sábado, 16 de maio de 2020
“Temos que construir a utopia no dia a dia”, diz a boliviana Julieta Paredes
ENTREVISTA
“Temos que construir a utopia no dia a dia”, diz a boliviana Julieta Paredes
José Cícero da Silva/Agência Pública
Em entrevista exclusiva à Pública, a ativista boliviana de origem indígena explica o que é feminismo comunitário e denuncia a violência do governo interino que assumiu o poder após a queda de Evo Morales
15 de maio de 2020
12:09
Texto: Giulia Afiune, Anna Beatriz Anjos | Fotos: José Cícero da Silva
ESPECIAL: ENTREVISTAS ESCOLHIDAS PELOS ALIADOS
Mudanças sociais têm que ser feitas “com os nossos povos” e não com “quatro iluminadas em um café”, diz ativista
“O ambiente não é um meio para viver, é a própria vida”
“Há uma ditadura na Bolívia hoje, com massacres e torturas”
Alguns minutos conversando com Julieta Paredes são suficientes para você olhar tudo por uma nova perspectiva, desde o conceito de feminismo até a história da América Latina.
Em tom sereno, com argumentos realistas, ela explica, por exemplo, que o feminismo “tradicional” nasceu na Europa em meio à Revolução Francesa de 1789. Por isso, as mulheres indígenas que lutaram com seus povos contra os colonizadores europeus nas Américas, mais de 200 anos antes, não são consideradas parte desse feminismo. Esse foi um dos motivos que estimularam Julieta e outras mulheres bolivianas a desenvolver o feminismo comunitário, uma prática política que floresceu durante o governo Evo Morales (2006-2019) na Bolívia e hoje tem adeptas em todo o continente.
“O feminismo comunitário é a luta de qualquer mulher, em qualquer parte do mundo, em qualquer tempo da história, que luta e se rebela contra um patriarcado que a oprime ou pretende oprimir”, define. Julieta ressalta que o feminismo comunitário não é uma corrente que deriva do feminismo tradicional eurocêntrico, e sim a forma única como ela e outras mulheres latino-americanas, principalmente de povos originários, passaram a enxergar e se posicionar. “Nós somos feministas comunitárias, e não feministas porque somos mais velhas do que as feministas, que ainda são jovenzinhas, surgiram em 1789 [risos]. Nós estamos lutando desde 1500.”
Julieta veio ao Brasil no início de março para divulgar seu novo livro, Para descolonizar o feminismo. A Agência Pública conversou com ela na Aldeia Jaraguá, território do povo Guarani Mbya no extremo norte da cidade de São Paulo. Sentada em uma rede, cercada de árvores, ela falou sobre diversos temas do ponto de vista de quem esteve no epicentro de muitas das lutas recentes na Bolívia: desde práticas para coibir as altas taxas de violência contra a mulher até a atual situação política do país após a renúncia do ex-presidente Evo Morales, em 2019, motivada por suspeitas de fraude nas eleições. Julieta é categórica ao dizer que não houve fraude, que Morales sofreu um golpe e que o autoritarismo tomou conta do país vizinho: “Há uma ditadura na Bolívia hoje”.
José Cícero da Silva/Agência Pública
A ativista boliviana, Julieta Paredes, foi escolhida pelos Aliados da Pública para a Entrevista do mês
O que é o feminismo comunitário?
Feminismo comunitário é o nome da nossa organização, que também produziu uma prática política das mulheres em toda a Abya Yala [palavra de origem kuna que quer dizer América]. O feminismo comunitário, hoje em dia, também é uma corrente de pensamento. Mas nós não nascemos da academia, da teoria, da intelectualidade. É muito diferente. Nós nascemos como uma prática social que nomeia seus sonhos, suas propostas, suas lutas, e vamos encontrando na construção teórica a explicação do que estamos fazendo.
Quando você, como povo originário – ou indígena, como nos chamam – ou como mulher, é oprimido, você está preocupado em procurar comida, água, uma casa. Você não tem tempo, espaço, tranquilidade e saúde para poder pensar, ler, escrever.
Mas foi o processo de mudança na Bolívia [que nos deu] essas condições para refletir sobre o que estamos fazendo, para refletir sobre o que significam nossos próprios corpos, nossa própria história. Não que [o governo de Evo Morales] tenha sido maravilhoso, assim como o de Lula também não foi. Eles tiveram suas contradições. Mas eram condições favoráveis.
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E quais eram as práticas que embasaram o nascimento do feminismo comunitário?
