Agência de Jornalismo Investigativo
Lula pelo olhar da mídia
Entrevista com o ex e o atual assessor de imprensa do ex-presidente revela detalhes das relações de altos e baixos com a imprensa brasileira
A entrevista liderada por Marina Amaral, codiretora da Agência Pública, teve a participação de Ricardo Kotscho, jornalista na Folha de S. Paulo e ex-secretário de imprensa do governo do ex-presidente e José Chrispiniano, o atual assessor de imprensa de Lula.
Marina Amaral – Queria começar perguntando para o Kotscho, que esteve no dia da prisão do Lula, se ele sentiu essa pressão, esse conflito entre os jornalistas e o pessoal que estava com o Lula? E como você, que já foi assessor de imprensa do Lula, vê essa pressão com os jornalistas querendo informações?
Ricardo Kotscho – Foi um dos dias mais tensos que vivi nessa minha trajetória de 54 anos como repórter. Eu acompanhei todas as greves do ABC, que eram lideradas pelo Lula no final dos anos 1970, começo dos anos 1980. Eu vi nascer o PT, a CUT, acompanhei desde o começo. E, realmente, essa sexta-feira, 6 de abril, não é para esquecer, conversei com o Lula logo cedo, fui para o sindicato.
Eu não vi esse conflito com a imprensa porque fiquei dentro o tempo todo, em uma sala que era reservada para os amigos velhos e tal, conversando, antigos sindicalistas que lembravam muito episódios anteriores de outras invasões da polícia lá. Teve uma hora em que eu me senti mais ou menos em 1980, que, por acaso, também foi em abril. A gente estava à noite no Sindicato quando houve uma invasão da polícia. Eu trabalhava na Folha, em uma outra temporada que passei lá, e notei uma coisa que acabei escrevendo no dia seguinte, que era: “Como é que o Lula decide as coisas nesses momentos graves? Como é que age o líder político que era líder sindical?”. E é mais ou menos do mesmo jeito. Na Vila Euclides, que é o estádio onde fazíamos assembleias dos metalúrgicos, o Lula nunca entrava direto para o palanque onde ele iria falar. Ele entrava pela porta principal, atravessava aquele mar de gente, conversava com um, com outro, ouvia e sentia o clima, que, basicamente, era o seguinte: continuar ou parar a greve? Então, quando ele ia falar, falava mais ou menos a média do que ele tinha ouvido, do que o pessoal queria. E aconteceu a mesma coisa nesse dia. Tinha várias salas, salas dos dirigentes do PT, sala com a família, com os amigos, e ele ia falando com um, com outro, e, ouvindo todo mundo, acabou tomando a decisão que ele não se apresentaria naquele dia, naquela hora que o Moro marcou. E os advogados, políticos do PT, estavam negociando com a Polícia Federal.
Os problemas com os jornalistas só fiquei sabendo no dia seguinte. Como eu falei, estava lá o tempo todo e, quando eu saí, estava muito cansado à noite, fui direto para casa. Uma coisa que noto é que sempre houve um conflito, desde o início da história do PT, entre imprensa e os líderes do PT, e que veio se agravando ano a ano.
Eu dei uma sorte que, nos dois primeiros anos do governo Lula, trabalhei como secretário de Imprensa, e não teve uma grande crise com os jornalistas.
Havia uma relação boa não só com os jornalistas que cobriam o Palácio do Planalto, mas também com os donos dos jornais; eu procurava fazer isso, uma ponte entre o governo e a mídia. Uma vez por semana, a cada 15 dias, eu ia para o Rio ou para São Paulo conversar com os diretores de redação e tirar informações deles, o que eles estavam achando do governo, e também dar informações que eram interesse do governo. Eu lamento muito isso que aconteceu porque há uma guerra ideológica e política entre os donos da mídia, os barões da mídia, desde sempre, e o PT. Mas há maneiras de tentar, como vou falar, conciliar um pouco os interesses.
Porque o tempo da imprensa e o tempo do governo são diferentes. Mas é engraçado que lá atrás, no início, muitos jornalistas eram filiados ao PT. Eu nunca fui, nunca entrei em nenhum partido, mas eles tinham lado e a maioria era a favor do Lula, do PT e tal. Hoje eu já não sinto assim. Acho que há uma certa animosidade dos jornalistas com o PT, não só dos patrões.
Marina Amaral – Não apenas dos veículos, mas também os profissionais de imprensa?
Ricardo Kotscho – É. Eu não sei o que leva a isso, mas é uma coisa que dá para notar conversando com os colegas na hora em que eu saí de lá. Tem que encontrar um jeito, sabe? Acho que lidar com a imprensa é mais ou menos como lidar com o Congresso Nacional, eu falava isso. Você tem que falar com o pessoal do PFL [hoje DEM], da oposição, faz parte do jogo político. E a mesma coisa acontece com a mídia. Uma coisa que eu sempre repeti é o seguinte: se você tratar bem a mídia, você vai apanhar, porque os donos são contra, não querem que o PT vença, ele ganhou quatro vezes seguidas. Agora, se tratar mal, é pior. Porque aí os repórteres, o pessoal que está na rua, também se volta contra o partido. Eu tentei, durante algum tempo, fazer isso de tentar conversar tanto com os meus amigos, que conheço todos os veículos, como com os amigos do governo, o Franklin Martins que tinha ficado no meu lugar cuidando da área de imprensa, mas vi que não tinha jeito, era uma coisa inconciliável. Então desisti.
Marina Amaral – Mas o que era inconciliável?
Ricardo Kotscho – Um xingava o outro: “Eu não falo com filho da puta”. Mais ou menos isso, em resumo. Então aí não tem diálogo. E, pelo jeito, está assim até hoje. Tanto é que só recentemente o Lula deu uma entrevista exclusiva para um grande jornal brasileiro, que é a Folha, onde eu trabalho, para a Mônica Bergamo, que, aliás, está fazendo este ano um trabalho maravilhoso com o Lula, que há muito tempo não dava uma entrevista exclusiva; fez com o Maluf na cadeia e com o Zé Dirceu. Estou muito triste com tudo que está acontecendo, não estou vendo muita perspectiva, muita saída. É o pior momento que vejo do país, da política brasileira, sem lideranças, sem interlocutores. Você não tem nem do lado dos empresários, nem do lado dos sindicalistas, nem de lado nenhum. Você não tem mais. Não há uma sociedade civil organizada hoje que possa ajudar o Brasil a sair desse impasse.
Marina Amaral – Chrispiniano, o que você sentiu? Você que acompanhou ali como assessor de imprensa do Lula. Há uma animosidade dos jornalistas contra o Lula ou você sente mais que os jornalistas estavam pressionando porque queriam mais informação e vocês tinham que conter?
