quarta-feira, 25 de julho de 2018

Política Nossos fundamentos para defender Lula e a democracia brasileira

Política

Nossos fundamentos para defender Lula e a democracia brasileira

 

 
25/07/2018 11:17
 
 
No começo deste mês de julho, um grupo de 45 dirigentes políticos e sociais entregou à opinião pública nacional e internacional a “Declaração em Defesa do Presidente Lula e da Democracia no Brasil”. Todos os assinantes do documento contam com uma longa experiência e conhecimento sobre o Brasil desde diferentes âmbitos e muitos já trabalhamos em assuntos ligados à definição da política exterior chilena com respeito a este país. Ademais, estamos unidos por um sentimento de afeto e consideração pelo maior país da região, um ator chave para avançar na cooperação e integração latino-americana, que é um propósito que também buscamos.

O documento que assinamos era ao mesmo tempo analítico e fundado em antecedentes sólidos. Também respeitoso em suas solicitações. Apesar disso, uma campanha coordenada e sistemática em diversos meios de comunicação escritos e audiovisuais propôs reparos e até desqualificações à expressão de nosso direito em um tema que consideramos vital para o futuro da democracia na América latina. Acreditamos que isso faz com que seja necessário insistir na legitimidade do nosso manifesto e defender o conteúdo que apresentamos.

1. Em primeiro lugar, nos surpreendeu o fato de que nenhuma dessas objeções tenham surgido de um exame do problema dentro do contexto histórico e político brasileiro. Pelo contrário, pareciam considerar que a situação atual nesse país é plenamente democrática e corresponde, em todos os seus âmbitos, à existência de um estado de direito que funciona apropriadamente. E essa constatação é realmente inquietante para qualquer latino-americano, já que a verdade é exatamente o oposto.

2. O Brasil vive hoje uma das três maiores crises políticas vigentes hoje no hemisfério, equivalente em gravidade às situações na Venezuela e na Nicarágua, mas com diferentes características. Desde 2016, o país não tem podido cessar o agravamento dessa crise. A destituição da presidenta Dilma Rousseff, após uma discutível ação constitucional, foi um processo carregado de irregularidades e, sobretudo, de paixões. Finalmente, ela foi afastada do cargo sem que fosse comprovada a causa para determinar o “impeachment”, como a Constituição brasileira estipula. Tanto é assim que os autores deste virtual “golpe branco” sequer se atreveram a aplicar a ela uma sanção complementária de inabilitação para exercer e postular a cargos públicos no futuro. Logo, a Presidência foi assumida pelo então vice-presidente Michel Temer, companheiro de Dilma na chapa eleita em 2014, e corresponsável por gestar todas as manobras necessárias para ampliar a coalizão política que permitiu a destituição. Os efeitos dessa decisão foram os que se podiam prever: a administração de Temer carece de legitimidade, e seu índice atual de apoio é de apenas 3%, o que, sem dúvidas, é o mais baixo do mundo, enquanto sua rejeição está próxima dos 80%. Simultaneamente, como resultado inevitável neste quadro, os outros dois poderes do Estado se viram visto afetados por esta situação. O Parlamento, que tem mais de 90 deputados e mais de 20 senadores acusados ou julgados por corrupção, conta com um apoio tão baixo quanto o do presidente. E o Poder Judiciário, inevitavelmente, se vê envolvido em um clima de disputa política e polarização que acaba influindo em várias de suas resoluções.

