rousseff e seus principais assessores foram monitorados pelo governo estadunidense e a estatal Petrobras também fez parte deste pacote. Documentos internos do governo dos EUA que foram publicados pelo Wikileaks dizem que Sergio Moro, juiz responsável por coordenar os trabalhos da Operação Lava Jato, participou de cursos de treinamentos para agentes judiciais e policiais federais brasileiros nos EUA.
No entanto, a situação da Venezuela é ainda mais complicada. O país passou por uma tentativa fracassada de golpe em 2002, liderada também por militares egressos da School Of Americas, entretanto o povo venezuelano acabou por reconduzir o presidente Chavez ao poder. Uma das táticas que vem sendo utilizada mais recentemente é conhecida no meio militar como Guerra de 4ª Geração (4GW) ou Guerra Assimétrica. Esse tipo de guerra faz referência a última fase da guerra na era da tecnologia, informática e das comunicações globais. Segundo o sociólogo chileno Daniel Martinez Cunil, nas guerras de 4ª geração “desaparece o conceito usual de campo de batalha e toda a sociedade atacada torna-se a mesma. As mensagens emitidas pela mídia serão um fator determinante para influenciar a opinião pública, tanto no âmbito interno quanto internacionalmente, pois a propaganda constitui a arma estratégica e operacional dominante nesse tipo de guerra. As ações táticas visarão a cultura do inimigo, predispondo a população contra seus governos. Isso permitirá que um pequeno número de combatentes ataquem e causem grandes danos a elementos importantes de natureza civil, na retaguarda inimiga.”.
A Guerra de 4ª Geração tem como arma estratégica as operações de ação psicológica midiática. Em outras palavras, significa dizer que há uma produção e disseminação de notícias, manchetes, imagens, gifs e demais conteúdos midiáticos que atraem a curiosidade e excitam os sentidos das pessoas no sentido de manipular suas consciências através de imagens imbuídas de crenças e conceitos. Através de um bombardeio de informações fragmentadas, as pessoas deixam de analisar o sentido e a intenção (O que é? Porque? Para que?) de cada informação, convertendo-se em meros repetidores de frases feitas (Ex: “A Venezuela vive uma ditadura”).
O bombardeio midiático é acompanhado ainda de outros métodos que visam a desestabilização do país, tais como: espionagem, financiamento do paramilitarismo, estímulo à corrupção, golpe militar, utilização de dispositivos diplomáticos e comunicacionais para legitimar intervenções humanitárias, sabotagem do preço do barril de petróleo, embargo de bens, sanções econômicas, manipulação do preço do dólar, corte no abastecimento de alimentos e medicinas e ações terroristas tais como as praticadas durante os 40 dias de terror que o país viveu em 2017, quando aconteceram os ataques das chamadas “guarimbas” que são grupos terroristas financiados pelos EUA.
O objetivo principal é levar a Venezuela a um desgaste econômico, político e social que justifique uma intervenção “humanitária” por parte dos EUA e a partir daí reorganizar todo o aparato estatal para servir a seus interesses. A principal motivação norte-americana é mais uma vez o petróleo e as demais riquezas naturais existentes na Venezuela. O país possui a maior reserva de petróleo do mundo (estimada em 300.878.033 milhões de barris), a 4ª reserva de ouro (estimada em 4,3 mil toneladas), a 9ª maior reserva de agua doce (1.320 km³), 6ª maior reserva de gás natural (8.287.000.000.000 m³), além de possuir quinze dos dezessete minerais mais utilizados do mundo, entre eles o coltan, que possui o preço mais elevado que o ouro e o diamante e é utilizado para fabricação de novas tecnologias e dispositivos eletrônicos.
Por fim, diante das dificuldades históricas produtivas do país, da dependência econômica do petróleo, somado a todas as ameaças, interesses e intervenções externas, não é descartável a hipótese de um novo colapso no país. No entanto, o novo “sacudón” se daria por outros motivos e sob outras condições. Ao contrário do que aconteceu no passado, o governo que se encontra no poder hoje não tem por objetivo colocar o povo venezuelano em uma situação de miséria e superexploração, muito pelo contrário. O chavismo busca, antes de mais nada, a construção e a defesa de uma pátria livre e soberana, através de uma democracia direta, inclusiva e participativa.
* Caio Clímaco é cientista do estado pela UFMG, mestrando em Ciencias para el Desarrollo Estrategico na Universidade Bolivariana da Venezuela
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