José Chrispiniano – Eu acho que tem uma mistura de questões, então vou começar citando um episódio um pouco anterior a esse do sindicato, depois vou para o prático do sindicato. A gente fez uma caravana pelos três estados do Sul do país. E sempre teve, a cada cidade em que a gente foi, episódios de minorias violentas, tentavam impedir os atos, mas a maioria da população, no fundo, não se envolvia, nem de ir nem de tentar impedir. Com alguns dias da caravana, o Zero Hora escreveu um editorial que fazia uma condenação formal da violência, mas dizia que o Lula não deveria ter ido para o Sul do Brasil, onde ele tinha muita oposição. De certa forma, endossava as manifestações que tentavam impedi-lo. Depois, a Ana Amélia fez uma fala, de “chicote”, “ovo”. Vamos considerar, para os efeitos atuais, “ovo” parte de manifestação política civilizada.
Ricardo Kotscho – A Ana Amélia, só um parêntese, que trabalhou muitos anos como chefe de um jornal da RBS.
José Chrispiniano – … a Ana Amélia, que é jornalista, e fez essa fala. Mas o Zero Hora fez o editorial. Dois dias depois do editorial do Zero Hora, em Passo Fundo, a repórter do Zero Hora foi agredida pelos manifestantes contra o Lula aos gritos de “RBS comunista”. Então, esse é o primeiro ponto que quero falar. O Zero Hora falou: “OK, as manifestações, está certo, o Lula não tem popularidade”. Dois dias depois, eles foram hostilizados pelas pessoas que estavam fazendo manifestações contra o Lula.
Estou citando esse episódio para dar um pouco o contexto social. Agora vou bem para o concreto do dia do sindicato. Sai a decisão do juiz e a gente vai para o sindicato. Quando chego no sindicato, o ex-presidente já está lá, e a primeira coisa que faço é conversar com o pessoal do sindicato sobre como é que a gente vai receber a imprensa. Nessa hora, um fotógrafo já tinha sido atacado por ovo. E a gente acerta com a direção do sindicato, conversa com os jornalistas e acerta assim: “A gente vai delimitar essa área para vocês aqui, vocês vão ter segurança, vão andar pelo entorno no sindicato porque vocês querem fazer matéria, mas a gente só pode delimitar essa área aqui”.
Marina Amaral – Fora da manifestação, dentro do sindicato?
José Chrispiniano – Uma área protegida dentro do sindicato, não no entorno da rua. Para te dar o contexto da situação: o sindicato tem duas assessoras de imprensa mais uma pessoa que se voluntariou. Então, o primeiro episódio foi esse do ovo; o segundo foi às 5 da madrugada com uma pessoa: um cinegrafista jogou luz na cara da pessoa. Eu ouvi o barulho, pois estava dormindo dentro do sindicato. Eu desci e tinha um diretor do sindicato brigando para impedir que tivesse agressão contra os jornalistas. O outro episódio em que cheguei depois que tinha acontecido foi sábado de manhã, que foi o do repórter da CBN. O Guilherme Boulos, o Vagner Freitas, da CUT, um diretor do sindicato, todos desceram, cercaram os jornalistas para protegê-los: “Não é para agredir trabalhador. São trabalhadores da imprensa, não é para agredir trabalhador. A gente pode ter discordância com o dono, mas não é para agredir trabalhador”.
Aí, uma coisa que às vezes acontece também nessas situações, sabe quando uma pessoa entra na área procurando pênalti? Um jornalista falou: “A gente está sendo agredido, a gente está sendo maltratado!”. Eu conversei com ele e falei assim, baixo: “A gente discute sua opinião depois. Você está vendo que os dirigentes que estão aqui estão querendo segurança pra vocês diante de uma militância que está muito inflamada?”.
Voltando atrás, em um episódio de outras proporções, mais histórico, quando o Getúlio Vargas se suicidou, todas as redações do Rio, dos jornais que eram contrários a Vargas, foram destruídas. O Carlos Lacerda foi retirado para um navio americano de helicóptero da embaixada, porque ele não podia andar na rua. Obviamente, é uma proporção maior, mas ali havia pessoas irritadas com aquela situação. Esse é o relato mais concreto daquele dia. Acho que muita coisa aconteceu naqueles dias em relação à Constituição do Brasil, acho que muita coisa aconteceu em relação à democracia brasileira. Tem dois episódios diferentes desse que são importantes. O mundo mudou, as pessoas estão na rua com o celular, e as pessoas, por exemplo, ficaram possessas quando a GloboNews falou que estava tendo um churrasco grátis que não existia no local. “Ah, estão entregando carvão, estão entregando cerveja.” Existe um restaurante no topo do sindicato que tem uma grelha e que vende comida e cerveja. Vende! A GloboNews não pode cobrir de perto e fala que está tendo um churrasco, estão distribuindo um churrasco.
Marina Amaral – E por que é que a GloboNews não pode cobrir de perto?
José Chrispiniano – Você está perguntando a minha opinião pessoal?
Marina Amaral – É.
José Chrispiniano – Porque acho que a Globo é um ator político neste país. Não estou dizendo que é justo ou não o repórter que está na rua não poder cobrir. Com esse episódio, o que fiz como assessor de imprensa? Avisei que não tinha churrasco. Eles disseram que não iam mais falar aquilo. Depois, na hora em que ia sair, jornalistas, no ar-condicionado, que não sabem o que está acontecendo, disseram que aquilo era uma armação, e apanhei quando o Lula saiu.
Marina Amaral – Como assim?
José Chrispiniano – Porque ajudei a fazer o cordão para ele sair de lá. Outras pessoas apanharam na hora em que o Lula saiu. E aí a GloboNews diz que aquilo é uma armação. Aí eu escrevi: “Não é uma armação”. Então, você tem um ambiente em que você tem uma preocupação correta, com questões físicas de todo mundo. Ali na caravana do Sul eu só esperava que todo mundo voltasse para casa, mas há muito tempo a preocupação corporativa dos jornalistas é desproporcional com as mentiras que a classe como um todo permita que aconteça.
Vou citar um caso que não é com o Lula, que não gerou polêmica, mas que acho bárbaro, que foi uma matéria do Fantástico que mostrava a vida do Cabral dentro da prisão. Aquilo é um crime, e ninguém na redação virou para dizer que eles estavam cometendo um crime. Você não pode, com a imagem sendo do Ministério Público ou não, ficar exibindo a vida de pessoas presas. Isso fere a lei.
Acho que as pessoas têm que ter segurança no trabalho, ninguém merece sofrer uma agressão física, ninguém mesmo, mas acho que, como classe, os jornalistas estão discutindo muito essa questão, e eu sei que eles não têm o poder, autonomia.
Sei que para os veículos de comunicação é uma questão de sobrevivência impedir que o Lula seja eleito. Não enxergam mais nem como uma questão de diferença política. Eu acho que eles estão errados, acho que isso não está em jogo, mas eles acham que isso está em jogo.
