quinta-feira, 5 de dezembro de 2019

O dilema dos Guardiões

      
O dilema dos Guardiões 
por Ciro Barros
                                                            
Imagine a situação de um indígena no Brasil contemporâneo. A Constituição Federal garante-lhe, nos termos do artigo 231, a posse permanente e o usufruto exclusivo de um território, uma porção do país voltada à “reprodução física e cultural” segundo os “usos, costumes e tradições” das centenas de etnias remanescentes no país. É um reconhecimento importante do Estado brasileiro de engajar-se num processo de reparação histórica mínima já que o Brasil foi edificado sobre cadáveres dos povos originários. O problema é que o compromisso legal vai pouco além do papel: o Estado não chega nem perto de garantir esse usufruto exclusivo ou a preservação ambiental na grande maioria dos territórios. E resta aos indígenas assistir a seus territórios serem ilegalmente devastados, seus parentes caírem brutalmente assassinados e seu modo de vida ser totalmente inviabilizado.

Diante desse cenário de violência continuada, alguns indígenas escolhem sair de uma posição passiva e vão para o embate direto contra aqueles que os violentam. É o caso de parte dos Guardiões da Floresta, grupos de indígenas, especialmente frequentes no Maranhão, que tomaram para si a fiscalização ambiental de seus territórios. Tive a oportunidade de ter contato com eles em uma viagem recente ao estado, motivada pela morte de Paulo Paulino Guajajara, um dos Guardiões da Terra Indígena Araribóia, assassinado a tiros no último dia 1º.

Ainda que a maior parte das ações ocorram em conjunto com órgãos do Estado - como mostramos neste vídeo - e dentro dos marcos legais, há casos que não são autorizados pelas leis brasileiras. Há, sim, episódios de queimas de caminhões de madeira, apreensões de maquinário e até agressões físicas a invasores por parte de indígenas - o que é ilegal. São os rincões do Brasil, distantes do ar condicionado dos gabinetes, onde Estado Democrático de Direito é só um termo pomposo e vazio de significado.

Os invasores - madeireiros, caçadores, grileiros - adotam um discurso cínico: quando pegos, dizem saber que estão na ilegalidade, mas protestam contra o revide dos indígenas. Dizem que só caberia às autoridades policiais o combate às suas ações - um discurso ironicamente legalista. Os invasores sabem que a ausência e a inação são a tônica da atuação do Estado em relação às ameaças sofridas pelos índios - em que pese a atuação valorosa de servidores e servidoras de alguns órgãos governamentais. O Estado joga parado e isso favorece quem explora ilegalmente as florestas.

Enquanto esperam o Estado agir, os guajajara, indígenas que habitam a Araribóia, veem seu território ser dizimado - a TI já perdeu cerca de 40% da cobertura do bioma amazônico que dispunha quando foi homologada, em 1990 - e seus companheiros brutalmente assassinados - dados do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) revelam que 43 indígenas guajajara foram assassinados no Maranhão entre 2000 e 2019. O número pode ser muito maior já que a impunidade é a tônica. Rodando nas delegacias da região, é difícil encontrar até mesmo os boletins de ocorrência desses assassinatos. Um incêndio ocorrido em 2015 consumiu quase metade da cobertura vegetal da TI Araribóia.

Atualmente, os madeireiros brigam pelo que restou de Amazônia na Araribóia. Eles vêm invadindo as regiões de mata da TI que fazem fronteira às zonas rurais dos municípios de Bom Jesus das Selvas e Buriticupú (MA). Dados de um monitoramento via satélite feito pelo Instituto Socioambiental (ISA) mostram que entre setembro de 2018 e outubro de 2019, em um ano portanto, foram abertos 1.248 km de ramais clandestinos para a exploração ilegal de madeira - se fosse uma estrada em linha reta, ela superaria a distância entre São Paulo e Brasília. Um grupo de indígenas isolados Awá-Guajá perambula por essa mesma região correndo o risco de topar com invasores pouco afeitos ao diálogo. Foi lá também que Paulino Guajajara foi morto neste mês.

O que havia de estrutura estatal nas aldeias da região - escolas, postos de saúde, bases da Funai - está em ruínas. Para se chegar a qualquer prédio governamental, leva-se quatro ou cinco horas em estradas sofríveis. As ações do Estado para frear as invasões são quase inócuas: a Polícia Federal enxuga o gelo montando operações, prende trabalhadores contratados em regime análogo à escravidão, desarticula uma serraria aqui e outra acolá. Passam-se semanas com alguma calmaria e logo voltam os madeireiros. Duas semanas após a morte de Paulino, os indígenas flagraram caminhões de madeira levando toras ilegalmente da região.

Colocando-se no lugar dos guajajara o que você faria: adotaria um espírito republicano e esperaria uma resposta estatal que sempre foi insatisfatória enquanto a sua terra e seus parentes são dizimados para agir dentro da lei de um Estado que só lhe vira as costas? Ou iria para o embate direto arriscando sua vida e liberdade, colocando seus familiares em risco e tendo a certeza que a chance de qualquer caso de violência contra você ser esclarecido é extremamente remota? É um dilema a ser enfrentado enquanto o seu mundo acaba: seus parentes são assassinados, a mata é destruída e seu modo de vida é pouco a pouco inviabilizado.

Nessas horas, agradeço ao fato de que na minha atuação de jornalista me cabe muito mais fazer perguntas do que elaborar respostas.
Ciro Barros é repórter da Agência Pública.

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