terça-feira, 5 de novembro de 2019

Carta de Paris: 50 anos da execução de Marighella e a farsa da ''traição'' dos dominicanos

Cartas do Mundo

Carta de Paris: 50 anos da execução de Marighella e a farsa da ''traição'' dos dominicanos

As 'fake news' da ditadura construíram uma narrativa falsa, com a ajuda da mídia

 
05/11/2019 01:43
 
 
Na noite de 4 de novembro de 1969, o sinistro delegado Sérgio Fleury executou o líder revolucionário Carlos Marighella, fundador da Ação Libertadora Nacional (ALN) na Alameda Casa Branca, em São Paulo. Marighella estava desarmado e foi metralhado ao se aproximar de um fusca, onde o delegado colocara dois dominicanos, Ivo e Fernando, que haviam confirmado o encontro.

Marighella foi vítima de uma armadilha montada por Fleury, depois de ter sequestrado no Rio e torturado barbaramente aqueles frades, próximos do revolucionário. Na madrugada do dia 4, a « operação batina branca », dirigida por Fleury, invadira o convento das Perdizes e prendera outros frades, entre eles, Tito de Alencar Lima.

Logo depois da execução de Marighella, cujo corpo foi colocado dentro do carro depois de morto para compor a narrativa das fotos que a imprensa receberia, os órgãos de segurança da ditadura começaram uma sórdida campanha, bombardeando a mídia com « fake news », atribuindo aos dominicanos uma suposta « traição ». Eles teriam traído o antigo aliado, dando informações que permitiram a morte de Marighella.

O que hoje chamamos de « fake news » sempre existiu.

Os regimes totalitários desde sempre utilizaram a mentira para justificar invasões de territórios, prisões de dissidentes políticos ou mesmo para convencer a população que uma reforma traz benefícios quando, na verdade, representa perda de direitos. No Brasil de hoje, a mentira (fake news) é o combustível de toda ação governamental.

Na época da ditadura não era diferente.

No nosso livro « Um homem torturado, nos passos de frei Tito de Alencar », lançado em 2014, Clarisse Meireles e eu reconstituímos o episódio da prisão dos dominicanos e da mentira de Estado, que se impôs através dos órgãos de imprensa da época. Com seu abjeto editorial « O beijo de Judas », o jornal O Globo extrapolou todos os limites, mente e distorce os fatos, do início ao fim.

Todos os jornais ajudaram a ditadura a impor a farsa da « traição dos dominicanos », escamoteando as atrozes torturas de que foram vítimas Ivo, Fernando e os outros frades. Afinal, o general-presidente Garrastazu Médici não garantia a todos que não havia tortura no Brasil ? Quem ousava desmentir o ditador, a não ser brasileiros exilados e pessoas como Dom Helder Camara, em conferências na Europa ?

Abaixo, em negrito, reproduzo um trecho do livro, que narra parte deste episódio dramático e, infelizmente, pouco conhecido da história da resistência à ditadura :

Os policiais puseram Fernando, 32 anos, e Ivo, 23 anos, no carro para ir ao encontro de Marighella. Fernando registrou no diário:

Não me foi possível discernir entre o real e o imaginário. Uma alucinação suscitada por minha mente atordoada? Antes que pudesse distinguir o que havia de realidade ou projeção fantasiosa, Ivo e eu escutamos uma saraivada de balas. Não vi Marighella tombar. Esperei que ali se desse também o nosso fim. Meu corpo, teso, aguardou o impacto de um projétil. Logo as portas foram abertas e, nós, retirados do veículo. No meio da rua, um grupo de pessoas mirava o chão – estirado, jazia o corpo de Marighella. No caminho para o Deops, os policiais alardearam que éramos “traidores”.

Ao chegarem de volta ao Deops na noite de 4 de novembro, os frades viram o delegado Raul Pudim descer ao porão com uma batina dominicana dobrada no antebraço e uma Bíblia na mão. Eufórico, gritava:

_ Olê, olá, o Marighella se fodeu foi no jantar!

Da Bíblia retirou fotos do corpo de Marighella morto dentro de um fusca, as mesmas que foram distribuídas à imprensa e correram mundo.

_ Em reação, os comunistas entoaram A Internacional e os cristãos, um canto gregoriano _ conta Fernando.

