terça-feira, 14 de agosto de 2018

O mau exemplo dos agentes públicos embala o autoritarismo no País

Política

Onde os fracos não têm vez

O mau exemplo dos agentes públicos embala o autoritarismo no País

por Rodrigo Martins — publicado 14/08/2018 00h30, última modificação 13/08/2018 15h37
Diante dos casos de abuso de poder cometidos pela PF e o Judiciário, não surpreende o crescente apoio popular às saídas autoritárias
Beto Monteiro/Secom UnB/Flickr
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Um terço dos brasileiros prefere a ditadura “em algumas situações” ou diz que “tanto faz”
prepotência não se constrange, mesmo diante da tragédia. Alvo da Operação Ouvidos Moucos, dedicada à apuração de supostas irregularidades na Universidade Federal de Santa Catarina, o ex-reitor Luiz Carlos Cancellier só conseguiu escapar de uma sanha persecutória, em outubro passado, ao atirar-se do sétimo andar de um shopping center de Florianópolis. Preso por 18 dias sob a acusação de obstruir as investigações, sempre se declarou inocente.
“Minha morte foi decretada no dia do meu afastamento da universidade”, dizia o bilhete encontrado ao lado do corpo. Os resultados apresentados pela Polícia Federal não deixam dúvidas sobre os exageros e arbitrariedades praticados pelos agentes envolvidos na operação. Não se atrevam a criticá-los, sob o risco de atrair a mira do Estado policial.
Responsável pelo caso e ex-integrante da força-tarefa da Lava Jato em Curitiba, a delegada Erika Marena mobilizou cerca de cem agentes para cumprir cinco mandados de prisão, um deles contra Cancellier, e outros sete de condução coercitiva.
À época da espetaculosa operação, a Polícia Federal anunciou que investigava um desvio de 80 milhões de reais em verbas destinadas ao ensino a distância. Grave equívoco. Na verdade, esse era o valor total dos contratos, e não do que teria sido surrupiado. Mesmo com a apuração concluída, até hoje não foi informada a soma desviada. Talvez não chegue a 1 milhão.
Como não havia vestígios da participação de Cancellier no esquema, atribuiu-se a ele uma tentativa de obstrução da Justiça. O motivo? Ter avocado para o seu gabinete uma investigação interna, por meio de ofício. Nas 817 páginas do inquérito concluído, não há uma única prova da participação do reitor nos desvios. Ainda assim, sobram insinuações e suposições, como denunciou em maio o advogado de defesa Hélio Rubens Brasil.
Tornam-se públicos, agora, dois inquéritos abertos pela PF para apurar supostos crimes contra a honra de agentes federais, um deles instaurado em dezembro de 2017 e o outro em março, informou O Estado de S. Paulo.
No primeiro caso, o professor de jornalismo Áureo Mafra de Moraes, chefe de gabinete da reitoria, foi convocado a depor após aparecer em um vídeo da TV UFSC, produzida por alunos, sobre os 57 anos da universidade. Embora tenha se limitado a prestar uma homenagem a Cancellier, foi instado a apontar os responsáveis por uma faixa afixada nos corredores da instituição. 
“Agentes públicos que praticaram abuso de poder contra a UFSC o que levou ao suicídio do reitor”, dizia o cartaz, que estampava fotos de Erika Marena, do procurador André Bertuol e da juíza Janaína Cassol, que decretou a prisão do reitor. Moraes teve de esclarecer que não tem o poder, e tampouco o deseja, de interferir ou cercear qualquer manifestação na universidade. O segundo inquérito também teria sido instaurado em razão de outra faixa de protesto, com teor semelhante ao da anterior.
A evidente tentativa de intimidação incomodou até Gilmar Mendes. “O ministro Raul Jungmann tem que se pronunciar”, afirmou à Folha de S.Paulo, primeira a noticiar o caso. “Eles (da PF) não têm nenhum cuidado com a honra alheia e são tão cuidadosos quando criticam os seus”, emendou. Embora correta, a indignação do magistrado parece um tanto tardia. Desde o ano passado, multiplicam-se os casos de abuso de poder nas universidades, sem qualquer censura das cortes superiores.
