terça-feira, 24 de abril de 2018

Conversão forçada e intolerância religiosa são retratadas em 'Ex-Pajé'



CINEMA NACIONAL

Conversão forçada e intolerância religiosa são retratadas em 'Ex-Pajé'

Etnocídio indígena: documentário de Luiz Bolognesi acompanha Perpera, da etnia Paiter Suruí que, com a chegada da igreja evangélica na floresta, foi obrigado a abrir mão da pajelância
por Xandra Stefanel, especial para RBA publicado 23/04/2018 08h55
FOTOS: DIVULGAÇÃO
Perpera
'Depois que pastor disse que pajé é coisa do diabo, viravam o rosto pra mim. Só voltaram a falar comigo quando fui pra igreja'
Perpera já foi a pessoa mais importante e respeitada de sua aldeia. Até completar 20 anos, em 1969, seu povo nunca tinha tido contato com o homem branco. Mas, com a chegada dos brancos na terra indígena Sete de Setembro, em Rondônia, chegou também a opressão religiosa que vem cada vez mais exterminando a cultura indígena e seus saberes tradicionais. Quando o pastor evangélico disseminou que o xamanismo era coisa do diabo, Perpera foi excluído pelos seus até que aceitasse abandonar a prática ancestral da pajelância.
É esta a história que conta o documentário Ex-Pajé, de Luiz Bolognesi, exibido na última semana no Festival É Tudo Verdade e com estreia nas salas de cinema prevista para o dia 26 de abril. O filme é uma espécie de poema visual e sonoro que, em 1 hora e 21 minutos, desenha um sensível retrato do etnocício que vem sendo praticado há mais de cinco séculos no Brasil.
Em tempos de tanta intolerância religiosa, o longa de Bolognesi consegue fazer uma crítica contundente sendo respeitoso com os indígenas convertidos e também com a igreja evangélica em si, mesmo evidenciando na tela a pressão social e espiritual imposta pela religião. Uma das maneiras que os missionários usam para conquistar a população local é a distribuição de medicamentos.
Antigamente se consultava o pajé. Hoje só tomam aspirina”, afirma Perpera, que explica na língua Paiter Suruí que nunca poderia voltar a ser a ser pajé. “Não é possível. Depois que pastor disse que pajé é coisa do diabo, ninguém mais falou comigo, viravam o rosto pra mim. Só voltaram a falar comigo depois que eu fui pra igreja.”
Mesmo que ele não verbalize a profundidade de seus conflitos internos, fica claro para o espectador que seus poderes ancestrais e conhecimentos não desapareceram apenas porque um pastor exigiu. Ao contrário: por mais que diga que já não é pajé, quando alguém está à beira da morte na aldeia, o poder de falar com os espíritos volta a ser necessário. E é essa a maior beleza de Ex-pajé: a resistência silenciosa captada com tanta delicadeza e beleza.
Por mais que diga que já não é pajé, quando alguém está à beira da morte, o poder de falar com os espíritos volta a ser necessário
Fábula de um extermínio cultural
O etnocídio não é a destruição física dos homens, mas a destruição de seus modos de vida e pensamento. Enquanto o genocídio assassina os povos em seu corpo, o etnocídio os mata em seu espírito.” A frase do antropólogo e etnólogo francês Pierre Clastres abre o filme seguida de cenas da chegada dos homens brancos na aldeia. O canto que acompanha as imagens por si só já passa a mensagem de lamento que permeia todo o documentário.
Os sons que invadem a tela durante a exibição permitem uma imensão tanto na floresta quanto nos sentimentos que parecem povoar Perpera. O barulho das árvores, dos insetos, pássaros e do vento parece representar as mensagens que os espíritos continuam enviando ao pajé. As cenas mais intensas são as que Perpera acompanha as missas com o olhar perdido na exuberante natureza que cerca a igreja.
PajéEu não consigo dormir no escuro. Os espíritos da floresta me batem a noite toda, estão bravos por causa da igreja”, diz Perpera, quase implorando que o ajudem a resolver um problema elétrico da sua casa. “Ao mesmo tempo em que me disse que era um ex-pajé, ele me contou que só dormia de luz acesa porque os espíritos da floresta estavam bravos com ele e, se ficasse no escuro, os espíritos batiam nele. Na hora, pensei: ele nunca deixou de ser pajé. Ele está vivendo de outra forma, constrangido pela igreja evangélica a se declarar um ex-pajé, mas ainda vê o mundo com os olhos mágicos”, declara Luiz Bolognesi.
Para o diretor, era importante mostrar esta tragédia social por meio da história pessoal de alguém como Perpera. “Eu quis mostrar esse conflito – que é épico, porque são 500 anos de história do Brasil, desde a vinda dos jesuítas – de dentro para fora. Quis ver essa tragédia do ponto de vista lírico, do ponto de vista de uma personagem que está vivendo na intimidade o conflito. Perpera não abandonou a pajelança porque quis: foi constrangido a isso, e se sente violentado. Apesar de trabalhar muito como roteirista, eu não quis, neste caso, ir com o roteiro pronto. Eu tinha um arcabouço, mas a dramaturgia foi construída no dia a dia, no convívio com eles. À noite eu decidia o que ia filmar no dia seguinte”, afirma no material de divulgação do longa.
O documentário não deixa de lado a exploração extrativista que também vitima a população indígena. Apesar de não ser o tema central, a obra apresenta as ameaças ligadas à terra nesta região de Rondônia, na fronteira com Mato Grosso, onde nativos enfrentam extrativistas que, diariamente, invadem o território em busca de madeira, ouro e diamantes.
O filme passeia pelos limites entre o documentário e a ficção. “Ao longo do processo, entendi que o que eu estava fazendo era cinema direto. Acho que meu filme se insere nessa tradição de um cinema que fica na fronteira entre documentário e ficção, um cinema no qual os atores são os próprios personagens. Esse tipo de cinema é um mergulho muito profundo: você quebra a distância, você vira um pouco o outro. Mas a única coisa que eu sabia, de saída, é que ia escrever a dramaturgia com eles e que tinha de trabalhar com uma equipe pequena. Éramos apenas cinco pessoas”, detalha Bolognesi.
Ex-pajé recebeu o prêmio especial do Júri Oficial de Documentários da Mostra Panorama, no Festival de Berlim 2018. Durante a apresentação, Luiz Bolognese divulgou o Manifesto de Povos e Lideranças Indígenas do Brasil assinado por 28 lideranças e 15 organizações indígenas. O documento propunha um país com mais tolerância e respeito e criticava o etnocídio. Um dos trechos afirmava "Hoje atravessamos muitas crises, ecológica, econômica, política, a nossa frágil democracia foi atacada e os territórios indígenas estão sendo invadidos e saqueados".
CartazEx-pajéDireção e roteiro: Luiz Bolognesi
Direção de fotografia: Pedro J. Márquez
Elenco: Perpera Suruí, Kabena Cinta Larga, Agamenon Saruí, Kennedy Suruí (Caciquinho), Ubiratan Suruí (Bira), Mopidmore Suruí (Rone) e Arildo Gapamé Suruí.
Produtores: Caio Gullane, Fabiano Gullane, Laís Bodanzky e Luiz Bolognesi
Produção: Buriti Filmes e Gullane
Distribuição: Gullane 

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