Marina Amaral – Kotscho, você acha que a Globo era um problema maior quando você era assessor de imprensa ou a Globo era como os outros veículos? Porque a Globo, especificamente, é vista como um ator político, e não mais como uma empresa jornalística como outra qualquer?
Ricardo Kotscho – Eu cobri lá atrás,1980, 1981, nas greves… já ameaçavam virar carros da Globo. E depois disso nós tivemos já sete eleições presidenciais; acho que a sétima é agora. Voltou a democracia, mas essa animosidade só foi aumentando com o tempo. E, sempre que há uma guerra, cada lado dá suas explicações, mas acho que o que está faltando é aparecer alguém neste país, um grupo organizado da sociedade civil. Me bato muito com isso, eu sempre procurei a conciliação, não gosto dos conflitos. E nesse tempo em que trabalhei no governo, uns dois anos, nós não tivemos nenhum problema diretamente com uma empresa ou com um jornalista brasileiro.
Teve um problema com um jornalista estrangeiro, que deu uma dor de cabeça danada, o Larry Rother, que era correspondente do The New York Times. Isso durou uma semana. Mas não me recordo, naquele período, de nenhum conflito maior com ninguém. Nem com a Globo nem com ninguém. Eu me lembro, fui com o Luiz Gushiken, que era o ministro de Comunicações, chefe da Secom, a um almoço na Globo aqui no Rio, em que estavam todos os editores, William Bonner, diretores, editores, apresentadores dos jornais. E foi um longo almoço, uma longa conversa muito civilizada. Depois disso, eu já tinha saído do governo, e veio o mensalão. Acho que ali é que foi o momento em que as coisas se acirraram mais, em que ficou muito claro que havia dois lados em disputa, e cada um tomava as suas dores e as suas aflições.
Mas, realmente, me lembro de um dia, em 2004, em que deram uma matéria na abertura do Jornal Nacional que era relativa às Apaes, associações que cuidam de crianças excepcionais. E a notícia não estava correta. Fiz uma nota, conversei com o presidente, mandei para o Jornal Nacional, e foi para o ar ainda durante o jornal. Quer dizer, era isso que eu tentava fazer, consertar o que estava errado. E havia essa possibilidade de diálogo, que hoje não existe mais.
Marina Amaral – O Kotscho se referiu aqui a um episódio que foi quando o correspondente do The New York Times, o Larry Rother, escreveu um artigo dizendo que o Lula bebia demais. Chegou a ter um pessoal querendo que expulsassem o Larry Rother do Brasil, e o Kotscho foi contra…
Ricardo Kotscho – É que aquilo estava prejudicando a imagem do governo dentro e fora do país. Então, não é que eu fosse defender. Até durante as discussões o Lula brincou comigo, falou: “Você é mais assessor da imprensa do que assessor de imprensa do governo”. Falei: “Não, isso prejudica o governo”. Porque esse Larry Rother era casado com uma brasileira. Então, você não podia tirá-lo do país, tirar o passaporte dele. Então, é uma questão legal.
Tanto que, quando o Márcio Thomaz Bastos, ministro da Justiça, que faz muita falta, voltou de uma viagem no exterior, a coisa foi resolvida no mesmo dia com o advogado do jornalista, e não se falou mais no assunto. Mas foi o único episódio mais difícil enfrentado naquele período de 2003, 2004. O Lula mesmo, o próprio presidente, tinha almoços, jantares, encontros com os donos da mídia, não só com os jornalistas. E não só dos grandes veículos. Uma coisa legal que a gente fez nessa época, não sei se ainda continua depois, era receber no Palácio jornalistas do Brasil inteiro, de rádios, comunicadores populares, que era uma coisa interessante.
E as perguntas que eles faziam, as questões que levantavam eram muito diferentes: era o Brasil real. E em Brasília é o Brasil oficial.
Então, acho que há até uma certa promiscuidade entre jornalistas, políticos, ministros. É aquele mundinho. E na hora que a gente trouxe rádios comunitárias – no país inteiro fizemos vários eventos desses – eu gostei muito como jornalista, porque muitas coisas eu não sabia que estavam acontecendo no Brasil, e o próprio presidente também não sabia. Aquilo mostrou como há um abismo muito grande entre a vida real das pessoas e aquilo que acontece no Supremo, no Palácio do Planalto, na Esplanada dos Ministérios. Tanto é que hoje – vocês pegam a televisão – o principal jornal da noite, o Jornal Nacional, já há vários dias, semanas e tal, só vê ministros do Supremo Tribunal Federal. Eles parecem artistas de novela ou jogadores de futebol. Só dá aquilo.
Aquilo é um outro Brasil, e o Brasil real tem milhões de desempregados, desigualdade, situação caótica na saúde, na educação, em tudo. É isso que eu vejo como jornalista, não como assessor, que eu já não sou há muito tempo, que nós não estamos mostrando essa realidade.
Marina Amaral – Chrispiniano, quando você entrou para ser assessor do Lula, você já sentia essa animosidade da imprensa, isso foi crescendo, como disse o Kotscho? Você imaginava que iria pegar uma bucha desse tamanho com ele sendo ex-presidente?
José Chrispiniano – Primeiro, não imaginei. Eu comecei em março de 2011. Eu trabalhei para uma pessoa diferente. Kotscho trabalhou para um candidato e trabalhou para um chefe de Estado, eu trabalhei para uma pessoa que não ocupava cargo público. Sempre que eu falava isso para a imprensa, a imprensa respondia: “Mas é um homem público”. Eu não nego isso, mas ele não ocupa cargo público. Então, por exemplo, a posição dele foi: “Eu dou entrevista para quem eu quiser, quando eu quiser, como eu quiser, porque eu não ocupo cargo público”. O que é uma discussão que deriva hoje, inclusive, para a questão legal. Ele não é a única, porque tem outras pessoas nos processos. Entre essas várias liberalidades legais que se tomaram contra ele, uma é essa, a extensão do conceito de cargo público, porque ele deixou o cargo em 31 de dezembro de 2010. Então, eu não imaginava isso, e a gente foi observando uma sequência de alterações na imprensa brasileira. Não era uma relação boa já em 2011, mas teve alterações muito grandes de forma, principalmente depois de 2014, e depois da eleição da Dilma existiram alterações mais radicais. Todos os processos a que o ex-presidente responde nasceram na imprensa, todos.
Marina Amaral – Como assim?
José Chrispiniano – Eu vou explicar da primeira matéria. Um procurador abriu uma notícia de fato para investigar as palestras do ex-presidente em 2015.
Essa notícia de fato, o procurador que abre não pode investigá-la. Essa notícia de fato é distribuída por um sorteio. Um dia depois do sorteio, um repórter da Época foi lá e requereu aquele documento. Não tinha como ele saber que aquele documento, em tese, existia. Isso virou uma capa da manchete da Época de 1º de maio de 2015. Foi uma matéria de capa, com uma série de acusações contra o ex-presidente.
