22 DE JANEIRO DE 2019, 16H23
A mentira se tornou símbolo nacional e a corrupção valor familiar
Bolsonaro construiu sua imagem apenas com palavras, sem nenhuma atitude que legitime o que vomita. Hoje vemos a corrupção entranhada na instituição que ele tanto valorizou: sua própria família
Por Raphael Fagundes e Wendel Barbosa*
A nossa capacidade de expressão, verbal ou não verbal, é algo singular no processo de comunicação. É algo que envolve troca de informações ou ideias e se utiliza de signos e símbolos diversos. A construção desses símbolos se constitui como um instrumento de comunicação. E, tal construção, muitas vezes, tem por finalidade moldar o imaginário popular.
Um signo possui uma materialidade que pode ser percebida com um ou vários de nossos sentidos. Você pode vê-lo, ouvi-lo ou senti-lo. Ele dá significado, define os valores e gera representatividade. A ideologia é também um signo, que tem por finalidade atingir o imaginário para recriá-lo dentro dos valores que se deseja forjar, dando um significado a ele. É isso que permite atingir as mentes e os corações das pessoas. “É nele que as sociedades definem suas identidades e objetivos, definem seus inimigos, organizam seu passado, presente e futuro”[1]. Símbolos e mitos são elementos poderosos, na medida em que possibilitam moldar visões de mundo e ações.
Todos os governantes buscaram se apropriar de signos, valores e preceitos ideológicos para dar sustentação política aos seus governos. Acreditamos que seria conveniente pensarmos um pouco sobre os símbolos que irão compor as bases de nosso país nos próximos quatro anos no governo de Jair Bolsonaro. Antes, porém, é importante dizer que um símbolo estabelece uma relação de significados e age em terreno comum, “seja no imaginário preexistente, seja em aspirações coletivas em busca de um novo imaginário”[2]. Ou seja, para que ele não caia no vazio, deve agir sobre mentes que possuam visões de mundo parecidas.
Um dos principais signos de Bolsonaro foi sua estreita relação com as mídias sociais, preterindo a mídia tradicional (que segundo ele é manipuladora e divulgadora de “fake news”[3]). Durante sua campanha, após o atentado que sofreu, fez inúmeras “lives” pelo Facebook e postagens no Twitter. Por lá espalhou informações falsas que viraram marca de sua campanha, como a ideologia de gênero, a distribuição do kit gay nas escolas, a doutrinação comunista, a comunização do país arquitetada pelo Partido dos Trabalhadores (PT), entre outros. Assim, ele não encontrou “nos veículos profissionais de informação um canal para difundir suas ideias (…). Dessa forma, a universalização dos valores defendidos por ele esbarrava nas concepções dos donos desses jornais, impossibilitando a padronização dos comportamentos para uma campanha que se desejava vitoriosa”[4].
Apesar de jamais ter aprovado um projeto de lei sequer na área de segurança durante seus quase 30 anos de Congresso, alega ser um ferrenho defensor de políticas públicas na área. Sempre que podia posava fazendo gestos com as mãos simulando uma arma. Se diz intolerante com a delinquência e defende a necessidade de livrar o país de “amarras ideológicas”[5]. Porém, toda sua fala carrega um forte teor ideológico. A retórica militar – sendo ele ex-capitão do Exército – foi desde sempre uma marca. Ele cultua símbolos da “caserna”, buscando ampliar sua identificação com militares e seus simpatizantes. Ao mesmo tempo em que associa sua própria imagem a seriedade e confiança que a sociedade civil deposita nas Forças Armadas. O grito de guerra da brigada paraquedista do Exército, por exemplo, virou slogan de sua coligação: “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”.
Com sua oratória simples, apesar de às vezes confusa e cheia de vícios de linguagem (“tá, ok?”, “tem que mudar isso aí!”), ele apresentou fórmulas fáceis para a resolução de problemas complexos, como a questão da educação, saúde, segurança e o tripé macroeconômico. Seu discurso é extremamente conservador e arraigado – apesar de simplório – nos princípios do liberalismo econômico. Muito de suas ideias são embasadas pelo pensamento de Olavo de Carvalho, um dos principais representantes do conservadorismo no Brasil.
O Presidente durante sua campanha política buscou demonstrar que os valores de nosso país estariam em perigo. No final de seu discurso de posse, após receber a faixa presidencial de Michel Temer, Bolsonaro segurou uma bandeira do Brasil e disse estar disposto a dar seu sangue para que ela não vire “vermelha” (um simbolismo atrelado ao socialismo)[6]. Com uma forte veia populista, sempre alegou sair em defesa da família e dos valores cristãos. Sendo ele católico e seus principais aliados políticos evangélicos, orações e citações à Bíblia passaram a ser comuns em seus discursos. Foi um dos grandes responsáveis por alimentar a ideia de que o PT seria o grande responsável por arruinar o país e os princípios morais das famílias brasileiras. Caberia a ele o papel salvacionista de restaurar a ordem que foi colocada em xeque pelo antigo Governo.
