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Especial - Dia Internacional da Mulher
'Síndrome do impostor', um problema trazido à tona pelas mulheres
por Dimalice Nunes e Tory Oliveira — publicado 08/03/2018 00h10, última modificação 08/03/2018 18h37
O fenômeno derruba a autoestima e faz com que profissionais bem-sucedidas sintam-se uma “fraude” na vida profissional
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Ansiedade generalizada, falta de auto-estima, depressão e frustração são alguns dos sintomas mais reportados entre as que sofrem com o problema
Um fantasma ronda a autoestima de mulheres, especialmente daquelas que ocupam cargos de destaque no mundo empresarial: sentir-se com frequência uma impostora, uma verdadeira fraude, indigna de receber tanto destaque em sua área de atuação, a despeito de todos os elogios, feedbacks positivos e outras provas de reconhecimento.
Consagrada no senso comum pelo termo "síndrome do impostor", o fenômeno não é exclusivo ou inerente ao gênero feminino, mas tem sido debatido sobretudo entre as mulheres. Ao mesmo tempo, identificar, entender e batalhar para minimizar tais pensamentos auto-depreciativos também pode ser uma poderosa ferramenta na luta por mais equidade entre os gêneros no ambiente corporativo.
A chamada síndrome do impostor foi descrita pela primeira vez em 1978, pelas psicólogas norte-americanas Pauline Clance e Suzanne Imes, ambas pesquisadoras da Universidade Estadual da Georgia, no artigo The Imposter Phenomenon in High Achieving Women: Dynamics and Therapeutic Intervention.
O trabalho é resultado de cinco anos de pesquisas com 150 mulheres altamente bem-sucedidas: detentoras de títulos de doutorado, respeitadas em suas áreas profissionais ou estudantes reconhecidas pelo bom desempenho acadêmico. No entanto, apesar das notas máximas, títulos e prêmios recebidos, essas mulheres não se consideram inteligentes ou capazes. Na verdade, diz o estudo, elas estão convencidas de que todos os outros estão enganados a respeito de suas habilidades. Acreditam que todo o sucesso é fruto do acaso, da sorte ou de algum erro no processo.
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Muitas estudantes, afirmam Clance e Imes, literalmente fantasiam que só foram aceitas na universidade devido a algum erro. Ou que tiraram boas notas em um exame por sorte. E o pior: elas temem que, a qualquer momento, alguém descobrirá que são impostoras ou uma fraude.
Ansiedade generalizada, falta de auto-estima, depressão e frustração relacionada com a impossibilidade de atingir padrões de excelência auto-impostos são alguns dos sintomas mais reportados entre as mulheres que participaram do estudo.
Além de afetarem o desempenho e a produtividade, essas condições atuam como barreiras internas "invisíveis", impactando o bem-estar e a saúde mental, explica a doutora em Psicologia pela UnB, Renata Muniz Prado, cujas pesquisas focam-se na identificação e promoção do talento feminino.
"As pessoas acometidas pela síndrome do impostor não desfrutam seus sucessos, gastam muita energia para manter-se em alta performance pois criam padrões elevados para si mesmo, e tendem ao perfeccionismo, o que pode resultar tanto em excesso de preparo para o trabalho com mais anos de estudos e formações, como levar à procrastinação", afirma.
Acostumada aos holofotes desde criança, prestigiada mundialmente por seu talento e duas vezes reconhecida como Melhor Atriz na premiação do Oscar, Jodie Foster confessa que tudo parecia um mero golpe de sorte. Por muito tempo, temerosamente fantasiou que viriam até sua casa, bateriam na porta e pediriam o prêmio de volta.
A aclamada poeta Maya Angelou já havia escrito 11 livros, mas ainda debatia-se com a sensação de que era uma fraude. "Toda vez eu pensava: agora eles vão descobrir. Eu enganei todo mundo e eles vão descobrir".
Sheryl Sandberg, braço-direito de Mark Zuckerberg na bilionária Facebook, também confessa: "Tem dias que acordo me sentindo uma fraude, sem ter certeza que eu deveria estar onde estou".
A psicóloga Beatriz Nóbrega, hoje consultora, atuou por quase 20 anos em altos cargos na área de recursos humanos e percebeu a síndrome de impostora ainda no início da carreira. “Meu primeiro salário como trainee era equivalente a remuneração do meu pai à época e comecei a me questionar se eu valia aquilo tudo e se eu merecia tudo aquilo”, lembra.
Assim como Beatriz, a hoje consultora Regina Nogueira também sentiu a síndrome do impostor ainda no início: há 25 anos se tornou a diretora mulher mais jovem de uma grande multinacional. “Meu receio de achar que não estava correspondendo era tanto que passei a me vestir diferente, a ter uma postura mais formal, na tentativa de me adequar ao cargo, fantasiosamente. Achava que não ia dar conta e que se eu mudasse de postura, brincasse menos, estaria mais credenciada a merecer o cargo”, relembra.
A engenheira Catalina Jaramillo, 33 anos, é co-fundadora da startup Viajala.com.br. Dos cinco sócios da empresa, quatro são homens e franceses - Catalina é a única mulher e colombiana. Foi justamente na hora de empreender que veio a sensação de não estar no lugar certo.
Então diretora de importação em uma empresa de design e luxo, ouviu do chefe que empreendimento digital era coisa de gente nerd, que ela jamais pertenceria a esse mundo. “Somos poucas as mulheres que empreendem e menos ainda as que trabalham com tecnologia, um meio impregnado de estereótipos que nos fazem duvidar de nós mesmas o tempo todo”, afirma.
