LITERATURA
Centenário de João Cabral de Melo Neto é marcado por descoberta de obras inéditas
Um dos mais importantes poetas da literatura brasileira, o pernambucano segue mais atual que nunca
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A própria ideia de homenagem ao centenário de João Cabral de Melo Neto pareceria estranha ao escritor ou, pelo menos, à imagem construída em torno da figura de um dos grandes ícones da cultura brasileira. Avesso à fama e ao culto à personalidade, João Cabral dizia que preferia não ser popular e que o fato de não precisar viver da escrita o permitia dar pouca atenção ao assunto.
Nascido no Recife, em 1920, ele se mudou para o Rio de Janeiro junto com a família, aos 22 anos, quando publicou seu primeiro livro de poemas, Pedra do Sono. Aos 25 anos ingressou no serviço diplomático e lançou a obra O engenho. Ao longo da carreira no Itamaraty, passou por países como Senegal, Portugal, Espanha, Inglaterra e Suíça, mas nunca deixou de escrever.
Em 1950, João Cabral publicou O Cão Sem Plumas, obra que viria a ser considerada a consolidação de um estilo criterioso, objetivo e rigoroso, completamente avesso a inspirações subjetivas, sentimentais e oníricas. Essas características o levaram ainda mais a um caminho de crítica ao culto à individualidade. Em entrevista ao jornalista e escritor Geneton Moraes Neto, o poeta é taxativo quanto a essa postura:
“Não gosto de carta. (…) Ninguém é tão interessante para falar de si mesmo o tempo todo.”
Não sem motivo, é de Cão sem Plumas que saem alguns dos poemas que hoje inspiram artistas muito conectados a uma linguagem extremamente atual das artes. Em 2017, a coreografa Deborah Colker criou um espetáculo que leva o mesmo nome do livro e de um dos poemas da obra. A banda Cordel do Fogo Encantado incluiu no disco O Palhaço do Circo sem Futuro versos do poema Os Três Mal Amados, que também está no livro. A declamação visceral do vocalista Lirinha ficou famosa durante a turnê da banda e era gritada em coro pelo público sempre emocionado.
“O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço. O amor comeu meus cartões de visita. O amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome.O amor comeu minhas roupas, meus lenços, minhas camisas. O amor comeu metros e metros de gravatas. O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus. O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos(…)O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu verão. Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte.”
O Meu nome é Severino
Se Cão sem Plumas deu início à linguagem que marcou a identidade literária objetiva de João Cabral, foi anos depois, com Morte e Vida Severina (1955), que o autor experimentou sua maior popularidade. Com o subtítulo Auto de Natal Pernambucano, o texto conta a trajetória de um imigrante que foge da seca no sertão e busca a sobrevivência na capital Recife.
Severino é um personagem que nada tem de individual, representa a saga de uma vida em condições quase sub-humanas e, já no início da obra, se apresenta como tantos outros. Por ser tão igual a muitos com a mesma história e o mesmo nome, o personagem finaliza sua introdução avisando ao público que será “o severino que em vossa presença emigra”. Um retrato de um povo, de um país e de uma história que não tiveram fim nas palavras de João Cabral e seguem atuais para o Brasil e os brasileiros, 65 anos após seu lançamento.
“E se somos Severinos
iguais em tudo na vida,
morremos de morte igual,
mesma morte severina:
que é a morte de que se morre
de velhice antes dos trinta,
de emboscada antes dos vinte,
de fome um pouco por dia.”
Morte e Vida Severina não era a obra preferida de João Cabral, que chegou a dizer que não relia o texto, porque sentia vontade de mudar boa parte do original. Apesar disso, é o tom objetivo característico do poeta que levou o auto à fama, encenado para o cinema, a TV e em inúmeras peças de teatro. O autor, no entanto, não considerava que conseguia atingir a simplicidade que almejava.
“A coisa simples que quero não é fazer uma coisa boboca. O simples que almejo é chegar a uma forma que os outros entendam. Consigo raramente. Minha luta é esta: tentar botar uma coisa mais complexa numa linguagem mais simples possível. Confesso que geralmente eu fracasso”, afirmou.