A gente respondeu a essa série de acusações contra o ex-presidente. Elas não resultaram em nenhum processo. As respostas nossas são factualmente corretas, a matéria da Época tem um monte de erros. Nenhum deles jamais foi corrigido. Três anos depois, a Época tem uma capa sobre fake news.
Esse processo iniciou uma devassa no Instituto Lula. Houve outra, que deu origem ao caso tríplex. Mas isso resultou, muito tempo depois, em um outro processo sobre o sobrinho do ex-presidente. Uma outra matéria do Estadão falava de uma possível irregularidade relacionando uma MP de 2009 com uma atividade privada do filho do ex-presidente de 2014. Como isso era muito forçado, criaram um processo para 2014, relacionado a compra de caças no governo Dilma e outro processo relacionado àquela MP de 2009, relacionado a um dinheiro imaginário, que ninguém sabe que existe, que esse envolve o presidente e o Gilberto Carvalho. Estou passando muito rápido pelos processos, peço até desculpas.
Voltando para esse caso da Época: o procurador não quis revelar, em um processo que foi aberto dentro do Conselho Nacional do Ministério Público, quem pediu a notícia de fato. A gente só acha curioso que, um dia depois de ela ter sido distribuída, um repórter da Época foi lá – vamos acreditar em coincidência – e pediu. Então, a probabilidade de ter sido alguém da Época é muito grande.
Sobre a independência da imprensa brasileira em relação ao ex-presidente nos processos que ele sofre, acho que a maior palavra é a do Moro, que sempre agradece o apoio da imprensa. Ele agradece o apoio da imprensa, e em um artigo de 2004, ele falou da importância de uma imprensa “simpatizante”. No caso, ele estava falando das Mãos Limpas. E ele ganha prêmios, ele vai em eventos. Então, quer dizer, houve ali uma simbiose muito complicada. E o caso do apartamento do Guarujá, que é o de consequência política, histórica e pessoal maior para o presidente, a primeira vez que alguém entrou na Justiça com esse caso foi o ex-presidente processando o jornal O Globo.
Marina Amaral – E a matéria era de quando?
José Chrispiniano – Fim de 2014. O Moro cita uma matéria de 2010. Eu acompanhei pessoalmente quase todas as audiências em Curitiba. Até hoje, como o Jornal Nacional dá esse processo no seu resumo, está errado. O Jornal Nacional diz que o ex-presidente foi condenado por ter recebido um apartamento no Guarujá em troca de contratos com a Petrobras. A sentença não diz isso. Essa é a tese do Ministério Público, que cita três contratos. Quando o Moro vai condenar, ele cita um contrato, mas ele não diz que o dinheiro veio daquele contrato ou que aquele contrato foi dado em troca do apartamento. Isso não está na sentença. O ex-presidente foi condenado por uma coisa chamada “atos de ofício indeterminados”.
E, provavelmente, a maioria das pessoas não sabe disso. Atos de ofício indeterminados é como você tomar uma multa de trânsito e perguntar se foi por excesso de velocidade, por estacionar em lugar proibido, por dirigir bêbado, e o Detran te responder: “Eu estou te multando porque você tem carro há quatro anos e alguma coisa você deve ter feito”.
O concreto da indignação do ex-presidente diante da imprensa, diante de uma coisa absurda, kafkiana, é que as pessoas falam assim: “Mas ele reclama da Globo?”. Como ele poderia não reclamar, se ele se sente injustiçado?
Marina Amaral – Você falou que esses processos surgiram de reportagens da imprensa. Eu acho que isso não é uma coisa tão rara. Houve vários outros casos que começaram na imprensa, acho que até o caso Collor começou na imprensa. O jornalismo investiga e chega nos casos. Você acha que a imprensa falhou em informar? Toda a imprensa ou a Globo, especificamente, perseguiu o presidente?
José Chrispiniano – Eu acho que, como um todo na imprensa, o que existe hoje não é jornalismo investigativo. Existe uma reprodução de materiais do Ministério Público, que cinco minutos antes te liga para pedir um outro lado completamente burocrático, que é hipócrita, que é uma homenagem que o vício faz à virtude. É só esse pedido do outro lado. Porque, não importa o que você diga, aquela versão é a que vai sair. Ato de ofício indeterminado é um deles. Corrupção é você receber algo em troca de um ato seu como funcionário público. O ato do Lula inexiste. O Moro não conseguiu identificar.
Marina Amaral – Na abertura da sentença ele cita várias delações…
José Chrispiniano – Mas as delações não fazem referência ao crime que ele está investigando. Para você ser condenado, não basta a opinião sua de que o Lula seja corrupto. Para condenar em um processo penal, você tem que fazer uma acusação de crime e provar a acusação de crime que você fez. Existe uma acusação de crime feita pelo Ministério Público, o que o Moro escreve na sentença é diferente da tese do Ministério Público e tem muitos problemas jurídicos e de comprovação. Tanto do ponto de vista de não conseguir dizer o que o ex-presidente fez quanto de não conseguir provar que o apartamento é dele, pelo outro lado. Então, ele não prova nem que ele recebeu alguma coisa. Na realidade, o apartamento é da OAS, porque o apartamento não só é formalmente da OAS, como ele está amarrado financeiramente. A OAS, para dar o apartamento para o ex-presidente, precisaria pagar, liberar o imóvel do banco. E, em um caso hipercoberto, a imprensa ficava cobrindo supostas brigas, discussões entre o advogado e o Moro. Outra coisa que é interessante: três contratos, sobra um. São três contratos que seriam a origem do dinheiro, dois da Repar, que é uma refinaria no Paraná, e um em uma refinaria do Nordeste. Nos dois da Repar, o Moro desistiu, não estão na sentença. No da refinaria do Nordeste, o depoimento do cara da OAS diz que o dinheiro vai para o PSB de Pernambuco. Diz. Isso está em um documento público. Então, assim, você tem três contratos, e o Moro só pode julgar esse processo porque ele teria, em tese, relações com a Petrobras. Então, você criou um processo jurídico farsesco, e isso rolou na sociedade brasileira.
