- Eloá dos Santos Cruz
- TERGIVERSAÇÃO
“Queria falar com ele olhos nos olhos, mas ele simplesmente tergiversou”. Esse é um pequeno exemplo da ação maliciosa refletida pelo verbo tergiversar, que se traduz também por deturpar, enganar ou manipular.
Em bom vernáculo brasileiro, quando se diz que há tergiversação das palavras, significa dizer que as palavras originais estão sendo deturpadas do seu sentido real e quem as repassa interpretou algo de maneira interesseira ou com má intenção. Consequentemente, qualquer forma de tergiversação envolve certo engano. Quem tergiversa um discurso oferece uma versão distorcida do original, previsivelmente com o propósito de apresentar sua própria interpretação. Assim sendo, é de se entender que a tergiversação não é um simples erro sem importância, mas um equívoco cujos efeitos nocivos são imprevisíveis, queira ou não quem o pratica.
Quando a 5ª Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região decidiu, em outubro de 2005, declarar inválidas as sentenças prolatadas na Seção Judiciária do Pará (SJPA), que tinham declarado extintas sem julgamento do mérito dezenas de ações populares propostas contra a desestatização da COMPANHIA VALE DO RIO DOCE (a clássica CVRD), tergiversou, pois a muitos pareceu, sobretudo aos cidadãos brasileiros autores das ações, que estavam sendo vitoriosos, haja vista que, afinal de contas (ora bolas) os processos teriam de retornar à origem, onde o juízo singular – agora certamente exercido por outro magistrado – teria de retomar a instrução processual e só proferir outra sentença de primeira instância abordando o mérito, depois de supervisionar perícia multidisciplinar para avaliar e indicar o valor real do acervo extirpado do âmbito da administração pública federal a preço vilíssimo. A ida e volta dos processos para o indispensável reexame em segundo grau de jurisdição demandaria quanto tempo, implicando maior periculum in morapara o Interesse Público?
Na maioria dessas aludidas ações populares – entre as quais 16 de nosso interesse direto, seja como autor, seja como patrono de outros cidadãos – os pedidos a serem julgados em mérito continua sendo de declaração de nulidade de todo o processo licitatório culminado com o leilão da terça-feira 06/05/1997, data que os interesseiros beneficiados alegam neste futuro de quase um quarto de século depois ter acontecido no dia seguinte, isto é, na quarta feira 07/05/1997. E isto constituiu uma tentativa absurda de tergiversação, só que muito mais grave porque intencional.
Todavia, pelo menos esse equívoco grotesco foi desfeito, porque a referida 5ª Turma do TRF-1 reconheceu e explicitou em acórdão de aperfeiçoamento qual foi a data correta, levando em conta as consequências favoráveis ao Erário no caso de os aventureiros serem condenados a repor tudo à situação anterior ao fator gerador das nulidades conforme mandam o artigo 11 da Lei da Ação Popular combinado ao artigo 168 e parágrafo único do Código Civil Brasileiro em vigor.
No entanto, o fato mesmo de a 5ª Turma do TRF-1 ter concluído pela necessidade de repetir a avaliação do acervo da CVRD convence de sua tergiversação colegiada. Ela declarou uma coisa, quando deveria saber o seu outro significado ipso facto. E isto se diz porque a lei determina, no caso de nulidades, estas possam ser alegadas por qualquer interessado ou pelo Ministério Público, quando a este couber intervir no processo, mas DEVEM SER PRONUNCIADAS pelo juiz, espontaneamente, por força do seu múnus, quando conhecer do negócio jurídico ou dos seus efeitos e as encontrar provadas, em qualquer tempo ou grau de jurisdição. E o que se diz do juiz singular, há-de ser estendido também ao magistrado de nível hierárquico superior, que delibere em colegiado nos tribunais.
Acontece que a Lei das Licitações (8.666, de 21/06/1993), que regula o comando correspondente no patamar mais alto da Constituição Federal (artigo 37, XXI) exige, como requisito essencial em qualquer modalidade de licitação, a avaliação prévia de tudo o que for patrimônio público a ser alienado. Isto de avaliação antecedente é dito e redito na lei de regência e é só ler de espírito desarmado o seu artigo 17 e complementos.
Por isso era e é dispensável a nova alienação para decidir as ações populares na fase processual de conhecimento, porque todo valor a maior ou menor apurado, ou todo bem sonegado que vier a ser descoberto, terá sido – obviamente – fruto de avaliação posterior. A antecedência exigida em lei para avaliação só não será inútil para definir o quantum debeatur a ser pago pelos agentes responsáveis e beneficiários do ato declarado nulo.
Toda gente duvida de que, depois de transcorrido quase um quarto de século desde quando iniciado o empenho de FHC e seus acólitos, os cidadãos autores de ações populares contra a venda da CVRD ainda possam vir a se reconhecer vitoriosos. Contudo, cada ministro do Superior Tribunal de Justiça, também destinatário da norma cogente aqui comentada, quando tomar conhecimento dos recursos especiais interpostos pelos responsáveis e favorecidos pelo ato impugnado deve pronunciar, de ofício, as nulidades da venda da CVRD, seguindo a lição, primária (data venia), de todo operador do Direito:"Nulidade é a pena pela qual se privam os atos jurídicos dos efeitos que teriam, se praticados conforme a lei".
O mesmo se tem a dizer da obrigação ex officio dos eminentes ministros do Supremo Tribunal Federal, se e quando lá chegarem os protelatórios recursos extraordinários dos usurpadores, até em razão do seu inerente notável saber jurídico.
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