Em entrevista concedida ao programa Os Mágicos, da TVE do Rio de Janeiro, no ano de 1977, João Cabral relata a busca quase obsessiva pela simplicidade.
“Minha preocupação é definir as coisas. Não vamos dizer descrever, porque descrever dá mais uma ideia de prosa. Eu diria que seria definir as coisas. Eu gostaria que meus poemas, em vez de serem pregação, de recomendar, de dar conselho, que eles apenas dessem a ver. Eu me considero muito mais visual do que auditivo, de forma que se eu não fosse escritor eu gostaria de ser pintor. Minha preocupação sobretudo é definir as coisas e dar a ver as coisas. Ser o menos subjetivo possível e dar a ver as coisas”, sentenciou.
Obras inéditas
Foi a paixão por Morte e Vida Severina que levou Edneia Rodrigues Ribeiro, pesquisadora e professora do Instituto Federal do Norte de Minas Gerais, a estudar a obra de João Cabral de Melo Neto. O auto foi a primeira obra do autor com a qual a pesquisadora teve contato. Natural do município de Capitão Enéas, ela encontrou na história do personagem Severino não só a inspiração para sua pesquisa, mas um paralelo pessoal com a própria condição de sujeito que migra.
“O Severino do João Cabral emigrou para trabalhar. Eu também sou uma emigrante.”
“Duas coisas me motivaram no João Cabral. A primeira delas é essa questão do homem. O João Cabral pode não ter tido um alinhamento político do ponto de vista partidário, mas tanto a trilogia da década de 1950, que começa com o Cão sem Plumas, passa por O Rio e termina em Morte e Vida Severina, quanto as obras mais elaboradas, aparece uma preocupação com o homem e sobretudo com esse homem à margem da sociedade. Que é o trabalhador dos engenhos de Pernambuco, o sujeito que emigra em busca de condições melhores, mas que representa qualquer sujeito que vive à margem de uma sociedade, tanto na zona rural quanto urbana”, explica.
De admiradora da obra, a estudiosa do assunto – inspirada pelo processo de emigração de um dos personagens mais marcantes do autor – Edneia relata que o seu trabalho leva muito do rigor, da disciplina e da objetividade, características de João Cabral.
“O segundo ponto é o perfeccionismo. É um trabalho, um primor. Uma coisa que me faz pensar em como alguém conseguiu criar algo com tanta dedicação, tanta perfeição e tanta coerência ao projeto que ele mesmo traçou. Concilia aspectos estéticos com conteúdo. Eu fui movida por uma paixão e continuo movida por essa paixão pela criação poética dele.”
Egressa do doutorado em estudos literários da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), com orientação do poeta e professor Sérgio Alcides, Edneia chegou a uma descoberta histórica por meio de sua pesquisa. Durante a busca de material para o mestrado, em que analisava poemas do livro Museu de Tudo, ela encontrou 40 poemas inéditos, um texto de 30 laudas sobre o panorama da literatura brasileira da década de 1950.
Além do achado acadêmico surpreendente, o material traz um simbolismo emocional para a pesquisadora.
“Talvez o próprio Cabral se sentisse bem em ter uma descoberta dessas vinculada a uma pesquisadora Severina.”
A descoberta de Edneia estará no projeto de reedição das obras completas do autor de Morte e Vida Severina, que comemora os cem anos de nascimento de João Cabral de Melo Neto. As duas obras reúnem poesia e prosa e estão sendo organizadas por Antonio Carlos Secchin e Sérgio Martagão Gesteira.
O projeto é mais um elemento na busca por traduzir e perpetuar um trabalho que o próprio poeta evitava explicar e classificar. Ao responder como fazia um retrato de si mesmo, João Cabral de Melo Neto se colocava em um lugar que o aproxima e o insere: um homem como outro qualquer:
“Essa é pergunta mais difícil que você poderia me fazer. Em primeiro lugar, porque você conhece minha poesia e você sabe que eu nunca falo de mim mesmo. Wellington dizia que a poesia não é uma expressão da personalidade, mas uma fuga da personalidade. Eu tenho a impressão de que isso acontece comigo. Eu tenho a consciência de mim mesmo como um homem. Eu sou um homem como outro qualquer.”
Edição: Vivian Fernandes
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