É sempre da escravatura que estamos a falar?

Seja a propósito de um discurso do Presidente seja de um museu que há-de nascer, falar sobre os Descobrimentos parece já indissociável de discutir a escravatura e o papel que nela tiveram os portugueses. Reconhecê-lo é um passo para a reparação. Fomos ouvir um sociólogo moçambicano, uma historiadora brasileira, uma portuguesa afrodescendente e o director de um museu nacional.
Gravura de Jean-Baptiste Debret representando o mercado de escravos da Rua do Valongo, Rio de Janeiro, no  século XIX
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Gravura de Jean-Baptiste Debret representando o mercado de escravos da Rua do Valongo, Rio de Janeiro, no século XIX JEAN-BAPTISTE DEBRET
Quando a polémica estalou nos jornais, depois de publicada no semanário Expresso uma carta aberta em que dezenas de académicos portugueses e estrangeiros se insurgiam contra o nome do futuro museu onde o presidente da Câmara quer ver contada a história dos Descobrimentos, já Lisboa estava cheia de turistas. Será que sentem falta desse museu que há-de vir ou basta-lhes uma visita à Torre de Belém, tirar umas fotografias junto ao Padrão dos Descobrimentos, com os pés assentes no planisfério, e ficar uns minutos em frente dos Painéis de São Vicente, tentando, com ou sem sucesso, identificar o Infante D. Henrique?
De Museu das Descobertas, assim se chamava no programa com que o socialista Fernando Medina se candidatou à autarquia, passou a Museu da Descoberta (assim, sem “s”) nas propostas para a cidade pós-eleições. Um projecto que fora já muito discutido quando o agora primeiro-ministro presidia a Lisboa e tinha Medina como número dois. O mesmo António Costa que dizia na sexta-feira em entrevista ao Ípsilon, de forma algo surpreendente num chefe de Governo português, que "é preciso descolonizar a expressão Descobrimentos".
Do que há-de ser o Museu da Descoberta – a acreditar que se concretiza, uma vez que os que já estiveram previstos à volta do mesmo tema ficaram pelo caminho – pouco ou nada se sabe. Contactados pelo PÚBLICO, nem o presidente da autarquia nem a sua vereadora da Cultura quiseram pronunciar-se. “O projecto ainda está a ser desenhado, pelo que a CML entende que é prematuro falar sobre ele”, disse Catarina Vaz Pinto. Medina optou por remeter qualquer questão para o seu programa de governação, onde reitera o compromisso de incluir no futuro museu um núcleo dedicado à escravatura.
Foi precisamente porque a retórica política habitualmente associada aos Descobrimentos, mesmo no Portugal de hoje, tem tendência a centrar-se nos aspectos positivos, deixando de fora temas difíceis como o da escravatura ou abordando-os com brevidade, que não tardou a que muitos académicos, políticos, cronistas, directores de museus e outros responsáveis públicos se juntassem ao debate.
Tinha sido assim quando, em Abril do ano passado, o chefe de Estado esteve na ilha de Gorée, no Senegal, um dos maiores centros africanos do comércio de escravos entre os séculos XV e XIX, fundado a partir de uma feitoria portuguesa. O facto de Marcelo Rebelo de Sousa ter, então, preferido sublinhar o contributo do Marquês de Pombal para os esforços abolicionistas do que aproveitar a oportunidade para reconhecer as responsabilidades que o país teve durante séculos no comércio de milhões de pessoas – a coroa portuguesa dominou por completo o negócio transatlântico nos séculos XV e XVI – instalou a polémica. Ainda para mais quando o cenário era de grande simbolismo, um local património da humanidade onde o Papa João Paulo II pedira já perdão pela escravatura.
