terça-feira, 27 de agosto de 2019

1964, o ano que não termina, por Marcio Sotelo Felippe

1964, o ano que não termina, por Marcio Sotelo Felippe

Se tivéssemos, como os argentinos, uruguaios e chilenos, punido os crimes contra a humanidade cometidos pela ditadura militar, não teríamos mais a participação nociva e antidemocrática de militares no processo político
Foto: Arquivo Nacional/Correio da Manhã

da ABJD – Associação Brasileira de Juristas pela Democracia

1964, o ano que não termina

por Marcio Sotelo Felippe*
No dia anterior à decisão do STF sobre a soltura de Lula, um tuíte do general Villas Boas, comandante do Exército, mandou um recado aos ministros: “asseguro à Nação que o Exército Brasileiro julga compartilhar o anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade e de respeito à Constituição, à paz social e à Democracia, bem como se mantém atento às suas missões institucionais”.
Deve-se reconhecer que é uma peça primorosa no que diz respeito à síntese. Tudo que precisava ser dito, todos os sinais que precisavam ser dados, estavam lá nos 140 caracteres. “Repúdio à impunidade” no momento em que se decidia se o ex-presidente acusado de corrupção seria solto. O Exército se mantinha “atento às suas missões institucionais” porque a “democracia”, o que o general entendia pela palavra, estava ameaçada.
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Recentes revelações mostram o que estava oculto por trás do tuíte do general. Os Onze – o STF, seus bastidores e suas crises, dos jornalistas Felipe Recondo e Luiz Weber, recentemente lançado (tomo aqui a resenha da Carta Capital), conta que cinco dias antes do segundo turno o ministro Toffoli, já presidente do STF, foi ao TSE “descrever um cenário sombrio”. Villas Boas tinha 300 mil homens armados que queriam Bolsonaro. A frase de Toffoli somente podia significar que a derrota de Bolsonaro provocaria uma golpe militar clássico. Que, segundo o relato dos jornalistas, por pouco havia sido evitado quando da facada em Bolsonaro. Oficiais graduados naquele momento ameaçaram sair dos quartéis e ir às ruas.
Bolsonaro agradeceu publicamente Villas Boas, afirmando que era presidente graças a ele e que o que haviam conversado morreria ali. Morreram as palavras exatas, mas o sentido da conversa fica claríssimo: Bolsonaro ou golpe. O golpe já tinha sido dado em 2016 com o impeachment. A eleição, mutilada e ilegítima pela prisão de Lula, foi consequência do golpe. Lula não seria libertado pelo STF, com ou sem twitter. Não foi um golpe militar. O comandante do exército postou-se como um guarda-chuva do golpe civil. Uma sobre proteção aos golpistas e um recado: se falhar o golpe civil, nós daremos o velho golpe de tanques e soldados.
Olhemos à volta. Para Argentina, Uruguai, Chile. Países que saíram de ditaduras militares sanguinárias e nas quais hoje as Forças Armadas não têm qualquer interferência política. Governos mais à esquerda ou mais à direita se sucedem em eleições normais sem que se ouça uma palavra vinda dos quartéis ou se leia algum twitter afirmando que a democracia está ameaçada.
Há uma explicação para isso. Argentina, Uruguai e Chile fizeram uma real ruptura com o passado. Mais do que uma ruptura política, fizeram um acerto de contas em nome da Humanidade ao não permitirem que os crimes de suas ditaduras fossem esquecidos ou anistiados. Milhares de perpetradores de crimes contra a Humanidade foram processados nos três países. Recentemente, quatro juízes da província de Mendoza foram condenados por acobertarem sequestros, torturas e assassinatos.
Enquanto no Brasil o comandante do Exército ameaça o STF e tenta interferir nas eleições acenando com seus 300 mil homens armados, no Uruguai o presidente Tabaré Vázquez demite o ministro da Defesa, seu vice e o comandante do Exército por terem se omitido diante da confissão de um militar, em 2018, de ter jogado corpos no rio Negro durante a ditadura.
A explicação para o persistente golpismo dos nossos militares é a Lei de Anistia, que completa neste agosto 40 anos. Ela permitiu, diferentemente de nossos vizinhos, que os perpetradores dos crimes contra a Humanidade cometidos durante a ditadura ficassem impunes. Permitiu que o hoje Presidente da República, em rede nacional durante a votação do impeachment, saudasse Ustra, um dos mais cruéis torturadores da ditadura, como o “terror” da presidenta que estava sendo retirada do cargo. Ela permitiu o assanhamento golpista dos militares, o atrevimento do twitter do general e a sombria reunião com o assustado Toffoli no TSE, que, presidente da Corte que deveria guardar a Constituição, se fez servil e submisso levando os recados dos militares aos seus pares.
Em defesa da impunidade dos crimes da ditadura fala-se em certo acordo que teria possibilitado a passagem para um regime civil com a cláusula da anistia a assassinos e torturadores. Isto dito de forma vaga, imprecisa, nebulosa. Nunca se esclarece quem teria feito esse pacto, o endereço do lugar em que selado, os interlocutores, as forças políticas, a legitimidade de quem o teria firmado.
Como testemunha desse tempo, vi perplexo o relator da decisão do STF que julgou válida a Lei de Anistia, Eros Grau, dizer que “toda gente” sabia desse acordo. Eu e milhões de brasileiros não estávamos incluídos nesse “toda gente”, e mais perplexo ainda vi o STF decidir que um suposto acordo, feito anos antes da convocação da Constituinte, se sobrepunha à nova Constituição.
Pela primeira vez ouvi, recentemente, a versão de que o tal pacto teria sido feito por Tancredo Neves para que sua eleição fosse possível. Mas o fim da ditadura militar não foi produto desse suposto acordo. Foi consequência das manifestações de milhões de pessoas nas ruas pelas diretas, que abriram caminho para a Constituinte de 1988.
Se Tancredo pactuou, o fez desnecessariamente e jamais em nosso nome. A ditadura já não mais ficava de pé, como não ficou na Argentina, no Chile e no Uruguai. Se pactuou, é simplesmente nonsense supor que por décadas e décadas estão a sociedade, as instituições e as gerações futuras prisioneiras de um acordo clandestino e que, como quis o STF, a própria Constituição de 1988 nada valia diante das cláusulas do suposto pacto. E tudo para que bárbaros crimes contra a Humanidade, o assassinato ou desaparecimento de 430 pessoas e a tortura de milhares, ficassem impunes.
Se tivéssemos, como os argentinos, uruguaios e chilenos, punido os crimes contra a humanidade cometidos pela ditadura militar, não teríamos mais a participação nociva e antidemocrática de militares no processo político. O passado continua a nos assombrar. Continua sendo 1964, o ano que não termina.
*Marcio Sotelo Felippe é advogado e membro da ABJD. Foi procurador-geral do Estado de São Paulo. É mestre em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela USP.

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