O grupo Mujeres Creando surgiu nos anos 1990. Nos anos 2000, Mujeres Creando se dividiu por causa da relação com o povo. Para o grupo que hoje mantém o nome de Mujeres Creando eram muito importantes a performance política e a arte, e elas consideravam que o povo era muito machista, lesbofóbico, estava muito atrasado para compreender o feminismo das Mujeres Creando.
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Já para nós – que adotamos o nome de Mujeres Creando Comunidad – o relacionamento com o povo é essencial, mesmo que ele seja sexista, mesmo que sejam estupradores, que sejam pedófilos, que sejam assassinos de mulheres. Quer dizer, é doloroso que seu próprio povo seja assim, mas é o nosso povo. Nós não dizemos que eles não são responsáveis pelo que fazem, “pobrezinhos”… Não, não, não. Nós também somos fruto de uma sociedade racista e machista, mas não queremos ser machistas ou racistas. Trabalhamos todos os dias para não ser. Então eles também podem trabalhar.
O fundamental para nós é que, para fazer revoluções, mudanças, transformações, tem que ser com os nossos povos, com nossas organizações sociais, com nossos irmãos e irmãs que fazem parte da nossa sociedade. Senão, com que povo vamos fazer a revolução? Quatro gatos-pingados, quatro iluminadas em um café ou em uma festa ou em um 8M (8 de março, dia internacional das Mulheres)? A marcha e o discurso são importantes, mas também são importantes a orgânica, a formação política e até a espiritualidade.
Como o feminismo comunitário se diferencia do feminismo eurocêntrico?
O feminismo nasceu na Europa, a partir da Revolução Francesa, em 1789, e do Estado moderno. Como, a partir de 1500, há um domínio colonialista transnacional e eurocêntrico em todo o planeta, existe também um domínio no plano dos conceitos, dos paradigmas de luta. Não há outro pensamento revolucionário possível para analisar o capitalismo senão o marxismo. Não há luta mais vanguardista para as mulheres do que o feminismo. Mas isso é mentira. Precisamos reconceitualizar o feminismo, porque, se o feminismo se define como a luta das mulheres após 1789, e nós, que não nascemos nem na Europa nem em 1789? Para nós, o feminismo comunitário é a luta de qualquer mulher, em qualquer parte do mundo, em qualquer tempo da história, que luta e se rebela contra um patriarcado que a oprime ou pretende oprimir.
Em 1500, 1600, nossas avós, nos territórios de Abya Yala, já estavam se rebelando contra o patriarcado. Quando os portugueses chegaram aqui ou os espanhóis chegaram na Bolívia, quando percebemos que eles eram invasores e dominadores, o povo resistiu e as mulheres também se levantaram. Muitas mulheres indígenas guerreiras lutaram contra os portugueses, mas são esquecidas.
Na Abya Yala, até 1492 ou 1500 havia uma cultura, uma língua, um modo de vida que não veio da Europa. Então, essa primeira concepção de tempo e espaço – lá Europa, aqui Abya Yala – nos produz como lutadoras para posicionar nossos corpos, nossa história, nossos pensamentos e desejos. Nós não somos alunas da Europa.
Mas precisamos entender que estamos em um mundo globalizado e, se não levarmos isso em conta, podemos cair em uma folclorização, em um reducionismo do nosso próprio pensamento. Por exemplo, se nós dissermos “as europeias têm o feminismo, e nós, em nosso território, temos Q’amasa Warminanaka”, que no idioma aimará significa “a força das mulheres” – mas isso quem sabe somos nós –, o mundo eurocêntrico, colonialista e racista, pode ouvir isso e dizer: “Ah, indígenas, folclore. Então vocês vão cantar? Dançar? Vender artesanato?”. Nós poderíamos nos nomear assim, mas quem nos entenderia?
Mas por que, então, vocês se colocam como feministas?
Nós escolhemos como estratégia política, histórica e de posicionamento, por sermos mulheres de hoje e de agora, diante deste mundo globalizado e colonizado, chamarmos a nós mesmas de feministas. Entendemos que essa palavra nos permite falar de igual para igual com qualquer feminista. É uma estratégia semântica. Mas nós temos nossos conceitos, nossas palavras, nossos argumentos e nossa narrativa para nos apresentar ao mundo.
Não queremos que sejam todas feministas comunitárias, mas que se posicionem diante da redefinição da conceitualização do feminismo. Por exemplo, as irmãs alemãs, espanholas que posição têm como feministas diante da constante migração e da chegada dos corpos de meninas e meninos mortos no Mediterrâneo? De quem é a responsabilidade? Pergunto a essas irmãs feministas o que elas fazem em relação ao racismo em seus territórios, o racismo de mulheres contra outras mulheres? Silêncio, né?