O jornalista Emiliano José, biógrafo do líder da ALN, diz que Marighella poderia ter sido aprisionado com vida, mas foi fuzilado porque, vivo, representaria um grande problema para a ditadura.

Mal terminada a emboscada que comandara, Fleury começou a bombardear a imprensa com a versão da traição dos dominicanos. Os frades da ALN eram ora “terroristas” ora “Judas”. Todos os jornais aderiram à versão de que os dominicanos haviam traído Marighella. As manchetes associavam as palavras “frades” e “terror”.

O Globo deu na primeira página a fotografia do convento dos dominicanos com a manchete: “Aqui é o reduto dos terroristas do Brasil.”

Começava a campanha da ditadura para desmoralizar os dominicanos responsabilizando-os pela queda do “inimigo público número 1” (cujo nome os jornais grafavam Marighela e não Marighella). A ditadura tentava dividir a esquerda, ao apresentar os frades como “traidores”.

“Os padres comandam o terror que matou Marighela?” (O Estado de S. Paulo-05.11.69)

“E os frades o traíram. Foi assim” (Jornal da Tarde - 05.11.69)

“Como Marighela foi traído pelo terror” (Jornal da Tarde – 05.11.69)

“Marighela encontra seus amigos frades. E depois cai morto” (Jornal da Tarde – 05.11.69)

“O padre fala. É a sentença de morte de Marighela.” (Jornal da Tarde – 06.11.69)

Ao comentar como a imprensa aderiu à diabolização dos frades construída pelo regime ditatorial, o ex-frade Roberto Romano observa: “Eles não agiram como jornalistas. Agiram como carrascos e torturadores.”

Nesse quadro, o Jornal do Brasil foi quem deu a manchete mais sóbria: “Morte de Marighella inicia desarticulação terrorista” (05.12.69).

No meio da tempestade de desinformação desencadeada pela execução de Marighella, o editorial « O beijo de Judas », publicado no dia 6 de novembro, no jornal carioca O Globo, foi um caso à partePoderia ter sido escrito pelos carrascos.

“O beijo de Judas”

Carlos Marighella morreu, como Guevara, de armas na mão. Lutando. Foi fiel até o fim ao evangelho do ódio, da violência a que serviu com implacável fanatismo por mais de trinta anos.

Alguns dos crimes mais bárbaros da história policial do Brasil talvez hajam sido praticados pelo Grupo Marighella. A morte do Capitão Chandler, por exemplo, é desses episódios que figurarão nos anais da crueldade e da covardia humanas.

Dezenas de atentados, assaltos e alguns sequestros tiveram a participação do bando ultrarradical do ex-deputado pelo PCB e que há dois anos representava a OLAS, de Havana, no Brasil, aqui espalhando a morte e a destruição.

Mas reconheça-se que Marighella pôs toda a sua sinceridade nessa vida de sinistras empreitadas que teria seu epílogo anteontem na Alameda Casa Branca em São Paulo.

Examinemos, porém, a participação dos frades dominicanos no fato. Frei Ivo e Frei Fernando levaram a polícia a Marighella.

Há dois anos, num Convento paulista, realizou-se um congresso da UNE. Como se tratava de reunião ilegal, pois a entidade já então não tinha existência reconhecida, as autoridades penetraram naquela casa “religiosa” e fizeram algumas detenções, inclusive de sacerdotes dominicanos.

Quase que o mundo desabou. Choveram os protestos contra a “perseguição religiosa”. O fato de sacerdotes dessa Ordem, como Frei Josafá – redator principal do famigerado periódico Brasil-Urgente dos tempos de Goulart –, serem veteranos no radicalismo político não foi levado em conta pelos “liberais”, que “não acreditavam” que padres tivessem feito aquilo por mal. “Foram enganados” – argumentavam.

Agora, a morte de Marighella é um levantar de cortinas. Frades dominicanos integram o grupo que espalha a morte e o terror por este Brasil enlutando famílias, fabricando viúvas e órfãos.

Não apenas os dois que “entregaram” – Frei Ivo e Frei Fernando – fazem parte do grupo. Estão diretamente implicados nas atividades de Marighella Frei Tito, Frei Luís Felipe, o Ex-Frei Maurício.