Houve quem defendesse o Presidente e houve quem o criticasse duramente. Nessa altura, como agora, o pano de fundo da discussão é a capacidade – ou a incapacidade – de Portugal reconhecer o seu passado esclavagista. Nessa altura, como agora, falava-se da necessidade de actualizar o discurso em relação à Expansão para que se tornasse menos eurocêntrico (ou lusocêntrico) e para que se afastasse de uma retórica que começou a ser construída no fim do século XIX e que se consolidou com o nacionalismo do Estado Novo, baseada na associação dos Descobrimentos a uma sucessão de actos heróicos, corajosos, que se traduziu no apogeu improvável de um pequeno país que contribuiu como poucos para dar a conhecer o mundo ao mundo. Mas falava-se também, e por oposição, de orgulho na história nacional, numa relação descomplexada com o passado que dispensa quaisquer actos de contrição e, sobretudo, um pedido de desculpa.
De um lado e de outros as posições extremaram-se, mesmo quando alguns insistiam em criar consensos. A história, também aqui, repete-se.
Afinal, o que quer a autarquia com este Museu da Descoberta? Efectivamente um museu, ou antes uma rede de espaços que já existem com uma espécie de centro interpretativo a fazer a síntese, carregado de multimédia e para consumo rápido, essencialmente destinado aos turistas que cada vez mais visitam a cidade? Se é um museu a criar, com que peças se vai fazer? E, se a sua ambição é, ao que parece, nacional, que sentido faz ser de iniciativa camarária?
Sem respostas de qualquer entidade oficial – contactados pelo PÚBLICO, a Direcção-Geral do Património Cultural, que tutela os museus do Estado, e o Ministério da Cultura também não foram além do comentário de circunstância a elogiar qualquer iniciativa que se destine a preservar o património português e a reforçar a cooperação entre o poder central e Lisboa –, não há nada a fazer se não reflectir sobre o programa. O que deve ser o novo museu? E que história ou histórias deve ele contar?
O director de um museu português com uma colecção particularmente ligada à época da Expansão, um sociólogo moçambicano que é professor de Estudos Africanos na Suíça, e uma historiadora brasileira que se tem dedicado ao estudo da diáspora africana nas Américas contribuem, a pedido do PÚBLICO, para o debate. A eles junta-se a presidente de uma associação portuguesa de afrodescendentes que vai construir um memorial de homenagem aos escravos em Lisboa.
A discussão que o nome levantou, defendem os três primeiros, é sintomática do quão importante é falar sobre este passado partilhado, complexo, sem adoptar posições extremadas ou maniqueístas, insistindo numa leitura múltipla e aberta da história, com muitos narradores, numa leitura capaz de fazer a ponte com o presente. Ainda que pareça prematuro, discutir o nome do museu, acrescentam, ajuda a pensar no que ele pode e deve vir a ser. Tornar visível este passado histórico no que à escravidão diz respeito, procurando estabelecer essas ligações com a contemporaneidade, é o que a presidente da Djass quer fazer a partir do memorial.

Mudanças no Brasil

No Brasil, onde o tema da escravatura é muitíssimo mais estudado do que em Portugal, a palavra “Descobrimentos” tem sido criticada por pressupor que ali não havia ninguém antes dos portugueses, diz Martha Abreu, professora da Universidade Federal Fluminense, no estado do Rio de Janeiro. No seu lugar tem-se generalizado o uso de “chegada”. Este, explica, é um dos reflexos da mudança que tem vindo a acontecer no país. “A história do negro no Brasil foi até há pouco tempo contada a partir do olhar branco e de forma muito incompleta. Muitas conquistas e muitos protagonismos da população negra depois da abolição não foram reconhecidos. Mas a situação tem mudado.”
Abreu, que coordena vários projectos sobre a história e a memória da escravidão, diz que a Lei 10639, diploma em vigor que torna obrigatório o estudo da história do continente africano e da cultura afro-americana nas escolas, tem sido um valioso “instrumento de reeducação das relações raciais para brancos e negros”, ajudando a identificar o racismo no quotidiano de hoje.