Nós respeitamos as feministas, mas somos mais velhas, mais antigas do que as feministas, que ainda são jovenzinhas, surgiram em 1789 [risos]. Nós estamos lutando desde 1500. E vou lhes dar outro dado: nós já lutávamos muito antes disso. Meu último livro se chama Para descolonizar o feminismo e fala sobre um patriarcado ancestral que nada tem a ver com o patriarcado colonialista.
Muitos de nossos irmãos indígenas dizem “sim, irmã, eu sou machista, é lamentável, mas esse mal veio com os colonialistas”, como se tivéssemos sido uma sociedade inteiramente pura até a chegada dos europeus. E não era assim. Sim, eram sociedades muito mais comunitárias, não havia propriedade privada. E, sim, comparado com o que veio com esse patriarcado colonialista, aqui havia melhores condições para o desenvolvimento da vida, havia melhores condições para as mulheres. Mas nem tudo era perfeito. Nos Andes houve um Império Inca, e a sociedade inca era uma sociedade hierárquica, havia um grupo de dominação. O mesmo no México, os astecas também dominavam outros povos e os faziam trabalhar para uma elite. Então isso deve ser reconhecido.
Então, alguns irmãos querem ouvir até aquela parte em que dizemos que não somos da Revolução Francesa, que estamos lutando contra o colonialismo. “Sim, bravo!” Mas nós também resgatamos as lutas muito mais antigas das mulheres dos nossos povos contra os grupos de poder entre nós mesmos, antes da chegada do maldito colonizador. Aí já não caímos bem para nossos irmãos. Com as feministas, enquanto nos chamávamos de feministas, elas pensavam: “Oba, agora temos índias para colonizar. Vocês querem ser feministas como nós?”. E nós dizemos: “Não, não somos feministas, somos feministas comunitárias”. Ops, pronto, já não gostam de nós. É por isso que há tanta perseguição a mim e ao feminismo comunitário.
José Cícero da Silva/Agência Pública
José Cícero da Silva/Agência Pública
José Cícero da Silva/Agência Pública
O que vocês entendem como patriarcado?
O feminismo de hoje confunde patriarcado com machismo. Esse é um enorme erro político que interessa a esse sistema de dominação. Uma coisa são comportamentos e modos de pensar, outra é a construção histórica de um sistema de domínio.
Para o feminismo comunitário, o patriarcado é o sistema de todas as opressões, discriminações e violências que oprime a humanidade e a natureza. Mas é um sistema construído historicamente sobre os corpos das mulheres. Então, daí vem a necessidade de fazer o feminismo comunitário, porque nós não lutamos só contra o machismo, que são condutas e formas de pensar individuais que dizem que as mulheres são inferiores aos homens. Machistas podem ser homens e também mulheres.
Os machistas são esses estupradores, esses pedófilos que, poxa, estão na sua família, estão na sua comunidade. Ele pode ser um índio de merda que comete crimes, mas é um índio empobrecido e discriminado por um sistema. Não estou criando desculpas para o comportamento dele, até porque ao seu lado está uma índia empobrecida que é vítima desse índio. Mas precisamos entender essa diferença.
O feminismo hoje assume posições puristas, atacam os machistas, como se nós e nossas comunidades não fôssemos também responsáveis. Você não é feminista ou feminista comunitária para se tornar a nova Inquisição. Trata-se de curar o mundo, de resolver problemas, porque esses homens cresceram no meio de nós. Então é preciso diferenciar: uma coisa é o patriarcado como sistema, outra é o machismo como condutas e formas de pensar, coisas que nós podemos mudar.
E o que significa “gênero” para o feminismo comunitário?
Já o gênero são os condicionamentos, as prisões que esse sistema patriarcal impõe sobre os corpos da humanidade. Na humanidade, nós entendemos que há três corpos, não gêneros: mulheres, homens e pessoas intersexuais. Não lutamos para afirmar o gênero de ninguém. Queremos abolir o gênero, assim como também queremos abolir as classes sociais. Nós não lutamos por mais burgueses, não lutamos para que todos sejam proletários. Da mesma maneira, não lutamos para que todos sejam masculinos ou todos sejam femininos. Nós queremos que os gêneros desapareçam para que os corpos possam emergir em liberdade. Para que você seja como quer ser, vista-se como quiser, seja chamado como quiser.
E lutamos contra os comportamentos machistas que os gêneros produzem, como a violência ou as injustiças econômicas.