Juristas, inclusive de direita, colocam isso. Isso que a gente fala que a democracia vai sendo rasgada. Eles gostam de insistir, o Barroso, o Moro, que estão julgando uma pessoa comum, embora é esquisito eles dizerem que estão julgando uma pessoa como qualquer outra e ter 3 mil policiais para fazer a guarda no depoimento dele em Curitiba, algo não faz sentido. Mas esse processo suprimiu a vontade de votar de 30 milhões de pessoas. Quando falo que a Globo é um ator político, na véspera do julgamento do Supremo sobre o habeas corpus do presidente, eu recebo uma mensagem de uma pessoa do meio jornalístico que diz assim: “A Globo acha que perdeu amanhã. Eles vão vir com tudo no Jornal Nacional”. Já imaginava, eu vou assistir 22 minutos de uma matéria, a matéria da véspera do julgamento do HC que parece uma espécie de parecer jurídico televisivo. Não é uma matéria, e vai para cima da Rosa Weber, vai para cima do Gilmar, vai para cima do Alexandre de Moraes citando voto, citando matéria, dá um minuto do voto anterior do Gilmar. Quando acaba aquilo, pensei: “Bem, acho que vai vir algo no final do telejornal”. Porque a Globo costuma, às vezes, pôr no final. Veio o tuíte do general do Exército. A Globo lendo um tuíte de um general do Exército. É ao mesmo tempo uma coisa muito moderna, um Exército que se organiza pelo Twitter, mas que traz de volta coisas muito antigas do país. Então, como é que você vai dizer que ele não é um ator político?
Marina Amaral – Kotscho, você avalia de forma parecida a cobertura da imprensa? O que você acha, como a imprensa se comportou nessa cobertura desse caso do Lula?
Ricardo Kotscho – Concordo com o Chrispiniano, não é só um ator político a Globo, a Globo é o grande partido político hoje em aliança com o poder Judiciário e com outros setores da mídia, o Instituto Millenium e tudo isso que tem aí. Você tem hoje uma superaliança política que envolve a Globo, outros veículos, uma grande parcela do Judiciário muito acima dos partidos políticos. Os partidos acabaram. Todos os partidos foram dizimados pela Lava Jato. O que eu penso da imprensa brasileira é o seguinte: eles foram derrotados quatro vezes seguidas pelo PT, isso é um fato público e notório. Depois da última, eles chegaram à conclusão de que não podia continuar desse jeito, porque, se continuasse, o Lula voltaria. O objetivo principal da Lava Jato desde o início, para mim como cidadão, era tirar o PT do jogo. Tirar a Dilma primeiro, porque faz parte do processo, e depois prender o Lula. Eu acho que agora vão pegar alguém do PSDB para disfarçar e tal, mas logo, logo a Lava Jato tende a acabar, porque o objetivo já foi alcançado. O Lula, para mim, hoje, do jeito que as coisas estão, não sai da prisão antes da eleição. Depois eu não sei o que vai acontecer.
Marina Amaral – Chrispiniano, vocês pensaram em uma alternativa de chamar jornalistas investigativos para tentar mostrar de modo claro o que estaria acontecendo ali objetivamente que poderia ser retratado como uma injustiça?
José Chrispiniano – Eu acho que a questão é mais complicada no seguinte sentido: dois jornalistas que cobrem muito a Lava Jato contam a história da delação do Léo Pinheiro em momentos diferentes, e são jornalistas, que eu saiba, não simpáticos ao Lula – um não é nada simpático ao Lula. Mas uma contou que foi negada a primeira versão da delação do Léo Pinheiro, que inocentava o ex-presidente Lula no episódio do tríplex. E saiu na Folha, saiu. No meio do processo, o Léo Pinheiro foi – e eu estou citando só informações da grande imprensa – forçado a trocar de advogados depois de estar preso há um ano. Ele foi preso em 2014, foi mandado para a domiciliar pelo Supremo, depois o Moro prende de novo, e ele, preso, faz o depoimento que incrimina o ex-presidente. Então, a duas horas de o depoimento começar, um jornalista que tem excelentes fontes na Lava Jato, o André Guilherme, do Valor, publicou que ele iria mudar o depoimento, a versão da defesa dele, trocar os advogados e que iria depor incriminando o ex-presidente Lula. Isso saiu na grande imprensa. Uma sociedade em muitos países do mundo iria achar isso um absurdo.
Marina Amaral – Então, esse é o ponto em que eu queria chegar. A gente põe toda a culpa na imprensa. Não teve gente que tentou fazer no sentido contrário? Faltou investigação? A imprensa se comportou como um bloco, todos fazendo a mesma coisa? Não houve jornalistas que tentaram mostrar outros lados?
José Chrispiniano – Sobre esse caso, por exemplo, específico, quando saiu a primeira matéria na Folha, a defesa do Lula exigiu que a PGR investigasse. Não investigou. Existiu o caso Tacla Durán, não teve pressão para investigação. Então, não é só uma questão de saber ou que deixar de saber. Realmente existe a máquina do Judiciário que se move ou não se move, mas existe cumplicidade excessiva. Quase todo grande jornal tem um um chamado “lavajateiro” hoje em dia, e o “lavajateiro” depende das fontes dele, e as fontes dizem: “Eu vou secar ou eu vou te municiar de acordo…”. A gente fez várias estratégias. Eu falei que eu fui assistir a todas as audiências, e a gente foi ver como as coisas funcionavam. Tinha jornalistas que a gente falava: “Esse aqui é o cara que, depois que eles oferecem para todo mundo e todo mundo recusa, eles dão o lixo para esse cara”. Não vou falar quem é, mas esse cara recebe os vazamentos mais absurdos. É o cara que ventila as teses especulativas etc.
Ricardo Kotscho – Hoje em dia se fala muito em jornalismo investigativo. Quando eu comecei a trabalhar lá atrás, não existia isso. Tinha jornalismo. Tinha o bom e o ruim. Hoje tem muito jornalismo investigativo. Eu não gosto dessa palavra porque “investigativo” me lembra polícia. A polícia é que tem que investigar. O jornalista tem que apurar para contar histórias verdadeiras, e o que está faltando na imprensa brasileira – e disso nós, jornalistas, repórteres, somos culpados, sim – é falta de reportagem mesmo. Não é investigativa, porque isso tudo que ele falou aí saiu na grande imprensa. Se isso vai ter repercussão ou não, se a Justiça vai tomar providência é outra história. Mas o nosso papel é contar o que está acontecendo, é ir aos lugares, é brigar para fazer reportagem. E isso não está acontecendo.
Marina Amaral – Não está acontecendo ou isso acaba esmagado pela força da Justiça também? Lembra as coletivas em off do Janot, por exemplo.
Ricardo Kotscho – Uma grande diferença é o seguinte: eu participei de uma equipe grande no Estadão e coordenei uma série de reportagens sobre as mordomias em 1975, 1976, que foi a primeira reportagem de denúncia de corrupção, de sacanagem e privilégio que havia no Brasil no governo militar. Foi no ano em que tiraram a censura do Estadão. Me chamaram lá e falaram: “Bom, agora pode contar, vamos lá, vamos contar”. Eu levei três meses trabalhando nisso com uma equipe de repórteres, e deu um rolo danado. Nós contamos o que estava acontecendo no Brasil e que estava sendo escondido pela censura, pela ditadura. O dono do jornal foi chamado a Brasília, houve uma pressão enorme, mas saiu no jornal. Isso foi uma briga nossa lá dentro, demorou muito, mas acabou saindo. Não foi um prato feito. O que acontece hoje com esses repórteres todos de quem a gente está falando é que eles não investigam coisa nenhuma, eles não apuram coisa nenhuma, não descobrem nada, eles recebem o prato feito.