Aqui vemos o uso da violência simbólica para corromper os símbolos nacionais e as instituições sociais. Recorre-se à violência simbólica quando se quer monopolizar as visões de mundo social, instituir “uma ordem gnoseológica”, nas palavras de Pierre Bourdieu. Foi monopolizando uma interpretação da esquerda que a direita chegou ao poder. O povo que pouco sabia sobre esse binômio político foi ludibriado pelo orador de tal modo que fez da interpretação da direita a sua própria. Ele foi convencido de que a esquerda não presta, não chegando a essa conclusão através dos fatos, ou pelo seu próprio raciocínio.
A campanha de Bolsonaro e agora seu discurso de posse revelam o uso da mentira como principal elemento da invenção retórica. O PT nunca pretendeu tornar vermelha a bandeira, muito menos realizar o significado dessa suposta metáfora, isto é, tornar o Brasil socialista.
A instituição social mais falada na campanha foi a família, os valores tradicionais. Desde o século XIX, a relação entre família e patriotismo foi fortalecida. Inclusive afirmava-se que Deus deu ao homem o sentimento de pátria e o de amor à família para ligá-lo as coisas terrenas e libertá-lo da vontade de ser como os anjos, habitantes do céu. A palavra pátria sempre esteve ligada ao lugar onde o homem morava com sua família.
O cidadão, vendo as relações familiares se modernizarem, mas sem saber a causa, pôs a culpa no governo, como é habitual. Quem estava no governo era o PT, sendo assim, ele é o causador da fragmentação dos lares. Isso porque para o cidadão comum não há história, não há processo, tudo se resume ao presente. O povo vive com muitos problemas, mas não sabe quais são as causas, às vezes não sabe que aquilo que vê nem mesmo é um problema, mas é exatamente aí que um oportunista aparece dando um sentido à angústia popular, inventando causas, enfim, manipulando a interpretação sobre a realidade.
O mesmo aconteceu em relação à corrupção. O PT foi o partido que mais combateu a corrupção em toda a história do Brasil, mas Bolsonaro monopolizou a ideia de combate à corrupção, sendo que nunca moveu uma palha para isso. Transformou apenas a luta contra a corrupção em uma luta contra o PT. Bolsonaro construiu sua imagem apenas com palavras, sem nenhuma atitude que legitime o que vomita. Hoje vemos a corrupção entranhada na instituição que ele tanto valorizou: sua própria família. Com tanto dinheiro em jogo, envolvendo sua esposa e filho, Bolsonaro provou que a família jamais será uma instituição falida.
O nosso querido presidente deu um sentido, organizou a seu modo, conforme os interesses dos grupos milionários que o apoiam, uma matéria amorfa, tornando-a inteligível e designando “um efeito de direção e de tensão mais ou menos conhecível”.[7]É o que Jacques Fontanille chama de “morfologia intencional”.
O poder simbólico é um “poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos”.[8] E os seguidores do novo presidente agem exatamente assim, não querem saber que estão sendo manipulados. Assim vai se criando um “conformismo lógico” termo que Bourdieu resgata de Durkheim, capaz de reproduzir uma ordem social que faz todo o sentido, mas que não passa de uma imposição das classes dominantes sobre aqueles que não dispõem dos instrumentos adequados (devido à exposição turva dos fatos pela mídia e pelo seu “mito”, falta de leitura etc.) para criar uma visão de mundo autêntica e realmente revolucionária.
*Wendel Barbosa é pós-graduado em História social e cultural do Brasil pela FEUC e professor da rede estadual de ensino
[1] CARVALHO, op cit. p. 11.
[2] CARVALHO, op cit. p. 14
[3] https://epoca.globo.com/analise-por-que-os-jornais-incomodam-tanto-bolsonaro-23209336
[4] https://diplomatique.org.br/liberdade-de-imprensa-ou-liberdade-de-empresa/
[5] https://catracalivre.com.br/cidadania/em-discurso-bolsonaro-promete-desatar-as-amarras-ideologicas/
[6] https://www.valor.com.br/politica/6044061/nossa-bandeira-jamais-sera-vermelha-afirma-bolsonaro-na-posse
[7] FONTANILLE, Jacques. Semiótica do discurso. São Paulo: Contexto, 2008. p. 31
[8] BOURDIEU, P. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007. P. 8.
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