Então, veja, o machismo interage com as relações de gênero, e ambos estão relacionados a um sistema patriarcal, mas não são a mesma coisa. E isso quem esclareceu foi o feminismo comunitário. Podemos compartilhar algumas reflexões sobre o corpo com outras feministas aqui e ali, mas repito que essa posição se deve a um processo político de mudança na Bolívia, a uma vertente do feminismo anarquista de onde viemos e, também, ao fato de sermos, fundamentalmente, de povos originários.
Entendo que o feminismo comunitário é uma forma completamente diferente de entender a história e as opressões. Como se dá a luta do feminismo comunitário na prática, no cotidiano?
Vamos construindo pouco a pouco, em meio à luta de nossos povos, em todas as lutas dos povos originários. Uma parte é a disseminação de ideias. O mais difícil é como dedicar sua vida a isso.
Para levar adiante um movimento revolucionário, homens e mulheres querem que os homens liderem e, dentro do feminismo, querem que liderem suas fundadoras, as intelectuais. Mas nós somos gente do povo que pensa e crê. É difícil que as próprias mulheres do povo queiram construir uma organização orgânica que é levada adiante por assembleias de mulheres feministas comunitárias, onde tudo o que temos são porta-vozes.
Não adianta só dar like na internet e acreditar que você está fazendo uma revolução. Não serve só sair com sua bandeirinha no 8M ou na Parada Gay. A revolução é um questionamento diário de como somos, de como fomos construídos, de como construímos a nossa feminilidade dentro de um mundo patriarcal, em meio a relações hierárquicas de força, poder, dinheiro, propriedade privada, de posse da Pachamama. Então, isso é todo dia. Você não fará isso sozinha. Você precisa se afastar do conforto da sua cama, da sua televisão e do seu computador e caminhar para encontrar suas companheiras, encontrar suas irmãs e ter isso em sua vida como algo sagrado.
Nós nos organizamos por tecidos. Cada tecido em cada território tece o feminismo comunitário. Mas, nos momentos de decisão, elas são tomadas por aquelas que dedicaram sua vida a isso. Estamos no Chile, Bolívia, Peru, Colômbia, Brasil, México.
De que forma a entrada de Evo Morales no poder permitiu que vocês desenvolvessem o feminismo comunitário?
No processo de mudança revolucionária do povo boliviano, nós utilizamos a figura do irmão e companheiro Evo Morales dentro do uso que também fazemos da democracia burguesa.
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A democracia não é a nossa maneira de governar, mas ela nos é imposta. A democracia nasce em 1789, na Revolução Francesa, para legitimar o governo da burguesia sobre todos os povos. No entanto, ao longo da história, a democracia se torna um bem para o povo diante do outro braço da burguesia e do colonialismo racista, que é a ditadura. Portanto, frente à ditadura, a democracia é melhor, mesmo que seja burguesa, ainda que não respeite a vontade do povo.
É como se fosse uma partida de futebol onde o juiz está comprado, a quadra foi adaptada para favorecer o time adversário, e mesmo assim você os vence. Eles não esperavam que o povo boliviano, o Evo Morales, o MAS [Movimiento al Socialismo, partido de Evo Morales], os índios vencessem, de forma decisiva, as eleições controladas por eles. Eles não esperavam que tivéssemos dois terços do Parlamento.
Nesse processo político, tivemos que enfrentar todos esses elementos, e outros dentro do próprio governo e das nossas próprias organizações sociais: a falta de formação política, a falta de escuta, por exemplo, das mulheres. Então o machismo continuou. Sim, nós, mulheres, ganhamos força e lá estávamos brigando. Mas era uma disputa em que os machistas venciam. Não era uma maravilha, mas estávamos em melhores condições. Nós havíamos conseguido, por exemplo, fazer planos para as mulheres que foram reconhecidos, assinados, mas depois não houve financiamento.
Em 2008, o governo boliviano assinou o Plano Nacional para a Igualdade de Oportunidades, chamado “Mujeres Construyendo la Nueva Bolivia para Vivir Bien”, que tinha como objetivo alcançar a igualdade de oportunidades e eliminar a violência de gênero. O que aconteceu com ele?
Não fizeram. Eles saíam internacionalmente dizendo “Oh, que lindo, temos este plano”, mas não havia dinheiro [para implementá-lo].
Em 2008, 2009, foi feita uma primeira unidade de despatriarcalização, mas os próprios homens indígenas do governo colocaram a palavra “despatriarcalização” só como um rótulo sem conteúdo para calar a boca das feministas comunitárias. Porque esses são métodos manipuladores que os próprios irmãos revolucionários também usam.
