Marielle: operacões de mídia, anunciação e necropolítica
O necropoder se apropria da potência, e por isso os mesmo heróis celebrados pela mídia são os elementos matáveis para o Estado. Ao mesmo tempo o discurso em torno da difamação, das fake news e pró direitos humanos atingem um limiar com a massificação da comoção em torno do assasinato de Marielle Franco
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A comoção gigantesca por Marielle, um fenômeno nas redes e nas ruas, para além dos que partilhavam das suas lutas, viralizou e se globalizou, levando junto valores que hoje vão na contramão do retrocesso político que vivemos.
A reação das mídias corporativas foi imediata: Fantástico, RJ TV e Jornal Nacional novelizaram a execução de Marielle Franco. Traçaram um perfil humano e digno da vida da vereadora, apresentando-nos sua família, sua filha e sua mulher embaladas para um consumo anestesiante – como fizeram com parte da indignação de 2013, canalizada para o golpe de 2016. Mas as coisas são mais complexas que isso, e é possível mesmo celebrar a posição da Globo à esquerda da direita!
O Fantástico – e a cobertura massiva do assassinato político – faz o que é possível para colar os arquétipos de sua teledramaturgia ao carisma de Marielle, à sua cara iluminada, ao seu sorriso lindo, de jovem negra vitoriosa vinda da favela contra o poder de morte do Estado.
O capitalismo trabalha com a potência e se apropria dela. Sempre houve uma bipolaridade no tratamento da Globo a questões de comportamento e imaginário, e do embate econômico-político: são liberais no comportamento (no que se refere a homoafetividade, a comportamentos disruptivos da juventude, à cultura trans, a potência ligada aos desejos), e traduzem isso como a “periferia legal”, o “novo”, o “hype”.
A perversão está no fato de que os mesmos sujeitos do discurso e da potência, transformados em personagens de um multiculturalismo não-problemático, são os “elementos suspeitos” matáveis para o Estado, para a polícia e para o exército, que recebem respaldo da mídia.
A negra linda e descolada, as “marielles” politizadas, as minas pretas com seus cabelos coloridos, o jovem hype da periferia, eles são os mesmos que são matáveis! Essa “dissociação” é perversa! Dissociação cognitiva, política, uma operação de mídia e de linguagem..
Temos sim que celebrar a posição da Globo contra a difamação, as fake news, o discurso de ódio e a apresentação pedagógica da cartilha dos direitos humanos para um contingente que faz apologia da barbárie. Não adianta achar que o PSOL não deveria colaborar com a Globo, e nem que suas lideranças não deveriam aparecer no Fantástico! Seria desinteligente! Ainda mais com a audiência gigantesca que tiveram, pis sabem vocalizar a potência dos corpos e do imaginário. Vamos “aprender” criticamente com a Globo, com a publicidade e com Hollywood a tal da disputa das narrativas.
Nossas lutas e corpos são a matéria dos sonhos, são a matéria do imaginário, e é isso que os novos movimentos políticos podem buscar. Esse é o novo ativismo que passa pela comoção e pelos afetos potentes, pela renovação da linguagem. É isso o que vejo na Mídia Ninja, nos coletivos de arte e urbanismo; é o que podemos ver em uma campanha como a de Guilherme Boulos e Sônia Guajajara, na cara dos cotistas dentro das universidades, no funk, no hip-hop, no jongo, nas culturas explosivas e disruptivas. Os corpos que sofrem o poder e transformam as forças mais hostis em potência.
Na mídia, a distorção vem depois. Dissociada, mais uma vez: ao final da edição do Fantástico, do Bom Dia Brasil, do RJ TV, do Jornal Nacional desta segunda aparecem matérias redentoras sobre os bilhões do governo Temer para a intervenção no Rio, conectando Marielle a uma operação que combatia.
Acende-se uma vela ao imaginário contemporâneo das lutas e ao necropoder, o poder de morte do Estado brasileiro, conectando Marielle a uma operação que combatia: a intervenção militar no Rio de Janeiro. A denúncia de Marielle de possíveis crimes cometidos por policiais, sua posição crítica diante da intervenção militar no Rio, liga-se, então, a uma solução mágica: mais recursos para a própria intervenção! Mais recursos para o necropoder!
