HIPOCRISIA
Doria, que demoliu casa com gente dentro, chama sem-teto de 'facção criminosa'
Ex-prefeito é um invasor, pois mesmo rico, tomou para sua mansão uma área pública em Campos do Jordão. Incêndio desta terça se soma a uma série de episódios na capital paulista, todos suspeitos
por Helena Sthephanowitz publicado 02/05/2018 11h27, última modificação 02/05/2018 13h14
FOTOS PUBLICAS - A CRACO RESISTE
Gestão Doria mandou derrubar parede de casa na cracolândia, sem checar condições da operação; três ficaram feridos
O incêndio na madrugada de ontem (1˚), que causou o desabamento de um prédio de 24 andares onde viviam ao menos 150 famílias sem-teto, no Largo do Paissandu, centro de São Paulo, causou grande comoção no país e intensa cobertura na imprensa internacional. Além de ter deixado desalojadas centenas de pessoas, entre adultos, jovens, idosos e crianças, um homem morreu e pelo menos 44 moradores estavam desaparecidos até a manhã de hoje.
A tragédia, no entanto, não provocou apenas reações de pesar e solidariedade. Houve também apologia ao ódio nas redes sociais e ofensas às famílias pobres que ocupavam o prédio. A mais espantosa declaração partiu justamente do ex-prefeito da cidade, João Doria, candidato ao governo do estado pelo PSDB, que culpou as vítimas pelo desastre. Ao ser questionado pela imprensa sobre a ocorrência, Doria afirmou que o edifício estava ocupado "por uma facção criminosa" e que ali "era um centro de distribuição de drogas". Mais tarde tentou consertar o erro, com uma nota insossa e burocrática, lamentando a ocorrência, mas aí já era tarde e a máscara, mais uma vez, já tinha caído.
Antes de criminalizar os movimentos sociais com acusações levianas, o tucano João Doria – inimigo declarado de ocupações em geral - deveria olhar para seu próprio quintal. Com patrimônio de R$ 180 milhões, declarado na eleição de 2016 ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE), o próprio ex-prefeito é, segundo sua ótica, um invasor, pois tomou para si uma área pública no município de Campos do Jordão (SP), aumentando irregularmente a área de sua mansão, então avaliada em R$ 2 milhões.
Depois de uma disputa judicial que durou 12 anos, o tucano perdeu a ação. O caso virou um processo judicial, que terminou por condenar Doria a devolver o terreno, o que deveria ter acontecido em 2009. Mas só em 2017 ele enviou à prefeitura de Campos do Jordão (cujo prefeito, Fred Guidoni, também é do PSDB) uma petição oficializando a devolução do terreno invadido. Antes, o tucano fora obrigado pela justiça a recuar o muro da mansão e liberar a passagem para os moradores.
"Centro Novo"
No final do ano passado, enquanto se discutia a candidatura ao governo de São Paulo, Doria prometia executar um projeto de revitalização do centro de São Paulo, que seria chamado de Centro Novo, encomendado pelo Sindicato da Habitação de São Paulo (Secovi).
A Prefeitura prometeu entregar, até 2020, bulevares e duas linhas turísticas de Veículo Leve Sobre Pneus (VLP). Elaborado pelo escritório Jaime Lerner, a gestão Doria afirmou que o projeto foi oferecido à administração por um termo de cooperação técnica com o Secovi. O prefeito ressaltou, porém, que o Centro Novo seria analisado por diversas secretarias desde o primeiro semestre e a execução "é uma decisão de governo". Segundo Doria, o plano será executado em oito anos com financiamentos de bancos privados. O projeto, obviamente, não contava com a convivência de famílias sem-teto nessa área.
O ex-prefeito acumula um histórico irretocável de atrocidades e descaso com pessoas que não têm onde morar por questões econômicas. No ano passado mandou demolir imóveis na região da cracolândia, no centro de São Paulo, terminou com três pessoas feridas. Uma escavadeira da prefeitura deu início à demolição de uma pensão. A parede foi derrubada sem um aviso para que os moradores deixassem o local.
Incêndios
A quantidade de favelas e ocupações destruídas por incêndios em áreas valorizadas da capital paulista chamou atenção do Ministério Público (MP) estadual em 2012. Naquele ano, o MP informou que estava investigando a suspeita de que as ocorrências seriam, na verdade, obra obscura de grupos econômicos interessados em lucrar com imóveis a serem construídos nos terrenos esvaziados.
De acordo com declaração do promotor da área de Habitação e Urbanismo daquela época, José Carlos Freitas, os incêndios ocorriam de forma geral, "em lugares onde há forte interesse do mercado imobiliário".
Além disso, o promotor constatou que, normalmente, as áreas atingidas eram objeto de projetos de empreendimentos não só habitacionais, mas também comerciais, especialmente onde havia obras públicas a serem feitas. "A área criminal do Ministério Público está preocupada com essa coincidência", destacou.
Estudo realizado pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe) revela a supervalorização imobiliária em regiões que tiveram favelas e ocupações incendiadas e as famílias, removidas. Caso da área em que estava instalada a favela São Miguel Paulista, na zona leste, que após ser destruída teve a maior alta imobiliária da capital, de 214%, em apenas dois anos.
Após o fogo ter colocado seus barracos no chão e expulsado as pessoas, no terreno do chamado Morro do Piolho, no Campo Belo, bairro nobre da zona sul, o aumento do metro quadrado foi de 117%. Numa outra área que viveu drama igual, na Vila Prudente, também na zona leste, a valorização foi de 149%.
A pesquisa da Fipe também revela que as áreas que concentram o maior número de favelas da capital – e que por isso mesmo pouco despertam especulações imobiliárias – são as que têm menos ocorrências de incêndios. Na zona sul paulistana, nos distritos do Capão Redondo (com 93 favelas), Grajaú (com 73), Jardim Ângela (com 85) e Campo Limpo (com 79) não houve nenhum incêndio. Essas áreas representam mais de 21% das favelas da capital e são as mais desvalorizadas pelo mercado imobiliário.
Coincidência? Fatalidade?
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