Mas, a partir de 2014, implantamos a política de despatriarcalização e eles a aceitaram. Com o Plano Nacional de Despatriarcalização, conseguimos introduzir uma reflexão sobre o patriarcado em uma política pública. Tanto Evo como as organizações sociais estavam começando a entender que o patriarcado não é o mesmo que o machismo, porque essa mudança não é da noite para o dia. Em 2019 começou a ser implementada a Secretaria de Despatriarcalização. E aí sofremos o golpe.
Houve muitos erros, irmãs. Em um primeiro momento, Evo lidou com os problemas. Mas depois o poder subiu à sua cabeça.
Agora, o maior erro que cometemos foi não ter produzido irmãos e irmãs com uma liderança forte, capazes de substituir a proposta para as eleições de 2019. Os próprios movimentos sociais não queriam estudar, não queriam se reunir, não queriam vir às Assembleias para discutir. Não foi um erro só do Evo – ele é só uma pessoa e esse processo político pertence ao povo. Nós nunca fomos do partido MAS, sempre do processo de mudança, mas dentro do próprio partido havia gente muito mais de direita e corrupta que queria substituir Evo Morales. Então, quando tivemos que escolher o binômio como povo, dissemos: “É melhor escolher o que já conhecemos e radicalizar a luta do que os que estão por trás”. Mas é claro que o erro não foi só no ano passado, foi no processo.
Agência Pública
Julieta Paredes é uma feminista comunitária aimara
Quais foram os avanços e retrocessos durante o governo Evo Morales? O que vocês conquistaram e o que não conseguiram fazer ainda que ele estivesse no poder?
Em termos gerais, podemos dizer que hoje o mundo conhece a Bolívia por causa de Evo Morales. Como povos e como pessoas, já não temos vergonha de ser índios, aimaras, quéchuas, guaranis. É uma dignidade para nós. Esse é um processo histórico que temos que ensinar a nossas filhas e a nossos filhos, porque isso não foi automático. Temos que continuar e aprofundar isso.
Por outro lado, o trabalho foi mais valorizado, as condições de vida melhoraram. Ainda não era o “Viver Bem”, mas tínhamos melhores condições do que antes. Comíamos melhor, não bem, mas melhor. A moradia melhorou. A saúde falhou, ele não fez trabalhos na saúde. As condições materiais melhoraram – estradas, ruas, quase todo o país passou a ter acesso à água. Eles construíram escolas em áreas rurais, que meninas e meninos podiam frequentar, e havia incentivos, bônus para eles irem estudar. Antes, quem não ia para escola eram as meninas. Agora, meninas e meninos já terminaram o ensino médio e poderiam entrar na universidade. Já havia gerações de meninas e meninos indígenas entrando na universidade. Universidades indígenas também em áreas rurais gerenciadas com o conteúdo de nossos povos.
Mas os bancos também multiplicaram seus ganhos, engoliram as poupanças. Não se atendeu à ideia de ter um banco do povo. Os bancos em geral eram privados, cresceram e deram o golpe.
Apesar de termos conquistado os direitos da Mãe Terra em 2012, nos últimos anos começaram as negociações com a agroindústria para acabar com a proibição a transgênicos, aos agrotóxicos. E isso foi um retrocesso para nós.
Ter uma nova Constituição escrita pelo povo foi uma conquista, em que representantes do povo foram eleitos como constituintes e o povo pode apresentar suas propostas. Não foi uma Constituição escrita por um grupo de doutores.
Na Constituição havia, por exemplo, a Justiça Comum e a Justiça Comunitária, e elas tinham que ser valorizadas da mesma maneira. Mas depois foram feitas mudanças, disseram: “Então vamos regulamentar”. Armadilha. A Justiça Comunitária ficou para problemas com galinhas, com vacas. Mas podemos retomar isso. O que queremos é que seja uma Justiça com a participação das comunidades para assumir responsabilidades da comunidade por crimes. Por exemplo, se houver um estuprador em nossa comunidade. Por que o deixamos crescer? Por que nós o deixamos agir? A nossa proposta de Justiça Comunitária é também como pensamos em resolver os problemas de violência contra as mulheres em nossas organizações, em nossos bairros, em nossas famílias.
Uma parte importante do feminismo comunitário é o Bem Viver…
Nós dizemos “Viver Bem”. O “Bem Viver” era dito no Equador pelo ex-presidente Rafael Correa, em que primeiro vinha o “bem” e depois o “viver”.
