Falta de dados apaga histórias por trás da epidemia por Bruno Fonseca
“Três ou quatro por dia. Às vezes menos, às vezes mais”. Essa era a estimativa frouxa do número de corpos que chegavam ao serviço funerário da cidade de São Paulo na última semana de março. Eram homens e mulheres que faleceram por razões não violentas, como doenças ou infartos, mas que não haviam sido internados em hospitais nem submetidos a testes, por isso deixavam dúvidas se poderiam estar infectados pelo novo coronavírus.
Em meio à incerteza, o tratamento era protocolar. Os corpos eram deixados no local pelo menor tempo possível. Segundo um funcionário, não era realizada autópsia nem colheita de material para testagem futura. Já a orientação para as funerárias era enterrar com brevidade, sem aglomerações, sem respostas. Aos familiares, quando houvesse algum, o atestado de óbito declarava: morte por “causa indeterminada”.
A situação no serviço funerário paulistano — que eu e a repórter Anna Beatriz Anjos revelamos nesta reportagem da Pública — é uma realidade que se repete em todo o país desde que o coronavírus chegou ao Brasil: uma epidemia de subnotificações.
Há óbitos indeterminados em serviços funerários em diversos estados. Há pessoas morrendo em hospitais antes que os resultados de seus testes sejam divulgados. Há relatos e mais relatos de pacientes com febre, tosse e dificuldade para respirar que aguardam dez, quinze dias ou um mês para receberem um retorno sobre a testagem. E há uma infinidade de brasileiros que sequer são testados, incluindo profissionais de saúde, agentes penitenciários e pessoas presas.
A falta de dados, além de prejudicar a formulação de políticas públicas, tem sido um desafio para mim, para os repórteres da Pública e para outros jornalistas que fazem reportagens investigativas em todo o Brasil.
Por outro lado, a imensidão de mortes e infecções pelo coronavírus que nem chegam a ser notificadas não parece ser suficiente para constranger o governo. Não irei perder o seu tempo, caro aliado, relembrando a postura do presidente Jair Bolsonaro — para quem os números de Covid-19 e a eleição que o levou à presidência foram fraudados. Eu me refiro ao próprio Ministério da Saúde.
Na última segunda-feira, data da profecia não realizada da demissão do ministro Luiz Henrique Mandetta, o ministério fez um aceno ao capitão: recomendou que, a partir de meados de abril, o isolamento social fosse flexibilizado em locais com menos casos de Covid-19. A proposta é baseada em um cálculo: vale apenas para municípios e estados onde os casos confirmados não ocupem mais de 50% da capacidade do sistema de saúde da região.
Ora, a equação do Ministério da Saúde é mais política que matemática: com a absurda subnotificação de casos, que parâmetros Mandetta usará para calcular se autoriza ou não o fim do isolamento? E mais: o próprio ministério, horas antes de Mandetta entrar na reunião com Bolsonaro, havia anunciado que o pico da epidemia no Brasil deveria ocorrer ao final de maio e início de junho. Por que flexibilizar o isolamento antes de atingirmos o ápice das contaminações?
Em março, minha colega Bianca Muniz e eu mostramos que justamente uma falha do Ministério da Saúde na atualização de um protocolo deixou centenas de casos suspeitos de Covid-19 fora do radar. Vale lembrar que, em março, o mesmo ministério prometeu 22,9 milhões de testes no Brasil, sendo 8 milhões de testes rápidos. Entramos na primeira semana de abril com apenas 468 mil.
Dados são mais que um “sim” ou “não” rabiscados no papel, ou uma célula de excel preenchida em uma tela fria. Junto a cada dado há uma história, uma pessoa como eu e você que poderia ter sido atendida de outra forma, um diagnóstico que chegaria mais rápido, um enterro que poderia ocorrer com mais dignidade. No meio desta pandemia, conduzir o Brasil sem dados é descartar essas histórias.
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Rolou na Pública
Pública indicada a prêmio. A Pública é uma das organizações indicadas à categoria especial do One World Media Awards! Desde 1988, o prêmio reconhece as melhores coberturas jornalísticas em países em desenvolvimento. A categoria na qual estamos concorrendo celebra o conjunto do trabalho de organizações independentes que fazem jornalismo de interesse público e privilegiam as vozes de atores locais. Somos a única organização brasileira concorrendo com veículos da Ucrânia, México, África do Sul, Filipinas, Afeganistão, Quênia e Geórgia. Estamos muito felizes com a indicação e agradecemos a vocês, nossos Aliados, que contribuem para que a Pública seja cada vez melhor e mais forte! Prisões superlotadas. A reportagem "Em alerta por coronavírus, prisões já enfrentam epidemia de tuberculose" foi citada em uma recomendação da Human Rights Watch para que a América Latina reduza a superlotação nas prisões para enfrentar a covid-19. A recomendação foi publicada também em inglês e espanhol.
Em outras latitudes. O La Diaria, do Uruguai, traduziu e publicou a reportagem "Epidemia de Fake News". O site francês Autres Brésils republicou a matéria sobre as ações dos comunicadores da periferia na pandemia de coronavírus e também a reportagem sobre racismo nas maternidades que publicamos no começo de março.
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Novas dos Aliados
A vida nos tempos do Corona. Você já ouviu o novo podcast da Pública? Produzido graças ao apoio dos Aliados, "A vida nos tempos do Corona" mergulha nas histórias das pessoas que entrevistamos para nossas reportagens sobre coronavírus. O primeiro episódio está disponível no Spotify, no Deezer e no Youtube, e você vai receber o segundo direto na sua caixa de entrada ainda essa semana. Confira!
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