Em dezembro, outra espalhafatosa operação da PF resultou na condução coercitiva de oito professores da Universidade Federal de Minas Gerais, entre eles o reitor Jaime Arturo Ramírez. Os agentes investigam um suposto desvio de 3,8 milhões de reais dos recursos destinados à construção do Memorial da Anistia Política da UFMG, mas parcela expressiva da comunidade acadêmica acredita tratar-se de uma retaliação a intelectuais que não escondem as críticas ao governo ilegítimo de Michel Temer.
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Cancellier não suportou a sanha persecutória e cometeu suicídio. Moraes entrou na mira da PF porque ousou criticar os procedimentos dos agentes (Pipo Quint/Agecom/UFSC)
“Não só os acusados, mas também seus advogados foram impedidos de ter acesso ao processo. Pela imprensa soube-se que a PF investigava a construção do Memorial da Anistia, cujo processo data de 2009, tendo tido todas as suas prestações de contas aprovadas”, denunciou, em texto publicado no site Quatro Cinco Um, a antropóloga e professora da USP Lilia Schwarcz.
Para provocar a comunidade universitária, observa, a investigação foi chamada de Esperança Equilibrista, em clara alusão à canção O Bêbado e a Equilibrista, de João Bosco e Aldir Blanc, gravada por Elis Regina. E observa: “A operação nada tem de esperançosa nem de equilibrista. Foi iniciada uma semana após o lançamento do relatório da Comissão da Verdade em Minas Gerais, bem às vésperas da votação da reforma da Previdência.”
Os arroubos autoritários contra o livre-pensamento não param de pipocar. Mais recentemente, três professores da Universidade Federal do ABC tornaram-se alvo de uma sindicância, motivada por denúncia anônima. Gilberto Maringoni, Valter Pomar e Giorgio Romano são investigados por apoiar o lançamento de A Verdade Vencerá, livro-entrevista do ex-presidente Lula.
Embora a universidade afirme não se tratar de investigação formal, mas apenas uma pré-apuração, os docentes foram constrangidos a responder um questionário para justificar um debate sobre o livro, ocorrido nas dependências da UFABC. 
“São questões surreais e irrespondíveis. Uma das perguntas é se houve ‘apologia do crime’ no evento. Como alguém não familiarizado com leis vai responder? Como um hipotético criminoso responderia?”, indaga Maringoni. “Além disso, há tópicos de clara matriz ideológica. Querem saber se houve manifestações de ‘apreço’ a Lula ou de ‘desapreço’ a Temer”. Talvez fosse o caso de proibir as pesquisas de opinião. Apenas 4% da população aprova seu governo, segundo o Ibope.
Com o exemplo dos agentes públicos, não causa espanto o crescente apoio popular a saídas autoritárias. Em maio, grupos reacionários aproveitaram a paralisação dos caminhoneiros para clamar por uma “intervenção militar”. Em julho, a pesquisadora Débora Diniz, professora da UnB e colunista do site de CartaCapital, viu-se forçada a se mudar de Brasília, após receber uma avalanche de insultos misóginos e ameaças de morte pela internet.
A razão de tanto ódio? Diniz é autora de numerosos estudos sobre as consequências da proibição do aborto no Brasil, que deixa milhares de mulheres vulneráveis a procedimentos clandestinos, e advoga pelo direito de interromper a gravidez até a 12ª semana de gestação, como ocorre no mundo desenvolvido.
Na verdade, o autoritarismo sempre esteve à espreita. Desde a Proclamação da República, em 1889, fruto de golpe militar, o projeto de democracia no Brasil foi constantemente interrompido. A história reflete-se no comportamento do brasileiro.
“Persiste uma sociedade profundamente autoritária, hostil aos mais elementares avanços em termos de direitos humanos, o que, naturalmente, explica a facilidade com que a exceção não só é assimilada, como também é dissimulada em seu seio”, escreve Rafael Valim, professor da Faculdade de Direito da PUC de São Paulo, no livro Estado de Exceção: A forma jurídica do neoliberalismo (Editora Contracorrente), publicado no ano seguinte à destituição de Dilma Rousseff.
Para ele, o impeachment não passou de uma grande farsa, um “simulacro de devido processo legal encenado por parlamentares toscos e venais, sob o impulso decisivo da mídia nativa”. E o Judiciário é o principal responsável pelo recrudescimento do autoritarismo no País.
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A UFMG também foi alvo de uma espalhafatosa e suspeita batida policial (reprodução)
 
