#VidasNegrasImportam – e dados raciais também por Rute Pina
Quando entrevisto especialistas em estudos raciais, gosto de perguntar: “por que é importante trazer o recorte de raça para esse problema?”. Faço esse questionamento porque as respostas são lembretes de como funciona o racismo estrutural. E para me antecipar à enxurrada de comentários, como “isso é uma questão de classe, de desigualdade social, de pobreza, não de raça”.
Assim que publiquei no meu perfil do Twitter a reportagem “Em duas semanas, número de negros mortos por coronavírus é cinco vezes maior no Brasil”, que escrevi para a Pública com meus colegas Bianca Muniz e Bruno Fonseca, um usuário chamado Alexandre chamou nosso levantamento de “idiota e insensível” e disse que “a vida é mais importante que a cor da pele!”. Outro chamado Tiago não demorou muito para dizer que “vírus não escolhe cor”. Uma outra conta, que mais me parecia um robô, disse que a reportagem era “vitimismo”: “Agora vão processar e prender o vírus racista.”
Também tivemos muitos retornos positivos, claro. Mas as respostas acima mostram o quanto ainda é incômodo demonstrar que a "democracia racial" no Brasil é um mito, e por que é importante fazer justamente isso.
Mostramos na reportagem que, naquele momento, bairros com maior população negra em diferentes cidades tinham um número maior de mortes. E provamos que o número de mortes em decorrência da Covid-19 estava crescendo mais entre negros do que entre brancos. Quando escrevemos a reportagem usando dados de 26 de abril, 45,2% dos pacientes que haviam morrido pelo novo coronavírus eram negros. Um mês depois, em 25 de maio, negros já representavam 57% das vidas perdidas.
Apesar desses dados serem alarmantes, o Governo Federal não divulga outros dados raciais importantes. Não sabemos, por exemplo, quantos casos foram confirmados por raça ou quantos testes foram feitos em negros, brancos e outros grupos.
E o governo brasileiro quer que isso permaneça assim. Após o Instituto Luiz Gama e a Defensoria Pública da União pedirem que o item "raça/cor" do paciente fosse obrigatoriamente preenchido nos prontuários das unidades de saúde, a Justiça concedeu ao Ministério da Saúde o direito de não divulgar essas informações. O Ministério disse que “agentes de saúde não poderiam repentinamente ser obrigados a modificar suas atividades para promover o cumprimento” do pedido e que não há estudos que apontem a raça como fator de risco para a Covid-19.
Em abril, na reunião de pauta em que discutimos essa reportagem, mencionamos que alguns veículos nos EUA, como o New York Times, já tinham constatado a desproporcional letalidade do coronavírus na população negra. Agora, escrevo esse texto assistindo às imagens de protestos antirracistas em frente à Casa Branca. Vendo enormes manifestações tomando corpo nos EUA – no que a imprensa já chama de “maior onda de protestos raciais desde o assassinato de Martin Luther King”– em repúdio ao assassinato de George Floyd (46 anos) em Minneapolis por um policial branco.
Na reportagem publicada há um mês, o pesquisador Daniel Teixeira já alertava que os números da Covid-19 revelavam que o racismo é uma a doença endêmica nos EUA e no Brasil. “Não à toa que um dos movimentos mais fortes dos EUA hoje é o Black Lives Matter, as vidas negras importam. Essa afirmação se dá porque a morte [da população negra], desde sempre, e cada vez mais, é vista como parte da paisagem social.”
Não era nenhuma premonição. Ativistas, acadêmicos, pesquisadores, e militantes sempre denunciaram a violência e o racismo como estruturais. No Brasil, uma semana antes do assassinato de Floyd, o adolescente João Pedro Matos (14 anos) foi assassinado dentro de casa por policiais militares. Aqui, a reação também ocorreu com atos no Rio de Janeiro e em São Paulo.
Há muitas diferenças nos processos históricos dos EUA e do Brasil. Lá, por exemplo, a segregação territorial foi definida juridicamente, com leis estaduais e municipais criadas no fim do século 19 e que vigoraram até a década de 1960. Já no Brasil, essa segregação territorial também ocorreu mesmo sem uma legislação específica para isso – o que contradiz o mito do nosso “pacífico” processo de miscigenação do qual grande parte da população ainda se orgulha, equivocadamente.
Apesar das especificidades, lá e aqui o racismo é parte de um sistema estrutural, e o coronavírus deixa isso ainda mais claro. Pessoas negras e seus territórios estão sujeitos à grande incidência e à alta letalidade do coronavírus, à falta de acesso aos sistemas de saúde e à violência policial sistêmica, que continua brutal mesmo no meio de uma pandemia.
Ou seja, os protestos que ocorrem lá e aqui não são mera coincidência. Do conforto do home office, pode parecer difícil entender por que as pessoas estão arriscando suas vidas para sair às ruas em meio à pandemia. Mas o que leva os movimentos antirracistas e antifascistas às ruas não é o negacionismo que motiva grupos bolsonaristas e neofascistas. Pelo contrário, é a realidade. “Morrer de coronavírus ou de tiro?”, questionava um dos cartazes levantados na manifestação deste domingo, em Laranjeiras, no Rio.
Mesmo com diferentes métodos, o movimento negro estadunidense e o brasileiro sempre foram combativos, atuantes. Ambos. Aqui, a lista de atos de resistência inclui desde a formação dos quilombos, como Palmares, até a luta pela abolição e a atual exposição das nuances do racismo dentro de uma sociedade que sempre se acreditou cordial e miscigenada. E é o movimento negro que também luta, há muitos anos, contra a histórica falta de pesquisas e estatísticas sobre raça.
Sem essas informações detalhadas, não podemos identificar quem são as populações vulneráveis para, justamente, expor e tentar curar essas fraturas. É preciso dizer: vidas negras importam. E, por isso, os dados raciais, também.
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Rolou na Pública
ONU alerta sobre minorias na pandemia. A reportagem que deu origem ao texto da newsletter de hoje teve, até agora, 24 republicações, inclusive em sites da América Latina, como a revista Semana, da Colômbia, Animal Político, do México, e Convoca, do Peru. Além disso, tem sido bastante mencionada em artigos, reportagens e entrevistas sobre o tema. Ontem, a ONU fez um alerta sobre o impacto do coronavírus em minorias raciais e étnicas.
Conheça os pedidos de impeachment. Na segunda-feira lançamos uma ferramenta que explica os pedidos de impeachment de Jair Bolsonaro e inclui entrevistas exclusivas com seus autores. O especial foi recomendado na newsletter Meio e teve destaque entre as recomendações de notícias do Twitter.
Telemarketing na pandemia. Na semana passada, publicamos reportagem sobre a situação dos operadores de telemarketing em meio à pandemia. A reportagem saiu no Poder360, no Outras Palavras e Sul 21. O Jornal da Tarde, da TV Cultura, publicou reportagem sobre o mesmo tema.
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Maravilhosa reportagem. Ouço frequentemente o Nicolelis. O projeto Mandacaru, que ele menciona, foi um sucesso acho que nos anos 2010/2011. Meus parabéns a todos vocês da Pública. Um abraço da aliada,
Maria Teresa Baldas, Rio de Janeiro (RJ)
Daniel Wallace, Florianópolis (SC)
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