3. O pano de fundo – e, em alguma medida, a causa desta situação – é uma crise estrutural que afetou o regime político brasileiro desde a aprovação da Constituição de 1988 (e ainda vigente), ao final de uma ditadura militar que durou 21 anos. Esta carta magna favoreceu uma estrutura múltipla de partidos políticos e se estabeleceu um sistema de configuração territorial dos distritos eleitorais que fragmentava o poder e tornava quase impossível que as maiores forças políticas disponham de um respaldo suficiente no Congresso. Um bom exemplo é o ocorrido na segunda administração de Lula da Silva, eleito por uma ampla margem apesar de o seu Partido dos Trabalhadores (PT) ter reunido somente 70 assentos em uma Câmara de deputados formada por 507membros. A consequência disso foi que desde o primeiro governo democrático após a ditadura – o de José Sarney, 1985-1990 – todos os partidos que chegam ao poder estão obrigados a construir coalizões de muitos partidos, muitos deles pequenos, para formar uma maioria que permita governar. Isso obriga os chefes de Estado a dividir as posições no gabinete ministerial e na administração pública, espaços que são usados por estas forças políticas para empregar seus militantes, pagar favores políticos e ir exercendo diversas modalidades de coação e corrupção. É óbvio dizer que mesmo os governos mais estáveis, como os dos presidentes Fernando Henrique Cardoso e Lula da Silva, não puderam reunir os votos necessários para modificar esta situação, cujos efeitos se gravaram cada dia mais e afetam todos os partidos do espectro político brasileiro.

4. Naturalmente, nós respaldamos há muito tempo a indispensável reforma política que a democracia do Brasil necessita para se enraizar e se fortalecer. Expressamente, apoiamos as investigações judiciais sobre corrupção, que têm mostrado evidências nos casos da Petrobrás e das grandes empresas construtoras Odebrecht e a OAS.

5. Um último tópico geral é a crítica que recebemos pela forma como nos referimos ao Poder Judiciário no Brasil. Aqui, a censura supera o limite do imaginável. Especialmente nestes tempos de globalização, a avaliação da situação internacional inclui, na análise de cada país, analisar a atuação de todos os atores públicos e privados referentes a ele. Isso se deve fazer, evidentemente, dentro do exercício da liberdade de expressão, não pode incluir, como proposta, o uso de meios materiais, e menos ainda o uso da força ou de uma intervenção militar.

6. E isto é algo que fazem, todos os dias, todos os governos e as organizações da sociedade civil, a respeito de todos os países, sem que isso provoque impugnações de nenhuma classe. Por exemplo, alguém criticou a atuação do governo ou dos partidos políticos chilenos que pedem mudanças ou novas eleições em situações como as da Venezuela ou da Nicarágua? Ou as que oferecem críticas e pedem ajuste de condutas de governos como Rússia, Iraque e Israel?  Hoje, sem a extensão ampla da liberdade de expressão para se referir às situações internacionais é difícil conceber o funcionamento da ordem mundial. Portanto, nunca há nada reprovável em uma apresentação que preserva as formas através da via regular apropriada dos meios de comunicação, como neste caso.

7. Pensamos que, com os antecedentes expostos, estamos em melhores condições de entrar a examinar a petição concreta que fizemos no processo judicial que afeta o ex-presidente brasileiro Lula da Silva. Se trata, segundo o nosso juízo, de uma situação especial e, em torno a ela, expressamos convicção com respeito à necessidade de uma mudança de postura do Poder Judiciário brasileiro.

8. Esta situação é particular, por várias razões:

– Lula foi um dos grandes organizadores do processo social e eleitoral que levou ao fim da prolongada ditadura brasileira, a primeira do seu gênero no continente – estabelecida dentro dos parâmetros da Doutrina de Segurança Nacional. Sua relevância nesse processo político de transição se impôs por meios legítimos e pacíficos, em um contexto de fortalecimento da organização sindical do país.

– Lula ajudou a afiançar a democracia política brasileira, competindo em três ocasiões pela Presidência, e reconhecendo de forma imediata aqueles que o venceram. Na quarta tentativa, ele ganhou o governo, e foi reeleito, quatro anos depois, por uma margem de votos ainda maior. Ao final desse segundo período, não tentou reformas constitucionais nem emendas legais que permitissem seguir exercendo o poder.

– Como presidente, Lula foi uma figura internacional fundamental no sistema internacional durante o seu mandato, e favoreceu particularmente a cooperação e integração entre os países latino-americanos, não tendo nunca um conflito importante com nenhum governo da região.