É isso, eles recebem uma fita, recebem um vídeo. Hoje é para você, amanhã é para o outro. E geralmente vai para a Globo porque, você queira ou não, 90% da circulação, o que circula no país, a matéria-prima vem de lá. São três grandes agências que você tem no Brasil: Globo, Estadão e Folha. A matéria-prima de todos os blogs, sites, imprensa alternativa, blogs sujos, limpos, bonitinhos ou não, qual é a matéria-prima? E quem alimenta isso? Somos nós, repórteres. O que havia nesse período pós-censura, 1975, 1976, saiu no Estadão, mas continuou em outros lugares, é que os jornalistas eram muito unidos contra um inimigo comum que se chamava ditadura.
Então, tudo que a gente conseguia descobrir para infernizar a vida dos governantes de plantão, dos generais que estavam no governo, a gente fazia. Eu não sinto isso hoje, o jornalista disposto a ir às últimas consequências para contar o que está acontecendo. O Brasil não sabe o que está acontecendo no Brasil hoje. Sabe aquilo que os juízes e os procuradores da Lava Jato querem que o Brasil saiba. E a imprensa participa dessa ampla aliança, que quer ficar no poder, é isso que está em jogo agora.
Marina Amaral – Você chegou a receber jornalistas que, de fato, queriam dar um outro lado mais real?
José Chrispiniano – Dessa parte do investigativo, vamos dizer assim, querer sentar para checar se uma tese fazia sentido ou não, da grande imprensa, acho que não. A gente publicou, nós mesmos publicamos, a gente entregou todas as informações para o Ministério Público. Por exemplo, todas as palestras do ex-presidente estão registradas onde elas aconteceram, foto. A gente abriu todas as informações. O ex-presidente tem todos os impostos de renda dele; se não me engano, com exceção do de 2010, estão na internet. Não existe ninguém mais transparente, ninguém foi colocado mais na vitrine do que ele. Mas eles não chegam com essas perguntas reais. Tem um episódio, que não envolve só jornalistas, que é engraçado, desse processo do Cerveró. O Janot, com a equipe dele, produziu uma denúncia, essa denúncia foi para a primeira instância. O Janot era procurador-geral. O procurador apresentou, o juiz aceitou, começa o processo. A denúncia era de que o ex-presidente tinha mandado o Delcídio modular ou impedir a delação do Cerveró para proteger o José Carlos Bumlai. Quando começa o processo, vai depor o Cerveró, que não é réu, ele é uma testemunha da acusação. Bem, o processo chegou na audiência. Aí, perguntam para o Cerveró: “Pediram para você proteger o Bumlai ou o Lula alguma vez?” E ele diz: “Não, nunca me pediram isso. E não fazia sentido o Delcídio mover meu advogado para pedir isso porque eu estava na mesma cela que o Bumlai durante esse período que vocês estão falando”. Isso foi aparecer no julgamento. Sabe coisa constrangedora? E as coisas vão assim. Na denúncia dos caças, os procuradores escrevem que Lula e Dilma estiveram na África do Sul, em uma reunião com o primeiro-ministro da Suécia para discutir a compra dos caças Gripen. De fato, realmente, ao mesmo tempo estavam a Dilma, o Lula e o primeiro-ministro da Suécia na África do Sul para o velório do Mandela, junto com o Sarney, o Fernando Henrique Cardoso e o Collor. E nunca houve essa reunião. Mas ele pôs lá em um documento oficial do Ministério Público brasileiro envolvendo o primeiro- ministro da Suécia. E, agora, a Justiça tentou três ou quatro vezes ouvir o Lula, a defesa do Lula arrolou o primeiro-ministro da Suécia. Ele tem que ser ouvido por carta. A imprensa tratou isso como se fosse uma megalomania do Lula: “Esse Lula é maluco, está pondo o primeiro-ministro da Suécia para testemunhar no caso dele”. Mas ele está citado no processo. E o juiz tentou três vezes ouvir o Lula sem receber essa carta do primeiro-ministro da Suécia, sendo que na regra processual o réu só depõe depois de todas as testemunhas. É um processo de desmoralização. Isso foi primeira página na Suécia, o governo sueco precisou desmentir. Esses episódios causaram problemas. O primeiro-ministro conservador português, Passos Coelho, apareceu em uma denúncia de domingo n’O Globo que acusava o Lula de ter feito lobby para a Odebrecht junto ao primeiro-ministro português. Ele teve que responder que não era verdade. Não é verdade. O embaixador brasileiro em Lisboa disse que não era verdade. Então, isso não foi bem apurado. Isso, aliás, é um clássico. Essa matéria da Época de 1º de maio, como muitas outras, citou autoridades estrangeiras sem ouvi-las. Chefes de Estado, embaixadores… cita sem ouvir. Então, virou um jornalismo leviano. Eu não estou dizendo que as acusações todas da Lava Jato são mentira, estou falando do que eu acompanhei, do que eu vi. Fiquei três anos fazendo o outro lado. E o Kotscho viajou para 26 países e eu viajei com o presidente para 27 depois de ele ser presidente. A gente foi duas vezes para a Etiópia. Tem um depoimento do chefe de segurança do presidente em que ele diz assim: “Quando o presidente dormia fora de São Bernardo, a gente registrava a diária”. Aí o Moro sacou que todos os dias em que o ex-presidente estava fora estava registrado onde ele estava. E não tem um dia, a não ser logo que ele saiu do governo, que ele ficou no Guarujá. Zero.
Marina Amaral – Aquele apartamento nunca foi habitado, dá para ver pelas fotos.
José Chrispiniano – Ele nunca teve a chave.
Marina Amaral – Não é papel da imprensa ser oposição ao governo?
Ricardo Kotscho – Não acho. Acho que o papel da imprensa é fiscalizar os governos, todos os governos, fiscalizar as empresas privadas. Porque só tem corrupção se tem dos dois lados, não existe corrupto sem o corruptor. Tem uma frase famosa do Millôr Fernandes que fala que “imprensa é oposição, o resto é armazém de secos e molhados”. É uma frase ótima, mas não acho que a imprensa tem que ter um papel de partido político. Partido é partido, imprensa é imprensa, Forças Armadas são Forças Armadas, que agora já estão também querendo entrar nesse rebu todo. Bem lembrado o tuíte que, por acaso, o general resolveu escrever no final do Jornal Nacional.
Queria falar sobre como o governo agiu em relação às comunicações. Nós fomos muito mal na nossa política de comunicações, tem que reconhecer isso.