“ Quando um juiz entende que pode decidir ao arrepio da lei, e não sofre qualquer censura das cortes superiores, ele torna-se um déspota. E não é difícil esse déspota cair no gosto popular, pois o autoritarismo ainda está latente na sociedade”, explica a CartaCapital. Para Valim, a exceção jurisdicional é mais perversa, porque, contra ela, não há como se defender pelas vias institucionais.
O Judiciário é sempre a última fronteira na defesa da ordem constitucional. O sistemático desrespeito à normatividade, emenda o especialista, ameaça os direitos fundamentais e leva a um acelerado “processo desconstituinte”, em referência ao conceito do jurista italiano Luigi Ferrajoli. 
“Diante do mau exemplo dos magistrados, todas as demais autoridades se sentem à vontade para agir à margem da lei. Vemos isso quando o Legislativo aprova uma emenda que congela os gastos sociais por 20 anos, inviabilizando qualquer possibilidade de construção de um Estado de Bem-Estar Social, como previsto na Constituição de 1988”, diz Valim.
“Mas isso também ocorre com aqueles que exercem micropoderes, a exemplo do policial que instaura inquérito para intimidar um professor que ousou criticar a atuação da sua corporação.”
Para Valim, a persecução penal deflagrada contra o ex-presidente Lula é uma “síntese eloquente das grosserias e aberrantes inconstitucionalidades” que têm marcado a atuação do Judiciário. Sob o olhar cúmplice da mídia e das cortes superiores, o juiz Sergio Moro praticou toda a sorte de irregularidades, convertendo-se em um poderoso inquisidor, que jamais pode ser contrariado.
Diferentemente do que ocorreu durante o impeachment, agora nem sequer há uma preocupação em dissimular as arbitrariedades. “Moro não hesita em posar para fotografias com adversários políticos do PT, mesmo quando eles são investigados pela Lava Jato, ou em interromper suas férias para incentivar a Polícia Federal a descumprir a decisão de um desembargador, um superior hierárquico. O discurso jurídico nacional transitou de uma feição farsesca para o puro cinismo.”

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Em plantão do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, o desembargador Rogério Favreto concedeu um habeas corpus para a libertação de Lula. Após a insubordinação de Moro, a decisão acabou cassada pelo colega Gebran Neto e pelo presidente da Corte, Thompson Flores.
Não satisfeita, a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, pediu a instauração de inquérito contra Favreto por prevaricação, além de solicitar ao Conselho Nacional de Justiça a aposentadoria compulsória do magistrado. 
“Goste-se ou não da decisão, o desembargador não pode ser criminalizado por adotar uma interpretação comportada no texto legal”, observa Valim. “Quando a Lei de Abuso de Autoridade estava em discussão no Congresso, os procuradores fizeram uma enorme gritaria contra um trecho que supostamente criaria o ‘crime de hermenêutica’, ou seja, tolhia o poder do magistrado de interpretar a lei. O que Dodge faz agora com Favreto?”
Neste contexto, não chegam a surpreender os resultados de um recente estudo do Instituto da Democracia e da Democratização da Comunicação, a revelar a falta de apreço à soberania popular manifestada por um crescente setor da sociedade. Ao menos um terço dos entrevistados disse preferir a ditadura “em algumas situações” (20,8%) ou disseram que “tanto faz” a forma de governo, democrática ou não (13%). Os porcentuais atingem praticamente o dobro do auferido em 2014.  

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