Um poder como qualquer outro, com uma exceção: o Espírito Santo por Lucas Ferraz
Costuma-se dizer que a imprensa, com todos seus vícios, defeitos e virtudes, é um espelho – ainda que muitas vezes distorcido – de um país ou poder. No caso do Vaticano, o menor Estado soberano do mundo, uma instituição de dois mil anos de história cuja organização é comparável à de uma monarquia absolutista, a premissa não é diferente. A mídia católica reproduz atualmente a mesma divisão presente na cúpula da igreja sob o papado de Francisco, o primeiro pontífice latino-americano da história.
As divisões são antigas, e no caso do pontificado de Jorge Mario Bergoglio, são visíveis desde o seu primeiro ano, em 2013, quando ele foi eleito para substituir o alemão Bento XVI, o primeiro papa demissionário em mais de 600 anos. Os opositores acusam o argentino, entre outras coisas, de desvirtuar a doutrina católica ao se mostrar demasiado aberto e tolerante a temas como a homossexualidade, ao defender (ainda que pontualmente) a comunhão de fiéis desquitados, ao propor discussões como a ordenação de homens casados como sacerdotes, o diálogo inter-religioso, etc.
A agenda reformista de Francisco encontra muitos resistentes, e parte dessa mídia especializada amplifica a crítica presente sobretudo no mundo político (na direita americana, italiana e também brasileira) de que o papa age como “líder da esquerda mundial” e geralmente abre amplo espaço para os cardeais e bispos opositores do argentino, mesmo que eles sejam obscuros. Há, claro, os que endossam o papa, seja entre os veículos católicos, seja na mídia tradicional.
A reportagem que escrevi sobre os ataques da mídia de direita ao papa nasceu durante a cobertura do Sínodo da Amazônia, que acompanhei em Roma em outubro do ano passado. Histórico, o evento pode levar a mudanças significativas na atual estrutura da igreja, além de ter consolidado o argentino como uma liderança global na defesa do meio ambiente, um dos principais temas de sua agenda. Espera-se para breve a divulgação da chamada exortação apostólica, na qual Francisco decidirá sobre as propostas aprovadas pelos bispos amazônicos no final do ano passado.
O sínodo foi exemplar dessa divisão na cúpula da igreja e que transparece na mídia católica, sendo um dos aspectos mais notáveis do pontificado do argentino – que coincide, aliás, com o boom do vale tudo nas redes sociais. A virulência de certos veículos e jornalistas chama (chamou) atenção e provocou até discussão pública entre os repórteres durante o evento – citei alguns deles na reportagem, e no sínodo conheci muitos dos entrevistados.
Alinhados com bispos e cardeais opositores a Francisco, esses jornalistas ultraconservadores insistiam em abordar aspectos como o infanticídio entre os indígenas amazônicos e a real capacidade deles em absorver a fé católica – um preconceito presente não somente entre os europeus e americanos, é bom dizer; muitos são os brasileiros que ainda insistem em classificar os indígenas como uma espécie de segunda classe. Houve até veículo que celebrou atos de vandalismo como o acontecido em Roma durante a assembleia amazônica, com o roubo de estátuas indígenas (elas representavam uma mulher nua e grávida e foram consideradas pagãs) que acabaram jogadas num rio da capital italiana.
Como mostrou a reportagem, a mídia opositora é pequena, mas estridente, muito bem financiada e alinhada ao mundo da direita populista e conservadora que cresce no Brasil, na Europa e nos Estados Unidos, país no qual o clero é notadamente anti-Francisco. A ascensão de Jair Bolsonaro já fez nascer alguns “influencers”, pseudojornalistas e veículos que atacam frontalmente a agenda do papa. O modus operandi dessa turma é o mesmo da extrema-direita: o objetivo é escandalizar e alimentar a indignação, sem receio de recorrer a notícias falsas e teorias conspiratórias.
O Vaticano já deixou claro em manifestações de subordinados do papa que se incomoda com a confusão e os eventuais danos provocados por essa cruzada midiática. Conforme já escreveu um religioso considerado um dos confidentes de Francisco, a “geopolítica do ódio” também mira o chefe da Igreja Católica.
Desde que me mudei para Roma, em meados de 2018, tenho acompanhado o cotidiano do Vaticano, um mundo fascinante. Um experiente vaticanista, há décadas acompanhando a cúpula da igreja em Roma, me disse certa vez que cobrir a Santa Sé é como acompanhar qualquer outro poder, com suas intrigas, recuos e inúmeros casos de fogo-amigo. “A diferença principal”, ressaltou ele, “é que a Igreja tem dois mil anos e é regida pelo Espírito Santo”.
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