Problema não acontece só com mulheres
Renata Prado alerta, porém, para não considerar a síndrome do impostor uma questão exclusivamente feminina ou mais prevalente em mulheres. Parte da confusão pode ser explicada pelas primeiras descrições do fenômeno.
"Os primeiros estudos foram realizados com mulheres e, por muito tempo, buscou-se entender os fatores responsáveis pela síndrome do impostor nelas, como internalizações de estereótipos de gênero. Mas hoje sabe-se que ocorre em ambos, igualmente", explica.
"As mulheres estão cada vez mais assumindo cargos elevados em empresas e os homens começam a se deparar com emoções que talvez nunca antes tinham pensado e sentido. Com o passar do tempo, acredito que esta síndrome atingirá o mesmo numero de pessoas, sem distinção de gênero", afirma o mestre em Psicologia pela PUC-RS, Fernando Elias José.
A própria autora do estudo de 1978, Pauline Clance, revisou-o em 1993, concordando que é incorreto entender a síndrome do impostor como uma questão unicamente feminina.
Clance até mesmo questiona o uso do termo "síndrome" para se referir ao problema. De fato, a problemática descrita não cabe na definição psicológica clínica de "síndrome". No artigo original, Clance usou a expressão "fenômeno do impostor", mas caso pudesse voltar no tempo, utilizaria ainda outra palavra.
"Se pudesse fazer tudo de novo, chamaria de "experiência do impostor", porque não se trata de uma síndrome, complexo ou doença mental, é algo que quase todo mundo experiencia", afirmou em entrevista para o livro Presence, da também psicóloga Amy Cuddy.
No entanto, o fato de as mulheres de forma geral ainda receberem menos oportunidades ao longo da carreira e vivenciarem mais intensamente os estereótipos de gênero a fim de chegar aos cargos de maior prestígio ajudam a explicar essa associação.
Outra alternativa oferecida por Cuddy é que homens são menos propensos a confessar aos amigos ou desabafar nas redes sociais quando sentem-se uma fraude. Para Clance, existe uma pressão cultural para os homens não compartilharem seus medos e inseguranças.
Além disso, Renata Paparelli, doutora em Psicologia Social pela USP e docente na área de saúde mental relacionada ao trabalho na PUC-SP, acrescenta que as situações descritas na síndrome do impostor, quando retiradas da esfera do indivíduo e levadas para um contexto mais amplo do mundo do trabalho, podem ser identificadas como outra questão, mais coletiva, chamada de “neurose de excelência”.
O fenômeno, explica, é criado pelas novas formas de organização do trabalho, que se afastam da lógica taylorista/fordista de uma hierarquia rígida e de uma clara separação entre trabalhadores e patrões para misturar-se com a chamada “gestão flexível”.
Nela, a figura do chefe é simbolicamente substituída por uma meta e, o trabalhador, é convocado a agir de modo “excelente”, o que muitas vezes pode significar horas extras ou levar o trabalho para casa. “Essa gestão e seleção por competências acabam se tornando uma seleção de pessoas que são de um determinado jeito, que ‘vestem’ a camisa da empresa. Só que nem todos são assim. Nesse sentido, muitos trabalhadores sequestrados por essa lógica organizacional ficarão o dia todo pensando em como podem melhorar, sentindo-se menos do que são”, explica.
Ela ressalta, porém, que no, caso das mulheres, essa questão torna-se ainda mais grave. “Se hoje é exigido do homem que seja um atleta de alto desempenho na empresa, no caso da mulher isso é ainda mais forte. E como ela é desqualificada constantemente no processo de divisão de gênero no trabalho, essa neurose incide de maneira diferente nos dois gêneros, com as mulheres sentindo isso de forma mais clara”, afirma.
Como deixar de se sentir uma fraude
E o que fazer para parar de sofrer com o fenômeno do impostor?
O livro "Clube da Luta Feminista", de Jessica Bennett, dá algumas dicas práticas para mitigar os efeitos nocivos de se sentir uma fraude: trocar experiências com amigos e amigas, procurar não dar ouvidos para a "vozinha negativa interior" e preparar-se mais como forma de prevenir qualquer possível insegurança.
Beatriz reconhece que o sentimento de falta de merecimento pode tê-la boicotado algumas vezes, principalmente ao descaracterizar ou minimizar os elogios recebidos. Para contornar a insegurança, a psicóloga criou um método: passou a reunir em uma pasta - hoje virtual - os elogios de clientes, chefes, subordinados e pares. É a esse material que ela recorre quando precisa relembrar seu próprio valor.
O sentimento de inadequação e falta de merecimento fez com que Regina deixasse de se posicionar como gostaria, especialmente em ambientes dominados por homens. A ex-executiva buscou ajuda profissional e aprendeu a olhar de forma positiva para os próprios resultados. “A partir daí, tive noção de que podia driblar esse tipo de situação. Tornei o resultado do meu trabalho incontestável. Foquei nas tarefas e nas demandas que tinha, sem me importar com o entorno”.
No caso de Catalina, a sensação de não estar no lugar certo nunca a impediu de avançar nos seus projetos. Ela acredita que valorizar o próprio trabalho e reconhecer seus méritos é um dos caminhos para driblar a síndrome da impostora, e não atribuir o sucesso à “pura sorte”.
“Se comparamos objetivamente nossas competências e êxitos com os dos homens que possuem os mesmos cargos, é mais fácil nos darmos conta do quanto somos qualificadas e merecemos o mesmo sucesso. É um exercício diário”, finaliza.
Fonte: Carta Capital
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