sábado, 16 de novembro de 2019

As imagens da fome



Ed. #26 | 13 de novembro de 2019
Boa tarde!

Na semana passada, o IBGE revelou o aumento da pobreza extrema no Brasil, atingindo 13,5 milhões de brasileiros. A repórter Rute Pina escreve hoje sobre fome e pobreza, contando bastidores da reportagem 
“Famélicos: a fome que o Judiciário não vê”, parte do Especial Fome, indicado ao prêmio Gabo 2019. 

Confira também os destaques da Agência Pública e as novidades do Programa de Aliados.

Caio Costa
      
As imagens da fome 
por Rute Pina
                                                            
Como jornalista, vejo que há dados sobre determinados assuntos que são difíceis de se traduzir em imagens. Crescimento do PIB, aumento de exportações, queda da taxa Selic: eu, por exemplo, tenho dificuldades em pensar em ilustrações para essas pautas que não sejam setas, notas de dinheiro e tabelas.

Por outro lado, alguns temas fazem as pessoas acessarem um emaranhado de referências; elas têm consolidadas suas próprias imagens-afirmação. E imagens cristalizadas podem ser um problema, como na semana anterior escreveu a jornalista Fabiana Moraes, num texto bonito como poucos, aqui nesta mesma newsletter.

Pobreza e a fome são temas que inevitavelmente trazem algumas representações. Até ano passado, eu, por exemplo, talvez recuperasse em minha mente o sertanejo Fabiano e sua família, personagens de Graciliano Ramos em “Vidas Secas” — que li no primeiro ano do Ensino Médio e que talvez tenha sido a primeira grande obra que me marcou sobre a fome. Esse meu imaginário também era composto por famílias que batiam de porta em porta pedindo alimentos em meu bairro, quando eu era pequena; fotografias em preto e branco de fotógrafos renomados; documentários como o “Ilha das Flores”, de Jorge Furtado.

Quando, na semana passada, o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) divulgou dados que revelaram o aumento da pobreza extrema do Brasil, que hoje atinge 13,5 milhões de brasileiros, minha cabeça logo foi levada a essas imagens de volta. Mas, desde que escrevi, junto com minha colega Júlia Dolce, a reportagem “Famélicos: a fome que o Judiciário não vê”, esse escopo também se ampliou.

A pauta foi fruto de uma investigação proposta pela Agência Pública e pela Oxfam no concurso de microbolsas com o tema “Volta da fome”. Desde a concepção da reportagem, um dos nossos desafios foi exatamente quebrar referências já concebidas sobre a fome, para ampliar esse repertório e entender o problema de maneira mais ampla.

Lembro que, no processo da pauta, parecia que tudo já havia sido dito e mostrado sobre a fome. Ainda era um problema social latente, claro. Mas a sensação era de que todas as suas nuances haviam sido debatidas, todas suas imagens, exploradas. Ou será que nosso próprio conceito estava, até ali, restrito?

Na busca por novas referências, foi uma imagem da videorreportagem Fome Oculta, também da Agência Pública, que nos despertou um incômodo: uma mulher contando da sua dieta diária e da sua busca por alimentos, revirando o lixo por comida. Lembro que a Júlia pausou o vídeo e perguntou: por que a gente se acostumou a ver essa cena? De fato: por que é tolerável ver alguém comendo restos, mas essa mesma pessoa pode ser punida se for flagrada furtando em um supermercado?

A partir de então, começamos uma extensa busca por jurisprudência em tribunais superiores, processos e busca de casos em audiências de custódia. Como era possível que casos como o de um furto de duas peças de picanha chegasse até o Supremo Tribunal de Justiça? Como era possível que uma denúncia da Procuradoria descrevesse alguém como “guloso” ao esconder três chocolates no bolso? Além da estrutura racista e classista do sistema penal brasileiro, havia ali também um problema… imagético.

Em corredores de tribunais ou em escritórios refrigerados por ar-condicionado, ouvimos de pelo menos uma dezena de advogados, juízes e assessores que há tempos não havia um caso que fosse “essencialmente” de furto famélico; recebemos a resposta de um juiz que disse que não podíamos “alargar” demais essa interpretação em uma sociedade que vive uma “crise de valores”, como a honestidade. Mas e pessoas procurando comida no lixo? Isso não faz parte da crise de valores?

Como descobrimos, o maior problema era que, na visão destes representantes da Justiça, o princípio só poderia ser usado para descrever furtos de alimentos “vitais” cometidos por pessoas “claramente” desnutridas, à beira de um desmaio, com ossos demarcados sob a pele — referências que colonizam há décadas nosso imaginário sobre o que é a fome. Um iogurte? Já seria demais.

Essas imagens corroboram com o descompasso entre uma justiça privilegiada e a realidade de milhões de brasileiros, em um contexto de avanço da extrema pobreza, da insegurança alimentar, de casos de tortura em supermercados e do número de pessoas que passaram a ter escolhas mais restritas. E são essas imagens que permitem um presidente declarar que “falar que se passa fome no Brasil é uma grande mentira, é um discurso populista”.

Entre as décadas de 1930 e 1970, o médico e pesquisador Josué de Castro, um dos maiores estudiosos brasileiros sobre o combate à fome, contribuiu com uma obra extensa para que o conceito de fome se ampliasse, com suas reflexões sobre a “geografia da fome”. Hoje, o resgate de referências como essas é fundamental para elaborar e construir novos conceitos e representações, que reiterem que comer é um ato biológico, mas também é social. E que gente também é feita de desejos.
Rute Pina é repórter na Agência Pública. 
Rolou na Pública
Google News Challenge. Recebemos duas notícias importantes esta semana: a primeira é que um projeto proposto pela Pública em parceria com outros nove veículos independentes (Agência Lupa, gência Lupa, Repórter Brasil, Congresso em Foco, Ponte Jornalismo, Énois, Colabora, Marco Zero Conteúdo, O Eco e Nova Escola) venceu o Google News Challenge. O desafio é uma iniciativa do Google para ajudar o jornalismo a prosperar na era digital. O projeto contemplado é o Reload, que vai produzir vídeos curtos e dinâmicos a partir do conteúdo das organizações que participam do consórcio.

Ontem, parte da nossa equipe esteve no Rio de Janeiro, na cerimônia de premiação do Latam Digital Media Awards. A Pública foi finalista em duas categorias: melhor start-up digital de notícias e melhor projeto jornalístico. Ficamos em segundo lugar na categoria melhor start-up digital de notícias, entre veículos de toda a América Latina!

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