Um museu como o que a autarquia propõe para Lisboa, se souber tratar a memória da escravatura na óptica da reparação simbólica e histórica, também pode contribuir para uma mudança, acrescenta esta investigadora que está envolvida na criação do Museu da Escravidão e Liberdade (nome provisório) no Rio de Janeiro, um projecto do governo da cidade a que está associada a UNESCO (sigla em inglês da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) e que deverá estar pronto em 2021. “Reparar é reconhecer a participação de Portugal no tráfico e a violência desta actividade. Essa reparação é fundamental para que se possa escrever uma nova história da colonização sem a reprodução de distorcidas e preconceituosas explicações sobre os africanos e afro-americanos.”
Não se trata, acrescenta o sociólogo moçambicano Elísio Macamo, de criar um museu da escravatura para que Portugal possa pedir desculpa pelo seu passado histórico, mas de olhar para ele como uma oportunidade para demonstrar um “sentido de moral atento à história e à diversidade que ela produziu”. Os nomes, esses, serão sempre controversos, reconhece este professor de Estudos Africanos. O importante é a intenção que sustenta o projecto e a forma como se documenta a dificuldade de tratar estes assuntos.
“Se os europeus quiserem ter o mérito de terem contribuído para um novo sentido de humanidade, algo que o Iluminismo sempre propalou, então não é aos africanos que devem pedir desculpas, mas sim a si próprios, porque com a escravatura e com o colonialismo teriam violado os seus próprios princípios éticos. Reconhecer um erro histórico é saber aprender com a História.” O que Portugal precisa, defende o investigador, tal como outros países que tiveram um passado semelhante, com impérios coloniais, é um “museu da Redescoberta, isto é, da redescoberta da sua própria humanidade”, algo que só poderá resultar de uma reflexão ética séria e da certeza de que a moral é algo que precisa de ser constantemente negociado.
“Espero que tenham aprendido que o mal que eles fizeram aos outros devolveu-os à sua condição humana, mas ao mesmo tempo, e através da abolição e da descolonização, lhes deu a possibilidade de se reconciliarem com os valores que eles conscientemente violaram. É esse, em minha opinião, o passado que precisa de ser reflectido e celebrado. A grandeza de Portugal está na sua consciência moral.”
A historiadora Martha Abreu também recusa uma narrativa limitada à denúncia e à vitimização das pessoas escravizadas, lembrando que o esforço do Brasil vai hoje no sentido de sublinhar o contributo dos africanos na construção da identidade do país. “A memória da escravatura é ainda uma coisa muito sofrida, mas está sendo exposta e divulgada. Não mais está sendo colocada debaixo do tapete. Precisamos de falar na violência, mas também na colossal obra construída pelos africanos apesar dela. A resistência e as inúmeras formas de reconstrução da vida e da esperança, como as famílias escravas, a música negra, as religiões afro-americanas, são fundamentais para que se possa contar uma história mais verdadeira e onde todos, mas especialmente as crianças e os jovens negros, possam ter orgulho do seu passado.”
É também o contributo dos africanos para a construção de Portugal que Beatriz Gomes Dias, presidente da Djass, a associação que vai construir um memorial da escravatura no âmbito do Orçamento Participativo (OP) de Lisboa, quer ver sublinhado.
O monumento que homenageia os milhões de pessoas escravizadas e que quer pôr o país a reflectir sobre esta herança pesada com reflexos óbvios no racismo que marca a sociedade portuguesa e que muitos se recusam a reconhecer ou a discutir em profundidade, deverá ser construído no próximo ano.
Memorial e Museu da Descoberta não têm nada que ver um com o outro, sublinha Beatriz Gomes Dias, que ainda não perdeu a esperança de ver o projecto promovido pela associação construído num dos relvados da Ribeira das Naus, junto à Praça do Comércio, tal como previsto na candidatura ao OP. “Temos tido reuniões com a Câmara e estamos a estudar as formas de implantação. Queremos que nasça de uma discussão com a sociedade civil porque, ao contrário deste museu de que se fala, foi da sociedade civil que o memorial partiu. Isto porque o Estado português continua a resistir em reconhecer a escravatura como um capítulo longo e muitíssimo violento da história do país.”
