A vossas senhorias, pescadores de informação por Bruno Fonseca
Foi uma surpresa quando, no final de 2019, recebi a inusitada resposta do Ministério das Relações Exteriores: meu pedido de acesso à informação havia sido negado e eu acusado de “pescar” informações. Em uma ortografia tão pomposa quanto passivo-agressiva, o Itamaraty solenemente acusou “a Minha Senhoria” de solicitar um “conjunto de documentos não relacionados entre si” para “selecionar a informação que seria de meu interesse, caracterizando a prática da ‘pescaria’, coibida pela CGU”. No documento indicado na resposta, uma decisão da Controladoria Geral da União versava sobre a possibilidade que o cidadão utilizasse dados públicos para desenvolver “um trabalho jornalístico”.
Era a primeira vez em sete anos de uso da Lei de Acesso à Informação que um órgão público me negava um pedido inferindo qual seria minha intenção — e me repreendendo por ela. A justificativa foi utilizada arbitrariamente: eu havia solicitado comunicados do Itamaraty sobre a Bolívia durante dez dias próximos à renúncia do ex-presidente Evo Morales; já outro pedido que fiz ao mesmo órgão, exatamente no mesmo período, sobre comunicados envolvendo o ex-presidente Lula foi respondido.
Não se tratava de um caso isolado, contudo. Minha colega repórter na Agência Pública, Rute Pina, também teve um pedido negado sob acusação de pescar informações. Um outro repórter fez dois pedidos iguais: na solicitação na qual permaneceu anônimo, foi respondido; na que se identificou, não, sob acusação de "pescaria". Jornalistas da Fiquem Sabendo, agência de dados especializada em acesso à informação, também passaram pelo mesmo. Em comum, todos eles eram direcionados ao Ministério das Relações Exteriores.
Os dados confirmaram o que os jornalistas haviam percebido na prática: sob a gestão de Ernesto Araújo, o Itamaraty se tornou o campeão em negar pedidos de acesso à informação sob a alegação de “pescaria”. Com isso, o governo de Jair Bolsonaro ultrapassou todos os anteriores na quantidade de solicitações barradas sob essa justificativa. Era mais um sinal de desapreço à transparência que vinha de Brasília, que já havia tentado, no primeiro mês de governo, aumentar o número de autoridades que poderiam impor o sigilo de dados, além da relutância para manter fechados os gastos de cartões corporativos da presidência.
Procurei diversos especialistas em acesso à informação e todos foram categóricos: o governo não pode supor qual seria a motivação de quem pede dados públicos, nem negar o acesso baseado no que o cidadão poderia fazer com a informação. Para Gregory Michener, referência internacional em transparência, o parecer da CGU que apontou que pedidos de informação poderiam ser utilizados para fazer jornalismo é, no mínimo, problemático.
Levei a questão à própria CGU, que desautorizou o uso do parecer sobre “pescaria de dados”, ou fishing expedition, como justificativa para negar pedidos de informação. Já no dia seguinte à publicação da matéria, o Itamaraty respondeu à Pública que a caracterização de pescaria não era um questionamento sobre a motivação do requerente e que os pedidos teriam sido negados por gerarem trabalhos adicionais ou por serem genéricos.
Ora, dadas as respostas dos órgãos, a reportagem abre novos caminhos para repórteres e cidadãos batalharem pelos dados públicos. De um lado, temos uma negativa explícita da CGU que a “pescaria” não pode ser usada como parâmetro para negar informações. De outro, uma afirmação do Itamaraty que são outros os critérios para recusar pedidos. Dessa forma, a partir de agora, será mais difícil para o Ministério das Relações Exteriores continuar com acusações de “pescaria de dados” já que as próprias respostas dos órgãos podem — e devem — ser utilizadas para cidadãos e jornalistas entrarem com recursos a pedidos de informação não respondidos, inclusive judicialmente, se for o caso.
Ao final das contas, fica a lição do ditado popular: o peixe morre pela boca.
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