A morte de Marielle está em disputa por muitas lutas! Os conservadores, liberais, a extrema-direita, a Globo, todos querem surfar nesse acontecimento que desequilibra, pela sua brutalidade, as narrativas pré-eleições. Esse acontecimento prova que chegamos num ponto sem retorno para avançar nos movimentos pela consolidação dos direitos humanos no Brasil, os movimentos contra o racismo, o machismo, o genocídio dos jovens negros das periferias; contra esse mesmo necropoder que a matou.
Meritocracia e racismo
Marielle Franco performou uma trajetória de superação que os brancos amam contar para dizer que temos todos as mesmas oportunidades. Marielle superou o contexto onde foi criada (a favela), o racismo, o machismo; fez uma universidade, se formou, foi eleita com votação extraordinária e se tornou representante parlamentar de um contingente de pessoas e grupos, vereadora do Rio de Janeiro! Fez todo o percurso singular e raro, “a jornada do herói” como define a narratologia.
Foi executada exatamente por isso, por ser uma negra vencedora. Por ser uma mulher linda e potente, vinda da Maré, que ousou denunciar tudo o que já sabemos sobre a necropolítica. Muitos homens fizeram essas denúncias antes, mas uma mulher negra e vinda da favela não podia. Por que as marielles são matáveis, mesmo sendo uma parlamentar? Mesmo tendo encarnado de forma meritocrática a definição de uma mulher negra bem-sucedida?
O Brasil não para de produzir autoprofecias macabras que, anunciadas diariamente, buscam intimidar, calar e violar. Entretanto, alguns corpos e sujeitos estão na linha de frente desse massacre, mesmo aqueles que “venceram” a corrida de obstáculos de um capitalismo neo escravocrata (já que a meritocracia não apaga o racismo).
As polarizações, diferenças e disputas silenciaram por um dia diante da brutalidade do assassinato de Marielle. Vimos muitas jovens negras que multiplicavam o perfil da vereadora, com cabelos crespos e coloridos, pela praça e pelas ruas laterais lotadas do centro do Rio, criando a sensação de que ela estava entre nós. É contra essa anunciação que a mataram: esse contingente de marielles insurgentes; toda uma nova geração de mulheres que, no meio da tristeza e da comoção, traziam ânimo e faziam pensar.
Necropolítica
Achille Mbembe, filósofo e cientista social, atualizou o conceito de biopoder de Michel Foucault para fenômenos da periferia do capitalismo, mostrando como a passagem da biopolítica, a produção da vida e da subjetividade pelo capitalismo e seus dispositivos, atinge a necropolítica, uma política centrada na produção da morte em larga escala, visível nas guerras urbanas, territorializadas e também nômades, nas periferias e guetos do mundo contra minorias, migrantes, negros, mulheres.
A necropolítica diz quem deve viver e quem deve morrer, quem são os sujeitos matáveis e que são desprovidos de status político, não-sujeitos reduzíveis ao biológico e ao desumano. Uma série de políticas de extermínio que vemos em ação contra a juventude negra nas periferias do Brasil e do mundo.
O neoliberalismo chegou a um ponto que, para manter os processos de assujeitamento e exploração, precisa passar pelo extermínio de grupos, como um sistema neo escravocrata e um capitalismo mafioso. Da exclusão ao extermínio, há o processo que nunca deixou de operar em um Estado que usa a força e a repressão para vender os interesses do capital.
Temos aqui duas faces do poder e da produção de subjetividades: as máquinas que se apropriam da potência dos corpos e sujeitos e que não necessariamente proíbem, aniquilam e reprimem; o sistema midiático e a sociedade de consumo tal qual conhecemos como poder soft que disputa imaginários, e o necropoder que desumaniza e aniquila.
O mais chocante, e o assassinato de Marielle Franco explicita isso, é perceber quando a máquina de sedução, linguagem e apropriação da potência pode se associar a esse poder de aniquilamento, produzindo mortes reais e mortes simbólicas. #mariellepresente
Revista Cult
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