Reparar, insiste a historiadora Martha Abreu, exige este movimento de auto-reflexão, “uma história verdadeira pelo lado europeu” que reconheça também a pilhagem e a violência, algo fundamental para a reeducação de todos, brancos e negros, europeus e não-europeus.

Disneylândia dos Descobrimentos

António Filipe Pimentel, historiador de arte e director do Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA), defende que a investigação tem vindo a distanciar-se de uma leitura que isenta o império português de responsabilidades na escravatura e noutras formas de violência, embora reconheça que o discurso público, mesmo aquele que é feito através do que mostram os museus, tem sido lento a acompanhar o que se vai produzindo nas universidades.
Pimentel não tem dúvidas de que falta um grande museu em Lisboa em que a época dos Descobrimentos seja abordada de forma consistente em todas as suas valências, “sucessos e tragédias”. Diz, no entanto, que esse museu não precisa de ser criado, mas recriado – e que é o de Arte Antiga, para o qual há já um plano de ampliação que nenhum poder administrativo, nem local nem central, parece apostado em desbloquear, em financiar. “Os museus públicos são, por natureza, coisas vivas, não são jazigos. Claro que, na subnutrição a que são obrigados, esta urgência do novo sem que se pense em tirar os que já temos da quase indigência choca os que neles trabalham.” É neste cenário, assegura o historiador de arte, que importa parar para pensar: “Queremos um road show da Expansão que já deu origem a uma zaragata ideológica, feito a pensar só em quem vem de fora, ou queremos um museu sério onde muitos portugueses, que pouco sabem sobre Descobrimentos, apesar de terem decorado uns nomes e umas datas, aprendam sobre o seu país? Esse museu sério já existe, só não existe a sério.”
Com “80 a 90% do seu acervo relacionado com os Descobrimentos”, o MNAA assume essa vocação, acrescenta o seu director, falando de outras instituições em Lisboa com quem, nesta matéria, é chamado a dialogar: os museus nacionais de Etnologia e do Azulejo, o da Marinha ou a Igreja de São Roque, no Bairro Alto.
Do pouco que sabe sobre o projecto – a partir do que leu nos dois programas de Medina e nos jornais –, Pimentel diz que o mais provável é haver uma grande confusão em torno do que é, ou não, um museu. E do que é, ou não, um centro interpretativo, um sítio patrimonial e um programa em rede. “Parece-me que o que a câmara quer é uma rede, que terá como estrutura física um novo centro interpretativo, com muito multimédia, virado para o turismo e de consumo rápido”, acrescenta. “Ora, isso está longe de ser um museu e perto de ser uma Disneylândia dos Descobrimentos.”
A definição de museu está feita pelo ICOM, sigla inglesa do Conselho Internacional de Museus, e inclui, entre outras coisas, uma colecção, um programa científico rigoroso, uma equipa capaz de produzir exposições e investigação de referência, explica. “O papel de um museu não é captar turistas, embora seja muito importante pensar no turismo e no que esta nova oportunidade económica pode significar para as colecções públicas. E enquanto o fazemos há que decidir se queremos apoiar a marca Portugal no sol, praia, sardinha e país barato, ou se vamos insistir no legado patrimonial que nos distingue e que começa muito antes dos Descobrimentos.”
Seja o que for que venha a nascer do programa de Medina – há quem defenda que o museu é um objectivo demasiado ambicioso para ser atingido num mandato –, certo é que não será fácil de pôr de pé. E em boa parte porque, como escrevia o historiador António Hespanha nas páginas do Jornal de Letras, os portugueses raramente ouviram o que os outros diziam deles.