Nós não conseguimos fazer, durante todos esses anos, um bom jornal, uma boa revista, um site, quer dizer, uma mídia própria, que poderia ter sido construída ao longo desse tempo. Tentamos várias vezes, nunca deu certo. Até o pessoal brincava: “Imprensa sem patrão não funciona, precisamos arrumar um patrão para nós”.
E, do ponto de vista da política de comunicação de governo foi feito, até onde eu acompanhei, o principal projeto pelo Franklin Martins, mas também não houve uma negociação política para levar isso para o Congresso Nacional.
Sou obrigado a reconhecer ter participado disso e me sinto derrotado. Queria só lembrar uma frase do Antonio Callado, grande escritor e jornalista do Rio de Janeiro. Ele deu uma entrevista para a Folha poucos dias antes de morrer, foi a última entrevista dele. Pediram para ele fazer um balanço de tudo do que ele tinha participado na vida política brasileira. Ele falou o seguinte: “Eu lutei todas as lutas dos últimos 50 anos do lado certo. Perdi todas”. Só lembrar de uma outra de um grande brasileiro, o Darcy Ribeiro, mais ou menos na mesma linha. Ele falou o seguinte: “Eu quis transformar o Brasil em um país decente, justo, civilizado. Não consegui, sou obrigado a admitir que eu não consegui. Mas eu não gostaria de estar no lugar de quem venceu”. Eu me sinto assim: eu não gostaria de estar no lugar desses que hoje mandam no Brasil.
Marina Amaral – Chrispiniano, vocês fizeram alguma coisa que atrapalhou esse relacionamento? Eu vi vários colegas reclamarem que era difícil entrar no Instituto Lula, que não eram recebidos.
José Chrispiniano – Eu acho que, se a gente errou, não sou a melhor pessoa para apontar isso. Devo ter errado em alguma coisa ou outra. Eu sei de uma pessoa que falou para várias fontes etc., é um caso específico sem eu citar nome. Fala assim: “Eles sempre acham que têm uma sacanagem”. No caso dessa pessoa, sempre tem mesmo. Então, esse cara sempre, realmente, está vindo com uma sacanagem. E, para todo mundo com quem ele conversa, fala: “Não, o Chrispiniano é muito duro”. Aí ele vem e faz uma sacanagem. Eu falei: “Está vendo?”. Acho que isso virou uma opção de carreira para muita gente. Acho que virou um veio do jornalismo brasileiro. As pessoas acham que a família mais rica do Brasil – e não é – seria a do Lula. Os filhos do Lula estão desempregados. A família mais rica do Brasil é a que mais emprega jornalista. E sobre essa a gente sabe muito pouco.
Marina Amaral – Mas havia uma resistência, talvez, do Lula, que você apenas representasse?
José Chrispiniano – Eu não trabalhei para alguém que ocupava cargo público. Ele é uma pessoa pública, mas ele tem direito privado. E tem a opção ou não. E, diga-se de passagem, tinha gente que nem queria. A gente nunca abriu certos episódios que aconteceram. Posso abrir um, que acho vergonhoso. Em dado fim de semana – eu vou citar o mesmo primeiro-ministro conservador português –, ficou um fim de semana inteiro tentando falar com o ex-presidente Lula. Ligava, e o Lula: “Não vou atender ninguém no fim de semana, nada”. Na segunda-feira, se descobriu, a Veja tinha manipulado uma entrevista dele para as páginas amarelas para parecer que ele criticava o Lula, e ele tinha só elogiado o Lula na entrevista. Eu sei que isso é a Veja, eu sei que isso é a Veja.
Marina Amaral – Estrategicamente, vocês pensaram: “Bom, como é que eu vou lidar com uma pessoa do porte do Lula, mesmo não sendo mais presidente. Vai ter o assédio da imprensa”. Claro que vocês não poderiam prever a Lava Jato, mas havia um “vamos convidar os jornalistas para virem de vez em quando”, havia a possibilidade de ele ser candidato novamente. Não se criou uma estratégia de como lidar com a imprensa?
José Chrispiniano – Criou-se. Mas você acha que, se a imprensa gostasse disso, ela era boa porque a imprensa gostava dele?
Marina Amaral – Acho que, se tivessem conseguido um relacionamento com a imprensa, talvez tivesse sido melhor para o Lula. É isso que eu estou dizendo. Não sei o que aconteceu de fato. Eu só quero saber se você vê alguma justiça nessas críticas e se você acha se uma estratégia de mais simpatia com a imprensa teria favorecido o Lula.
José Chrispiniano – Eu não acho que a questão do Lula é tão pequena. E eu não me iludo com o suposto poder que alguns jornalistas acham que podem ter. Não me iludo porque a questão se decide mais em cima.
Marina Amaral – Ou seja, não no nível da imprensa.
José Chrispiniano – Não no nível do jornalista repórter. Não no nível do repórter, com todo respeito ao repórter. Tem um episódio de uma jornalista que conquistou a confiança não nossa, mas da Gaviões da Fiel. O editor mudou o texto dela, ela teve que ficar algumas semanas fora de São Paulo para não apanhar da Gaviões da Fiel. A gente não tem nada a ver com isso. Mas era um texto relacionado ao Lula. O editor alterou completamente o texto dela. Eu não sou a melhor pessoa para julgar isso, é o que eu acho. Acho que talvez alguns repórteres tenham a questão. Pode ter errado em uma matéria ou outra, algum repórter pode ter a ilusão de que a questão era dele, mas eu acho que não é o caso, não.
Ricardo Kotscho – Geralmente no governo, nas campanhas, na política em geral, quando as coisas não dão certo, têm algum problema, a culpa é do assessor de imprensa. A culpa é da imprensa, da assessoria de imprensa. Eu me acostumei com isso em três campanhas. Antes de trabalhar no governo, trabalhei em três campanhas do Lula que eram pauleira direto, então eu sabia como era isso. E, no governo, o Miro Teixeira, que era ministro de Comunicações – foi o primeiro ministro de Comunicações do primeiro governo Lula –, que também é jornalista, deputado, fazia uma brincadeira, no avião. A gente ia viajar e começavam a reclamar de coisas que tinham saído no jornal aquele dia, sempre reclamavam de alguma coisa. O Miro virava e falava: “A culpa é do Kotscho”. E aí ficou isso. Então, para evitar brigas entre eles, “a culpa é do Kotscho”. Então, não tem jeito. Isso é em todo governo. Se pegar os governos tucanos, você pega o livro do Fernando Henrique contando os bastidores do governo, também era isso. Quer dizer, a culpa é do assessor de imprensa. E o problema é que em nenhum governo o assessor de imprensa, ou o secretário, o nome que tenha, tem ascendência para resolver certas questões. O Chrispiniano tem razão em um ponto. Eu acho que isso é mais acima, isso é uma discussão política entre os principais dirigentes de um partido e os principais dirigentes da mídia. Eu tentava fazer isso, mas não era fácil. E uma vez quase entrei bem porque não deu certo e tal. E foge, não adianta, seja você quem for, o Franklin Martins, o André Singer, eu, o Chrispiniano, qualquer outro, você não tem esse poder. O poder fica realmente acima de você, e você tem que colocar esse poder na disputa. Sozinho não dá, é jogo perdido.
