Doria quer desmontar maior laboratório público de medicamentos do Brasil
Só no ano passado, a Furp produziu quase 530 milhões de medicamentos para a rede pública
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Os problemas da Furp começaram em 2013, quando foi celebrado um acordo com a EMS, gigante do setor farmacêutico, para a gestão de uma moderna fábrica construída anos antes na cidade de Américo Brasiliense. Nascia ali a Concessionária Paulista de Medicamentos, cuja missão era produzir, nas instalações do governo, os remédios que venderia a ele mais tarde. A Furp deve na praça 100 milhões de reais, boa parte decorrente de contratos com a CPM para administrar a fábrica de Américo Brasiliense.
Sob as regras do contrato, o governo pagou até sete vezes mais que o valor de mercado pelos remédios da concessionária. Além disso, desde maio, os deputados paulistas apuram suspeitas de repasses de propina da Camargo Corrêa para a Furp desistir de uma disputa judicial e pagar uma indenização de 18 milhões de reais ao consórcio que construiu a fábrica. O trato foi selado em 2014 e o valor dividido em 48 parcelas, em um total de 22 milhões, com juros e correção. O caso teria ocorrido entre 2009 e 2012, mas só veio à tona no ano passado, após denuncia do Ministério Público.
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Para não ter mais prejuízo, o governo tucano acha que o caminho é se livrar do laboratório. O secretário estadual de Saúde, José Henrique Germann, admitiu a possibilidade em depoimento aos deputados no dia 16 de agosto. “O que nós temos como objetivo é parar de produzir medicamentos, caso o relatório prove que a Furp dá prejuízo para o estado. Se isso vai levar ao fechamento da Furp é um próximo passo.” A oposição enxerga na jogada uma tentativa de despistar escândalos que eventualmente apareçam nessas empresas e possam triscar a imagem de Doria, que sonha em se candidatar ao Palácio do Planalto em 2022. “Privatizadas, essas empresas serão bem mais difíceis de investigar”, diz a deputada estadual Beth Sahão.
A unidade de Américo Brasiliense opera bem abaixo da capacidade máxima. Produz hoje 320 milhões de comprimidos de 19 tipos diferentes – um quarto do potencial produtivo instalado. O edital de contratação projetou a fabricação de 96 medicamentos. De lá pra cá, a lista básica do governo teve 40 produtos cortados. Sob tantos pontos nebulosos, pairam suspeitas de ação deliberada para causar prejuízos à fundação. “A fábrica de Américo tinha gestor famoso, funcionários, estrutura moderna. Será que o problema está na gestão? Ou é fabricado?”, pergunta Alexandre Rodrigues Caetano, funcionário da Furp há 12 anos.
Os gerentes negam ter trabalhado em prol do problema. “Se houve qualquer tipo de irregularidade, não aconteceu ali dentro dos muros. Posso garantir, quem trabalhou ali trabalhou para ver funcionar”, diz Francisco Caravante, ex-gerente-administrativo da fábrica, em depoimento à CPI na última terça-feira 27. Caravante gerenciou a fábrica durante a transição, como funcionário da fundação pública, e posteriormente foi contratado pela CPM, segundo afirma, ganhando quase 50% a mais do que recebia no emprego anterior.
Uma alternativa seria transferir funções da Furp ao Instituto Butantan, um dos maiores fabricantes de vacinas do País. Mas o próprio Butantan também tem sido alvo da ambição desestatizante do governo. A operação do Hospital Vital Brasil, especializado em acidentes com animais peçonhentos, está sendo transferida ao Emílio Ribas. Funcionários ouvidos por CartaCapital creem que esses movimentos visam criar condições internas para a futura privatização da entidade.
Os institutos paulistas não são os único em risco. Há cerca de dois meses, o Ministério da Saúde suspendeu de supetão contratos com sete laboratórios nacionais para a compra de medicamentos e vacina para o SUS. Esses itens eram feitos a partir das parcerias para o desenvolvimento produtivo, reguladas por uma lei de 2014. Pelo acordo, a empresa parceira ganha exclusividade na venda ao SUS, sob a condição de oferecer apoio para que o remédio, a vacina ou o equipamento sejam produzidos pelos laboratórios públicos. Esses produtos ficam, em média, 30% mais baratos do que os valores de mercado. De acordo com a Associação dos Laboratórios Farmacêuticos Oficiais do Brasil, a interrupção pode causar um prejuízo de 1 bilhão de reais à cadeia produtiva nacional. No caso da Bahiafarma, por exemplo, houve um investimento de 100 milhões de reais para nacionalizar a insulina em parceria com um laboratório ucraniano.
A parceria da empresa com a EMS, gigante brasileira do setor, é motivo de investigação
Só no ano passado, a Furp produziu quase 530 milhões de medicamentos para a rede pública. É a única fabricante nacional dos remédios estreptomicina e o etambutol, que tratam a tuberculose, além de outros mais de 60 produtos. Entre eles derivados da penicilina. A substância descoberta há quase cem anos é o mais emblemático exemplo do impacto desse mercado na saúde pública. Como é um remédio antigo e barato, poucas empresas têm interesse em produzi-lo. Além disso, o princípio ativo é importado. Desde 2005, segundo dados do BNDES, o consumo de fármacos importados pelas indústrias brasileiras cresceu 90%.
Ao mesmo tempo, a big pharma tem os olhos voltados para uma nova geração de drogas feitas sob medida, com investimentos (e lucratividade) bem superiores àqueles dos remédios sintéticos. Só neste ano, a suíça Roche e a americana Eli Lilly desativaram unidades que produziam medicamentos clássicos no Brasil. Sob esse cenário, o risco iminente é o desabastecimento na rede pública. E, a longo prazo, o encarecimento dos remédios.
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