Para nós, primeiro é preciso cuidar da vida. Porque às vezes é preciso calar-se, e, como povo, sabemos disso. Nós estávamos nas ruas [protestando] contra a ditadura atual, mas já tínhamos 36 mortos. Qual é a utilidade de enfrentar as armas se você vai morrer? Nós tivemos que voltar para casa, mas com muita raiva porque havia uma ditadura e queríamos continuar lutando na rua. Mas às vezes você tem que retroceder, calar-se e aceitar o chicote para conservar a vida. Essa é a sabedoria.
O “viver” envolve a água, o pão, a tapioca, como dizem aqui. Primeiro é necessário cuidar da vida. E depois, construir o “bem”, que é com todos e com todas, não somente com a humanidade, mas também com a mãe e irmã natureza. E não é o “Viver Bem” de uma pessoa. Você não pode viver bem se ao seu lado tiver uma comunidade, um vizinho, um irmão ou pessoas na rua passando fome.
Por que é tão importante que o “Viver Bem” seja uma prioridade para o feminismo comunitário neste momento de crise climática?
No mundo de pensamentos paradigmáticos que são hoje hegemônicos no mundo, as propostas de mudança social estão concentradas, de um lado, no desenvolvimento sustentável e, de outro, na revolução, que é o que pregam os marxistas contra o capitalismo transnacional.
Então, a esquerda – revolucionária, proletária e de classe – lida com o conceito de planeta e da mãe e irmã natureza da mesma forma que o capitalismo: como recursos a serem explorados. Uns dizem que esse recurso deve ser explorado por quem tem capital e que vai torná-lo sustentável, outros dizem que deverá ser explorado pelo proletariado, pelo povo, ou pela humanidade. Mas o centro é a humanidade. Mesmo as propostas dos “verdes”, por exemplo, quando falam em “meio ambiente”, este é um conceito equivocado. O ambiente não é um meio para viver, é a própria vida.
Então estão doidos, como dizem aqui, os capitalistas, os verdes e os marxistas revolucionários se pensam em “desenvolvimento”, se pensam que é necessário desenvolver as forças produtivas para garantir a vida e que, para isso, haverá “efeitos colaterais” [na natureza]. Nós, povos originários que propomos o “Viver Bem”, entendemos a mãe e irmã natureza como parte da nossa vida. Não está separada e não é um recurso. Estamos falando da “não propriedade”, e assim cai o conceito de “desenvolvimento”. Para mim, é uma proposta “antidesenvolvimentista”. Não precisamos de desenvolvimento, precisamos de vida.
É preciso que tanto os verdes, quanto os vermelhos, quanto os capitalistas, questionem isso. E, dentro disso, o feminismo comunitário está radicalizando – não no sentido de “extremar”, mas de aprofundar, criar raízes –, questionando nossos irmãos em relação à reforma agrária, por exemplo. Temos que lutar para libertar a Mãe Terra da propriedade privada, não pela reforma agrária. Tudo bem, nossos avós lutaram, nos anos 1950, pela reforma agrária, numa época em que as condições políticas do capitalismo estavam lá e não havia tempo para refletir. Nossos avós estavam apressados, não sabiam se eram camponeses, se eram trabalhadores ou se eram indígenas. Mas nós já somos os filhos. Na Bolívia, já temos um processo político em que usamos a democracia e fizemos muito mais. Não é maravilhoso, mas é mais. É outro momento.
É isso que o feminismo comunitário propõe. Somos mais radicais. E, por isso, quem vai gostar de nós? Ninguém. [risos]
Por que, na sua opinião, o que aconteceu na Bolívia foi um golpe?
Eu acho que nós deixamos a mística revolucionária de realizar profundas transformações se apagar um pouco nas organizações sociais. Também deixamos grande parte da gestão da vida das pessoas se concentrar no governo, tirando responsabilidades que precisam ser do povo. Além disso, a falta de treinamento político. Não preparamos novas mulheres e homens, novas autoridades. E assumo isso como parte do povo.
Acredito que aqueles que administraram o governo e o poder confiaram mais nos burgueses e capitalistas bolivianos. Eles deram mais importância a querer conquistar a classe média racista, convencê-los a fazer parte do MAS. Alguns setores do governo estavam mais preocupados em mostrar-se cultos perante a burguesia e a classe média do que trabalhar com o povo, aprofundar no processo de mudança, com as irmãs, com os irmãos, na área rural, nas comunidades, nas organizações sociais.
Eles estavam em seus hotéis, em seus espaços de honra, querendo se cercar dos empresários, e não das pessoas. Agora, aqueles empresários com quem eles bebiam vinho, tomavam café e almoçavam, foram eles que deram o golpe. E existe outro erro: ter fortalecido as Forças Armadas e a polícia com armas, carros, dinheiro, aposentadorias integrais, quando o que deveriam ter feito era desarmar. Porque os exércitos e a polícia nunca estarão a favor do povo. E contra eles o povo nunca vai vencer. Nós só vamos vencer com a força das nossas ideias e com a luta nas ruas.