Mariana Simões – Por que vocês acham que a figura do Lula despertou tanto ódio na população brasileira? Eu li uma coluna da Eliane Brum em que ela traz a ideia de que ele tentou conciliar no governo dele, criar uma ideia de conciliação e que essa ideia, na verdade, não conseguiu ser emplacada no Brasil porque o Brasil é um país que talvez nunca vai conseguir se conciliar. O que vocês acham disso?
José Chrispiniano – Talvez ela seja uma das jornalistas que ache que eu tenha sido muito duro com ela algumas vezes. Essa questão do artigo, da conciliação e depois da não conciliação, eu acho que é mais concreto o cenário, relacionado à economia, a discordâncias políticas, a uma hegemonia longa que se anunciava ainda mais longa do PT no governo federal. Acho que essa questão não perpassa só o simbólico. Eu acho que é uma questão que tem fundamentações mais concretas. Tem coisas que você não consegue convencer as pessoas sobre o Lula, algumas pessoas. Não sei se o Kotscho passa por isso, mas é raro alguém me perguntar como o Lula é. “Você trabalha com o Lula há sete anos.” Trabalho, mas é raro alguém perguntar como ele é. Porque, em geral, as pessoas acham que já sabem como ele é; então, ele é uma figura muito próxima das pessoas, mesmo não sendo efetivamente próximo. Então, essa é uma primeira característica. Você não consegue convencer certas pessoas de que o Lula não é um bêbado, apesar de as pessoas terem visto, ao longo de oito anos, o Lula em uma série de discursos e não lembram de ter visto ele bêbado. Ele não é o Yeltsin da Rússia, para quem lembra quem era o Yeltsin. Então, assim, ele fez 2 mil discursos. Todo dia, de manhã, tarde e noite. Se as pessoas acham que ele bebe loucamente, ele não conseguiria ter feito isso. É prática a questão. Essa é uma. A segunda é que as pessoas não conseguem se convencer de que ele lê. E acho que ele até construiu um pouco esse mito em várias vezes em que ele ironizou. E ele construiu isso porque queria valorizar o trabalho, porque ele queria valorizar o povo, queria valorizar quem não tinha feito escola formal. Mas ele lê. E talvez, depois do câncer, ele começou a ler mais. E a terceira questão, que é a que acho que tem muito do ódio, que racha muito o país, que é a questão da corrupção. Depois de 120 delatores, depois de quatro anos de investigação, o Moro tem que condenar o Lula por “atos de ofício indeterminados”. É surreal. As pessoas acham fácil chamar o Lula de ladrão. O Moro não conseguiu dizer o que ele roubou. Depois de tudo isso. Por que é tão difícil para uma pessoa achar isso? Na minha opinião, tanto o caso da leitura quanto esse caso de corrupção são assim: as pessoas não podem admitir, certas pessoas, que o Lula fez política para melhorar o país. Porque, se elas admitirem isso, se colocam em uma situação difícil pessoalmente. É uma leitura talvez de psicologia de botequim. Isso virou uma questão política séria porque eu olhava os procuradores, eles jogaram a carreira deles, jogaram a vida deles, jogaram a credibilidade deles nessa questão. Eles foram lá, fizeram uma condução coercitiva, foram na casa dos filhos dele, acharam que iam encontrar alguma coisa. O Lula tem uma frase: “Já era para eles terem me desmoralizado a essa altura do campeonato”.
Acho que ele desperta um pouco o ódio, para voltar e fechar, em relação ao que ele simboliza do povo brasileiro, ao que ele simboliza de possibilidade de país, e em relação ao que esse país não se conciliou, ao que gera de ressentimento. Ele é o cara que veio de baixo e foi mais bem sucedido que os de cima. Ele é aquilo que ameaça. Eu imagino que, para os donos da mídia que são herdeiros, simbolicamente também deve ser um troço muito complicado. Tem um episódio que surgiu agora em uma investigação da Fifa, de 2008, que chegou um delegado estrangeiro elogiando o Lula para o Ricardo Teixeira e ele falou: “O Lula não manda nada, você tem que falar comigo”.
Para uma certa elite brasileira é isso, é inadmissível, rasga tudo. E ele sempre teve muita coragem, muita consciência de representar essas pessoas: “Não vou baixar a cabeça, me recuso a baixar a cabeça”, e sempre foi o que demarcou. Ele teve honrarias internacionais que ninguém no Brasil teve, a Globo não noticiou.
Ricardo Kotscho – Essa pergunta, Mariana, eu me faço desde que eu conheço o Lula. Há mais de 40 anos que a gente é amigo. Não vi isso nas campanhas anteriores, desde 1989, desde a primeira de que eu participei, esse ódio que a gente viu agora nos últimos meses. Mas a coisa se agravou nos governos dele porque ele passou a dar voz e recursos para setores da sociedade que estavam fora. Os governos anteriores, todos até o Fernando Henrique, governaram para 30% dos brasileiros. Ele resolveu governar para 100% e incluir os outros 70%. E isso aqueles 30% não aceitaram em momento nenhum. Esse negócio que vive repetindo aí, de ver pobre em aeroporto, de ver filho de empregada na faculdade, isso existe. E as pessoas babam. Eu moro em um lugar nos Jardins, em São Paulo, que é o reduto dos coxinhas nacionais. É um negócio impressionante. Outro dia, eu apareci em um bar com uma camisa vermelha que eu ganhei de presente, bonita. Uma mulher começou a passar mal. “Sai da minha frente, sai da minha frente, eu não posso ver essa cor na minha frente que eu passo mal”. Chegou a esse ponto. Isso não é uma questão só ideológica, é questão de caráter. O grande problema desse país, para mim, é falta de caráter. Essa elite brasileira não tem caráter, essa mulher que passou mal porque viu a cor vermelha é doente, não é um problema ideológico. E acho que o Brasil, hoje, é um país doente. Isso que fizeram com o Lula, o que falam do Lula na mídia e em todo lugar, isso não é de um país civilizado normal. Precisamos de mais psiquiatras, psicólogos, aqui só tem cientista político agora, todo mundo é cientista político. Você liga a televisão, é impressionante. Especialistas de tudo. E essa pergunta que você fez, os especialistas nem pensam nisso. É difícil mesmo responder, explicar esse ódio crescente. Havia diminuído. Eu senti, na campanha de 2002, tinha diminuído muito esse ódio.
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