– O balanço de sua gestão mostra, ademais, os maiores resultados em avanços sociais alcançados no continente, entre os governos do recente ciclo democráticos: 40 milhões de pessoas que saíram da pobreza, os impressionantes programas Fome Zero e Bolsa Família, uma política destinada a preservar a biodiversidade na região do Rio Amazonas, como um espaço decisivo a nível planetário, e um insistente esforço para diversificar e democratizar a formulação das políticas públicas, tanto a nível territorial como no das organizações mais ativas da sociedade civil.

– Lula mantém, precisamente por essas conquistas – e apesar da crise que afeta a quase todos os dirigentes políticos de seu país – um importante grau de apoio por parte da cidadania brasileira, a ponto de que, com relação à eleição presidencial de outubro próximo, segundo os institutos de opinião pública mais sérios, ele possui apoio que superior ao dobro do segundo candidato melhor posicionado.

A situação que o afeta, se traduz, hoje, em uma condenação de mais de 11 anos de prisão, o que ele, com estoicismo democrático, está cumprindo. Isso exige, em nossa opinião, um manejo especialmente fino e atento à sua situação, por não se tratar de um caso qualquer, e sim daquele que provavelmente é o principal protagonista da política institucional brasileira. Certamente, não estamos defendendo que os méritos e os reconhecimentos de Lula o coloquem acima das obrigações e responsabilidades que incidem sobre todos os cidadãos, que devem responder por delitos e faltas em matéria de corrupção. O que sustentamos é algo diferente, e que é preciso exercer as responsabilidades que podem afetá-lo de um modo especialmente transparente e nítido, que evite qualquer suspeita de parcialidade ou interesse enviesado em seu julgamento. E é aqui onde, após estudo cuidadoso do processo, surgiram dúvidas que consideramos respeitáveis e legítimas de manifestar.

9. Como posição geral, somos partidários da maior amplitude e eficácia nos esforços para castigar a corrupção em qualquer país. Mas nos parece indispensável fazê-lo sem transferir à decisão da sentença condenatória, nem aos meios de comunicação adversos a certos líderes, nem a uma ação que empenhada a utilizar meios excessivos, o avanço dos processos judiciais contra os culpados. Num estado de direito, uma pessoa é inocente até que se demonstre o contrário, em um juízo imparcial, e nessa perspectiva, assim como rechaçamos os defensores da impunidade, que sempre empregam os mesmos recursos para evadir a ação da Justiça, tampouco gostamos daqueles “justiceiros”, sobre os quais nunca se sabe se, por razões fundamentalistas ou de um inconfessável cálculo político, se propõem a afetar determinados dirigentes. Vimos algo disso no processo conhecido como Mani Puliti na Itália, durante os Anos 80 e 90, quando houve juízes que sustentaram a necessidade de vazar informações e fazer acordos com os meios de comunicação antes das sentenças, com parte das investigações estando contidas em arquivos secretos, como uma forma de aumentar a pressão sobre algumas pessoas sob investigação. Em um sistema democrático, sempre é necessário manter a distinção entre um inocente e um culpado. Esta última situação somente se produz quando existe a chamada “coisa julgada”, ou seja, que a condenação esteja confirmada e sem nenhum recurso pendente no caso. Nos múltiplos juízos por corrupção que acontecem no Brasil hoje – o que, em geral, nos parece positivo – há duas questões que devem ser consideradas:

– Praticamente em todas as outras situações nas que houve trâmites ou recursos pendentes, e Lula ainda não passou por duas instâncias judiciais, os réus não foram presos. E falamos de dezenas de acusados que continuam em liberdade.