Esses foram os erros que se voltaram contra o processo de mudança.
Você acredita que Evo se distanciou do povo e não havia mais tanta força para combater o golpe?
Houve força. Saímos, mas saímos desorganizados. Estávamos nas ruas, mas não estávamos defendendo o Evo. Estávamos defendendo nosso processo. O Evo é um símbolo. As pessoas não são descartáveis, não é que nós o usamos como presidente e agora vamos botá-lo na lixeira. Não, ele é um irmão, um companheiro, e cometeu erros assim como nós.
Mas nós saímos mais fortemente quando mataram nossos irmãos, quando queimaram as casas de nossos companheiros, quando queimaram e pisotearam a Whipala [bandeira multicolorida típica dos povos andinos], que é um símbolo ancestral.
Agora estamos recuperando a força. Não creio que precisávamos do golpe, mas lamentavelmente aconteceu e creio que este momento está servindo para refletirmos. Não precisávamos de 36 mortos.
Mas esse movimento, no processo de mudança, já estava acontecendo. Nós mesmas dizíamos: “Bom, vamos votar [em Evo Morales] no dia 20 de outubro e no dia 21 já estamos aí, contra”. Porque nós sabíamos que íamos ganhar. E ganhamos as eleições. Não houve fraude. Mas nos tiraram aquelas eleições, como vai acontecer com a próxima eleição [inicialmente prevista para maio, mas que foi adiada devido à pandemia]. Vamos ganhar as eleições porque estamos em primeiro [nas pesquisas], mas não vão nos dar o governo.
Muitos dos que saíram às ruas contra Evo Morales, inclusive intelectuais e feministas, hoje se arrependem, hoje dizem que há uma ditadura. Primeiro diziam que não havia ditadura, que não havia golpe. São uns irresponsáveis. É que esses intelectuais, essas feministas são racistas. Foram às ruas por seu racismo contra os índios, contra o índio, e agora olha o que temos, uma ditadora.
Você acredita que há uma ditadura na Bolívia hoje?
Claro. Quais são os elementos de uma ditadura? Há a formalidade, o fato de que não é legal nem constitucional que essa mulher [Jeanine Áñez], que era senadora seja hoje a presidente. Além disso, há o aspecto simbólico. Os militares e a polícia [estão no poder], não o Parlamento nem o povo. Os meios de comunicação estão censurados e controlados.
Não há legalidade institucional, nem justiça, nem processos devidos. Te prendem nas ruas, ou usam os mecanismos legais para te pôr na prisão. Todos sabemos o que é uma ditadura: vem o militar, chuta a porta e entra na sua casa, e te tira de lá pelos cabelos. Agora é uma nova forma de ditadura: vem um fiscal ou um juiz, e não chutam a porta, mas batem na porta, te mostram um papel e te levam para a prisão da mesma forma.
Há massacre. Há tortura nas ruas, nas prisões, nas delegacias. Existe tortura física, tortura e perseguição psicológica, e ameaças à sua família, a você.
Em termos da administração da economia, também é uma ditadura porque eles definem quem vai ou não ganhar dinheiro. Então colocam gente corrupta que hoje está administrando as grandes empresas que são do povo e estão fazendo com que falhem, para que possam vendê-las aos empresários.
José Cícero da Silva/Agência Pública
“Há uma ditadura na Bolívia hoje”, afirma a ativista Julieta Paredes
O que você contou sobre o que aconteceu com Evo Morales, tanto os avanços quanto as “traições” em relação ao povo e agora a ruptura, soa muito como o que aconteceu no Brasil. Quais são as semelhanças e diferenças entre o que ocorreu no Brasil com o PT e o que está acontecendo na Bolívia?
Creio que são processos parecidos, mas não iguais. Acredito que a diferença entre o PT e o MAS é que o MAS é uma coordenação de organizações sociais do povo, havia um pacto de unidade. Não é um partido com uma direção como o PT.
O Lula é um irmão proletário. Ele não traz a memória da ancestralidade. Então, ele usa os conceitos de classe que têm suas raízes na Europa. E, portanto, o governo geriu os territórios e a mãe e irmã natureza como um recurso. Na Bolívia, tentamos criar os direitos da mãe natureza, ela não era um recurso, embora também tenham sido feitas concessões.
A intenção de estar com o povo, de tirar da pobreza a maior quantidade de gente possível, isso era comum ao Evo e ao Lula. Ambos fizeram políticas para investir no povo, repartir o dinheiro, políticas de inclusão.