Alguns outros já abandonaram a batina e encontram-se fora do País, como o Ex-Frei Bernardo Catão, também do Convento de São Paulo, que se casou com uma ex-freira e hoje vive nos Estados Unidos. Frei Chico, outro célebre agitador, também abandonou a Ordem dos Pregadores e emigrou para casar-se.

É uma trágica dissolução o que se contempla. Uma Ordem de sete séculos e meio, que deu à história nomes como São Domingos, São Tomás de Aquino, Santa Catarina de Siena, Fra Angelico, produz delinquentes desprovidos de qualquer dimensão de grandeza como esses dois maus acólitos de Marighella.

Frei Ivo e Frei Fernando já haviam traído a Igreja e a Ordem a que pertencem quando, renegando os votos de amor e caridade impostos pelo Evangelho cristão, abraçaram a filosofia de ódio ensinada por Lenine APUD Marx.

Essa traição foi o primeiro beijo de Judas que deram. Todo o resto decorreu desta apostasia – ainda mais grave que o usual, pois fingiram que ainda continuavam dentro da Igreja, quando apenas dela se utilizavam para servir ao terror.

“Então um dos doze, que se chamava Judas Iscariotes, foi ter com os príncipes dos sacerdotes e lhes disse: Que me quereis dar, e vo-lo entregarei? E eles lhe deram trinta moedas de prata. E desde então buscava oportunidade para O entregar.”

Quando aderiram ao comunismo, Frei Ivo e Frei Fernando repetiram o gesto de Iscariotes. Esvaziados da moral cristã, entregaram-se ao amoralismo marxista-leninista. Frei Ivo declarou em 1966 a uma revista mensal o seguinte: “Meu Deus não é o deus-ópio, que aliena: ao contrário, Ele engaja, compromete.”

Êsse “DEUS” anticristão “engaja” os homens nisso: na volúpia de matar e na covardia diante do perigo de vida.

Frei Ivo e Frei Fernando, que rasgaram os votos que livremente firmaram diante de Deus, perderam a resistência moral e traíram os votos de fidelidade à própria doutrina da violência. Entregaram Marighella à polícia com meticulosa proficiência.

Foi um segundo beijo à maneira de Judas. Esses infelizes frades beijoqueiros da traição, bem encarnam o papel devastador desempenhado em certos setores da Igreja por determinadas alas ditas “renovadoras”. Ontem mesmo Paulo VI fazia mais uma advertência a estes grupos, ao dizer: “Nada dentro da Igreja deve ser arbitrário, tumultuoso ou revolucionário.”

Que a covardia desses infelizes frades pelo menos sirva de lição às ovelhas tresmalhadas que seguem por esses descaminhos escabrosos de traição a todos os valores.

Vinte e quatro horas após os jornais terem noticiado a morte de Marighella, o advogado Mário Simas foi procurado pelo prior do convento, frei Edson Braga. Ele assumiu a defesa dos dominicanos. Para Simas, divulgar a morte de Marighella como uma traição dos dominicanos foi uma decisão maquiavélica da ditadura: ao mesmo tempo que indispunha os conservadores contra os frades, jogava contra eles toda a esquerda revolucionária.

Assumindo claramente a defesa do regime, a revista Veja de 3 de dezembro de 1969 trazia uma reportagem de capa intitulada : “O presidente não admite torturas”A foto da capa era a estátua da Justiça, da Praça dos Três Poderes em Brasília. O presidente que usava Veja como sua porta-voz era o general Emílio Garrastazu Médici, que governava desde outubro daquele ano.

Ficamos particularmente emocionadas, Clarisse e eu, ao receber o email do escritor Bernardo Kucinski quando ele terminou a leitura do nosso livro e nos escreveu : « Fiquei surpreendido com a profundidade do trabalho. Mudou a visão que eu tinha da atuação dos dominicanos na época. »

As fake news da ditadura continuam sendo espalhadas pela boca do capitão, insultando a memória de desaparecidos e tentando por todos os meios reescrever a história dos piores torturadores do regime.

Leneide Duarte-Plon é co-autora, com Clarisse Meireles, do livro « Um homem torturado-Nos passos de frei Tito de Alencar » (Ed. Civilização Brasileira, 2014) e autora de « A tortura como arma de guerrra, da Argélia ao Brasil-Como os militares franceses exportaram os esquadrões da morte e o terrorismo de Estado » (Ed. Civilização Brasileira, 2016)

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