– Nos parece assombroso que, tendo Lula apenas uma denúncia que o afeta diretamente, o caso do departamento triplex no balneário do Guarujá (lugar que se parece mais a Cartagena que a Cachagua, para fazer uma metáfora chilena), seus advogados estabeleceram, no curso do processo, que não se demonstrou durante o processo nenhuma prova de transferência legal de domínio, tampouco ocupação material do imóvel. E, no entanto, o juiz Sérgio Moro o condenou a uma pena de mais de nove anos de prisão, que logo seria aumentada em segunda instância. Alguém conhece no mundo algum processo por corrupção com sentenças de prisão efetiva com essa extensão, pelo delito de “corrupção passiva”, como qualifica a sentença? Dentro da nossa experiência chilena, os que criticam uma suposta contradição de discurso dos defensores de Lula reclamaram dos acordos que permitiram que delitos coação e corrupção no Chile, judicialmente comprovados, envolvendo altos executivos de uma das empresas financeiras mais poderosas do país, após se estabelecer que os acusados eram realmente culpados, tivesses as condenações de prisão efetiva alteradas e diminuídas a simples multas que, embora pareçam altas, são sempre muito inferiores às vantagens que os responsáveis pelos delitos obtiveram?

– Acreditamos ter demonstrado, neste repasso das situações, que a contradição não é dos autores deste texto que pede uma análise mais rigorosa e menos enviesada da situação judicial e política do ex-presidente Lula, e sim daqueles que, no Chile e em outros lugares, propiciam um tratamento implacável contra o principal dirigente político brasileiro, enquanto aceitam manobras e atalhos para diluir a responsabilidade de situações efetivas de corrupção que envolvem aqueles que consideram próximos.

10. Como corolário da nossa argumentação, gostaríamos de falar sobre a equidade de julgamentos aparecidos em meios de comunicação escrita de grande influência mundial e alheios a qualquer suspeita de simpatia ou aproximação política com Lula, que confirmam categoricamente nossa posição.

11. No dia 23 de janeiro de 2018, o jornal estadunidense New York Times publicou em sua página editorial um artigo de Mark Weisbrot, diretor do Centro de Investigações Econômicas e de Políticas Públicas, na véspera da sentença em segunda instância, e que sustentou o seguinte argumento: “nos últimos dois anos o que poderia ter sido um avanço histórico – o governo do Partido dos Trabalhadores outorgou autonomia ao Poder Judiciário para investigar e processar a corrupção no governo – se transformou no contrário. Em consequência, a democracia do Brasil agora é mais frágil que em qualquer outro momento desde o fim do governo militar”. E com relação à segunda sentença, indicou que “não parece que a corte será imparcial. O juiz que preside a corte fez inacreditáveis elogios prévios à sentença contra Lula da Silva, e a qualificou de `tecnicamente irrepreensível´. Além disso, a secretária pessoal do juiz publicou em sua página de facebook uma petição para que o ex-presidente seja preso”. Em sua conclusão, Weisbrot sustenta que “a evidencia contra Lula da Silva está muito por abaixo do que de padrões que poderiam ser considerados sérios, por exemplo, no sistema judicial estadunidense”.

Na mesma linha, a revista britânica The Economist, em sua edição de 20 de julho, publicou uma reportagem na que sustenta que existe o risco de que os brasileiros considerem ilegítima a eleição se Lula não puder participar, agregando como argumento “o caos nos tribunais, que reforça as preocupações de que o Poder Judiciário se transformou em mais um foro da política partidária”, e comentando também que “num país onde o Supremo Tribunal Federal examina 87 mil casos por ano, e apenas pode julgar processos criminais contra as autoridades, permitindo que muitos acusados de corrupção circulem livremente, a sentença de 12 anos de prisão contra Lula parece excessivamente dura”.

Por tudo, o que já foi dito, em vez de aceitar a concertada campanha para tentar quitar o peso de nossa solicitação, anunciamos uma segunda lista de aderentes, de um arco político igualmente plural e amplo e com trajetórias nacionais de grande reconhecimento com respeito às relações do Chile no Brasil e de nossa política para com a América Latina, que entregaremos nos próximos dias. Igualmente, queremos informar que o impacto do nosso manifesto tem mostrado importante magnitude, razão pela qual temos sido contatados de vários países latino-americanos para realizar uma apresentação do mesmo tipo diante das autoridades públicas do Brasil, um país que conhecemos e queremos, e cuja aguda crise política gostaríamos de ajudar a superar, na medida limitada dos nossos recursos.

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