Mas aqui creio que os índios ainda são vistos mais ou menos como os “macaquinhos”. Então não é preciso levá-los muito a sério. Mas quem sai desde o primeiro dia às ruas para lutar por seus direitos? Quem está conservando a esperança? Os povos originários, que em todos os territórios estão morrendo.
Aqui mesmo no Jaraguá. Quantos ecologistas vieram apoiar o povo guarani na recuperação contra esta imobiliária Tenda, que derrubou árvores? Onde estavam o PT ou os irmãos sem-terra? Na porta, com cartazes, gritando junto com os índios? Não.
Lá na Bolívia, da mesma maneira, quem está defendendo o MAS? Quem está indo para a rua? Organizações indígenas, camponesas, originárias, o povo. Onde estão os que eram do governo, aqueles que faziam parte dos intelectuais do MAS? Estão perdidos.
Agora, acredito que é importante que o Brasil e os povos originários daqui aprendam com a memória das lutas que ocorreram e ocorrem na Bolívia. Não é à toa que defendemos a Whipala, que é um símbolo da unidade na diversidade não só da Bolívia, mas de toda a Abya Yala.
Então, acho que o golpe aqui no Brasil é um golpe mais dissimulado, não é tão evidente. O golpe aconteceu por via eleitoral, por meio das igrejas, dos partidos, do marketing político. Mas aqui também houve um golpe.
Na Bolívia houve um golpe e há uma ditadura que não teve medo de matar, de reprimir, de levar tanques e militares às ruas. Lá não é dissimulado, sabe por quê? Porque é um governo índio. Fizeram isso porque não há respeito, não há vergonha. Aqui há respeito porque não é um governo índio. É um governo proletário.
Como é possível conciliar a construção a longo prazo do feminismo comunitário com as necessidades urgentes do povo? A Bolívia é o país da América do Sul com a mais alta taxa de feminicídio. Como o feminismo comunitário combate isso?
Na Bolívia, foram feitas leis para tentar garantir às mulheres uma vida livre de violência. Mas a mudança de comportamento não se resolve com leis, prisão, punição. Você pode dizer “é errado mentir”, mas as pessoas mentem.
A Lei Maria da Penha e a 348 na Bolívia servem para que, em nível sistêmico e institucional, se diga “isto é um delito”, porque antes o patriarcado admitia a violência contra a mulher. Mas só a cultura e a educação podem mudar as condutas machistas – que é quando dizem “cale-se” para uma mulher – e aí não houve propostas.
Essa é nossa tarefa como feministas comunitárias e com as companheiras que queiram construir junto: temos que criar nas escolas, nas igrejas, em todo lugar, mecanismos, metodologias didáticas, formas de educar de não violência. Se o patriarcado, o sistema de opressões que oprime as mulheres, homens, pessoas intersexuais e a mãe e irmã natureza, foi construído nos corpos das mulheres, se trabalharmos com essa violência contra o corpo das mulheres, estamos influenciando a raiz, é radical. Isso começa a subir a todos os tecidos sociais. Não é aceitável bater nas mulheres nem em ninguém, nem nos cachorros, nem homens em homens, nem crianças em crianças, nem meninas em meninos.
Como vamos parar os feminicídios? Trabalhando nas escolas, nas igrejas, nas aldeias, nas comunidades. Organizando-nos.
Mas não podemos viver com medo. E por isso é ruim a maneira como o feminismo se organiza. As feministas se organizam pelo aborto e contra a violência contra as mulheres, ou seja, é pelo medo. Mas nós queremos viver a utopia aqui, na comunidade. Agora lutamos pelo direito de decidir por nós mesmas e vamos decidir, mas também queremos comer uma boa refeição, vamos nos divertir, vamos brincar, vamos dançar, tomar uma cervejinha, vamos curar, vamos cuidar de nós mesmos quando estamos doentes, vamos celebrar aniversários. Isso é a utopia.
Mas isso não pode se limitar em nós mesmas. É preciso que o mundo esteja bem. A utopia não é o que vem, mas o que estamos construindo. E a força, a radicalidade, a criatividade e a inteligência com as quais estamos construindo. É o que estamos vivendo, porque estamos construindo da forma que sonhamos. A utopia não é o que não pode ser, mas o melhor que se pode ser. Dependemos do seu apoio para revelar as injustiças, abusos de poder e violações de direitos que se agravam em meio à pandemia. Doando a partir de 10 reais mensais, você faz a diferença e ajuda a promover o jornalismo investigativo, independente e aberto ao público. Seja nosso Aliado
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